domingo, 18 de dezembro de 2011

A luta está só começando


Patrick Cockburn

18/12/2011, Patrick Cockburn, The Independent, UK 
[excerto com adaptações]
Traduzido e adaptado pelo Coletivo da Vila Vudu

“O que mudou em 2011 não foi a violência, os espancamentos ou a corrupção. A novidade é que, hoje, no mundo conectado pela internet, os governos e todos os políticos têm de pagar preço político muito mais alto por recorrerem a esses métodos.”

Não há dúvidas de que a internet está deslocando o centro de gravidade do poder: dos palácios e redações de jornais e redes de televisão, para o povo nas ruas, no Oriente Médio, e nos teclados, no Brasil.

Há um ano, o mundo viu os primeiros levantes populares do Despertar Árabe, que cresceram de uma faísca, quando um tunisiano empobrecido, forçado a vender frutas e legumes numa banca de rua, Mohamed Bouazizi, ateou fogo ao próprio corpo, depois de sua banca, último recurso que tentava para conseguir alimentar a família, foi confiscada pela polícia. Em poucos dias, fotos dos protestos por aquela morte, em sua cidade natal, estavam diante de milhões de tunisianos, pela internet e pelas televisões por satélite, e o estado policial que por tantos anos governara o país de Bouazizi começou a ser destruído e ruir em frangalhos.

Primavera árabe queima oligarquias
12 meses adiante, o futuro dos movimentos da Primavera Árabe continua imprevisível. Dois regimes autocráticos ruíram no norte da África – na Tunísia e no Egito – mas ainda não se vê com clareza o que será criado para substituí-los. Persistem os confrontos em três estados a leste do Egito – Síria, Iêmen e Bahrain – e tudo sugere que ainda persistirão por muito tempo. [E o novo governo na Líbia nada promete, além de um arremedo de “democracia” à moda da democracia ocidental contemporânea, em que o governo serve aos interesses das grandes empresas transnacionais, para exploração das riquezas locais].

Fica cada vez mais claro que o mundo árabe e o Oriente Médio enfrentam o início de prolongadas lutas pelo poder, como já não se viam desde os anos 1960s. Alguns fatores são comuns a todos os levantes populares – como a decrepitude e a corrupção dos estados policiais –, mas cada país tem suas especificidades. Na Líbia, Gaddafi foi deposto não por algum levante popular, mas pela intervenção massiva da OTAN, o que implica que as milícias anti-Gadaffi podem não ter força para substituir o antigo regime, no poder. O conflito no Iêmen converteu-se numa luta de três grupos, entre um governo autoritário, manifestantes pró-democracia e barões da política local dissidentes, da elite local que jamais mostrou qualquer tendência democrática.

O futuro indefinido e imprevisível reflete o fato de que os movimentos de protesto, em todos os países, nasceram de coalizões diferentes de elementos disparatados. Islamistas uniram-se a secularistas. Defensores de direitos humanos uniram-se às jihadis que combateram no Afeganistão. São coalizões que teriam sido impossíveis nos anos 1990s, quando os islamistas acreditavam que poderiam chegar sozinhos ao poder, e os liberais, a esquerda e os secularistas em geral temiam mais o Islã fanático que seus ditadores.

E abrem-se fissuras também dentro dos movimentos de protesto. “A Primavera Árabe está virando uma Primavera Islâmica” – disse-me um deputado em Bagdá. Poderia ter acrescentado que, para muitos xiitas, parece estar virando uma “Primavera Sunita”, com os sunitas no poder em Damasco e os xiitas esmagados no Bahrain.

Esse mar de incertezas, contudo, mostra algumas tendências que começam a delinear-se. O mundo árabe é hoje, pelo menos por hora, mais fraco do que há muito tempo. Mas os EUA não estão em condições que lhes permitam reimpor-se como poder hegemônico na região, dados os fracassos no Iraque e no Afeganistão, a crise econômica, e o obcecado apoio que dão a Israel. Israel espera ansiosíssima o fim do governo de Bashar al-Assad na Síria, mas sabe que, se acontecer, terá trocado inimigo conhecido por inimigo desconhecido e, possivelmente, mais perigoso. Pior ainda, do ponto de vista israelense, nos três últimos anos Turquia e Egito, os dois mais poderosos estados da região, converteram-se, de aliados a vizinhos cada dia mais hostis. Essa mudança é hoje a maior ameaça que pesa contra Israel, ameaça muito maior que qualquer Irã. 

A Turquia preencherá o vácuo de poder? Outras potências, do ocidente e do Oriente Médio, mal disfarçam a ansiedade, à espera que os turcos assumam a liderança e consigam deslocar Assad ou equilibrar a influência iraniana sobre o Iraque, porque, como diz a sabedoria popular, “grande serviço prestará aí qualquer um, menos eu”.

Revendo o ano que passou, o fim de tantos estados policiais tem uma espécie de inevitabilidade espúria. Muitos daqueles ditadores chegaram ao poder nos anos 1960s ou início da década seguinte, em golpes militares e com credenciais nacionalistas. No Egito, a revolução nacionalista aconteceu muito antes, em 1952, em reação ao controle residual pelo império britânico e à derrota contra Israel. Muito facilmente se esquece hoje que aqueles governos rapidamente criaram poderosas máquinas de Estado e constituíram unidades nacionais para manterem-se no poder, ou, como no caso da Líbia e do Iraque, nacionalizaram a indústria do petróleo e forçaram o aumento dos preços. 

À altura de 1975, aqueles regimes já eram estados policiais, com os poderes político e econômico já monopolizados por famílias “reinantes”. À altura dos anos 1990s, os Mubaraks, os Gaddafis e os Ben Alis já parasitavam o “sistema mundo”, com economias neoliberais de livre mercado, abrindo as portas de seus países à predação pelos monopólios capitalistas, consumindo riquezas públicas para importar bugigangas, fossem carros de luxo na Tunísia, ou cigarros no Iraque.

Muito se tem escrito sobre o papel das redes sociais e da internet, cujo advento teria decidido a queda daqueles regimes. Há algum exagero nisso, mas há também um grão de verdade. Há vinte anos, o gesto de desafio de Bouazizi e os protestos que desencadeou bem poderiam ter passado despercebidos dos próprios tunisianos, porque o governo controlava completamente a mídia. Hoje, esse estado de monopólio da informação já não existe.

Governos autoritários no Oriente Médio dependeram do medo, para manter-se no poder. E foram colhidos de surpresa quando espancamentos e matança aos quais sempre recorreram para criar o medo, apareceram à vista de todos, na internet e em YouTube e passaram a provocar protestos. Quando o exército sírio esmagou o levante dos sunitas em Hama em 1982, matando cerca de 20 mil pessoas, não se viu um cadáver, nenhuma execução. Hoje, quando Israel bombardeia aldeias palestinas, as imagens percorrem o mundo em instantes.

O que mudou em 2011 não foram a violência, os espancamentos ou a corrupção. A novidade é que, hoje, os governos e todos os políticos têm de pagar preço político muito mais alto por recorrerem a esses métodos.

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O Brasil, poderosa nação emergente, dos BRICS, vive hoje momento sem precedentes em sua história recente, quando uma elite tradicional, que governou o país desde a redemocratização, em 1980, até ser alijada do poder na primeira eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vê-se vê-se afinal desmascarada como corrupta – agente de descomunal processo de malversação de fundos públicos havidos durante a privatização neoliberal dos anos 1990s, em livro recém publicado e que já é sucesso absoluto de vendas... e do qual a imprensa brasileira nada disse, ainda, até hoje, já passados vários dias do lançamento (e venda) do livro-denúncia.

Nada disso seria possível há alguns anos, antes do advento da internet. Não há dúvidas de que a internet está deslocando o centro de gravidade do poder: dos palácios e redações de jornais e redes de televisão, para o povo nas ruas, no Oriente Médio, e nos teclados, no Brasil.

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