Ida Dominijanni |
3/12/2011, Christian Marazzi,
entrevista a Ida Dominijanni, Il Manifesto,
Itália
The
State of Debt - The Thics of Guilt: Interview With
Christian Marazzi (em inglês, trad. Jason
Francis Mc Gimsey, de Uninomad 2.0)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Trabalho da Rede Tlaxcala de tradutores
Missão
impossível: salvar o euro, a avalanche da deseuropeização e o cataclismo
geopolítico que pode advir daí. Mas a crise tampouco pode ser resolvida com
“austeridade”, que só produz recessão e depressão.
Entrevista
com Christian Marazzi sobre expiação, depois do surto neoliberal, e sobre o
comum, como antídoto.
Christian
Marazzi é
economista, professor universitário na Suíça, em Pádua, em New York e em Genebra, e intelectual
ativista muito respeitado nos movimentos da esquerda radical; é também um dos
analistas mais lúcidos da atual crise financeira: foi dos primeiros a
diagnosticar, em 2009, o caráter histórico e o impacto global da crise; quando
explodiu nos EUA, Christian Marazzi, previu o inevitável envolvimento da
eurozona.
Analista
inteligente e afiado da financialização – o
modus operandi do
biocapitalismo pós-fordista – Marazzi não acredita que a crise seja superável ou
que se possam conter, com políticas economicamente duras, as suas contradições.
Começamos pelo resgate do euro, para, adiante, considerarmos o que vem pela
frente.
Il
Manifesto: O
desenrolar da crise provou que suas análises estavam certas. Em dois anos, o
epicentro da crise deslocou-se dos EUA para a Europa e, em apenas poucas
semanas, trocamos o risco de calote de vários países, entre os quais a Itália,
para o risco de colapso de toda a eurozona. Seria o colapso da União Europeia,
nos termos em que foi (mal) construída até agora. Em sua opinião, como a
situação pode evoluir?
Christian
Marazzi: As
entrelinhas das notícias são eloquentes. Na Europa, cresce a ira conta a rigidez
da Alemanha e de Angela Merkel. Ela não dá qualquer sinal de apoiar as duas
propostas que todos consideram indispensável para evitar o cataclismo na Europa:
a monetização da dívida soberana, pelo Banco Central Europeu (BCE) e a criação
dos eurobonds para reduzir o peso dos juros sobre eles nos
países mais vulneráveis aos mercados financeiros.
Il
Manifesto: Você
também considera indispensáveis essas medidas?
Christian Marazzi |
Christian
Marazzi: São
medidas importantes, mas infelizmente vêm tarde demais: a crise acelerou tanto
nas últimas semanas, que essas medidas tornaram-se inaceitáveis. Transformar o
BCE num verdadeiro banco central, como o Federal Reserve – que pode funcionar
como financiador de última instância para comprar os papéis dos países-membros
endividados, tirando o poder dos mercados para decidirem como e onde intervir –
é ideia sacrossanta, mas já é irrealizável, ante a fuga de capitais que já estão
voando para fora da eurozona. Vê-se a fuga bem claramente, no último leilão de
papéis alemães e nas 1.500 toneladas de ouro que, ao que se ouve dizer, acabam
de chegar à Suíça. Nesse ponto, a monetização da dívida, pelo BCE, só aumentará
a fuga de capitais e acelerará o colapso do euro. Não foi acaso que, até hoje,
até Draghi se oponha a essa solução.
O
mesmo vale para a instituição dos eurobonds, papéis lançados e
garantidos pelo conjunto dos países-membros para “mutualizar”, ou socializar, as
várias dívidas soberanas: também é medida sensível, mas a probabilidade é zero,
de vê-la posta em prática, porque os países mais fortes, como França, Holanda,
Finlândia, Áustria e Alemanha veriam subir instantaneamente as suas taxas de
juros, num momento em que as empresas já enfrentam aumentos dolorosamente
proibitivos no preço do dinheiro, porque o dinheiro líquido em circulação
encolhe dia a dia.
Seja
como for, nem o acordo parcial a que chegaram na Cúpula de Bruxelas na 5ª-feira,
nem a austeridade máxima imposta a países endividados conseguirá ser ‘austera’ o
suficiente para resgatar o euro. Não será resgatado. É questão de
tempo.
Il
Manifesto: Você,
então, prevê um colapso?
Christian
Marazzi: O fato
é que a crise da moeda única construída por princípios monetaristas e
neoliberais chegou a um beco sem saída. Aparece bem claro, na rigidez de Merkel,
que é movimento tático para tornar inevitável o afastamento da Alemanha, do
euro, e aproximar a Alemanha, outra vez, do marco. Há novas reuniões já
mencionadas, talvez entre o Natal e o início de janeiro, quando todos estivermos
ocupados com outras coisas. A inconvertibilidade do dólar também foi resolvida
assim, nos feriados do verão, em agosto. Aqui na Suíça já há lendas urbanas, em
circulação, sobre o início da impressão de notas de marcos.
Il
Manifesto: Se
realmente acontecer, teremos que tipo de cenário?
Christian
Marazzi: Nascerá
uma forte zona monetária, com Alemanha, Holanda, Finlândia e Áustria, com o
franco suíço e a coroa sueca amarrados. O euro, fortemente desvalorizado e com a
consequente inflação, continuará a ser a moeda dos países fracos os que, em
troca, encontrarão o meio para reduzir suas dívidas. Nessa hipótese, a França é
a carta coringa. Para os países mais destruídos pelos mercados, será um
cataclismo no plano econômico.
Mas
o verdadeiro cataclismo será geopolítico. De fato, essa fissura iniciaria um
processo de des-europeização, com um eixo de Alemanha, China, Rússia e Brasil, e
outro de França e EUA.
Não
é ficção científica e as agências financeiras internacionais já trabalham com
esse modelo. Contudo, o que ninguém diz que isso pode, sim, iniciar uma Guerra
Fria com China, Rússia e Turquia coordenando ações para defender o Irã contra as
ameaças de Israel. É muito preocupante que ninguém esteja discutindo essa
questão: a situação dos iranianos é explosiva.
Também
é muito preocupante que só se fale da crise europeia e que se ignore a situação
dos EUA onde, até hoje, continua a crise dos papéis podres, o número de pobres
já alcança 46 milhões, o desemprego é de 15% (em vários setores é três vezes
maior que isso), Obama nada consegue fazer, e a única esperança de que seja
reeleito é a agressividade, a loucura, dos Republicanos.
Il
Manifesto: Há
diferenças entre as tendências da crise nos EUA e na Europa?
Christian
Marazzi: No
plano econômico, não. As dívidas soberanas na Europa são equivalentes aos papéis
podres que circulam nos mercados dos EUA; os estados endividados representam o
mesmo papel que as pessoas, os indivíduos, endividados. Mas há uma diferença,
com desvantagem para a Europa, e é desvantagem política. Melhor ainda, é
diferença nos planos institucional e constitucional: na Europa não há
Constituição nem há Banco Central. Há o BCE, mas que delega a monetização das
dívidas aos mercados, injetando liquidez nos mesmos bancos que ajudaram a criar
a dívida pública e que, hoje, especulam contra ela.
Il
Manifesto: Nesse
quadro macrorregional e global, que papel têm e que sentido fazem as políticas
nacionais de ‘austeridade’? Na Itália, criaram-se muitas expectativas com a
transição Berlusconi-Monti e o surgimento da equipe “técnica” de Monti, se não
de alguma recuperação da credibilidade, pelo menos de algum poder efetivo para
intervir nos mercados ou em dinâmicas que dependam deles. Mas que efeito podem
ter os chamados “sacrifícios” sobre a dívida soberana e a especulação contra
ela?
Christian
Marazzi: Não
como sair da crise. A Itália não sairá da crise: a recessão já está à vista, e
estará completamente à vista em poucos anos. As políticas de “austeridade” têm
efeito deflacionário, porque comprimem a demanda interna e não cabe esperar que
as exportações compensem isso. Mas só se fala sobre políticas de “austeridade”,
porque esse é o catecismo neoliberal que ainda prevalece na Europa e em todo o
ocidente e é muito duro de matar.
As
medidas de “austeridade” são usadas e continuarão a ser usadas como “medidas
emergenciais” ou, para usar o termo de Naomi Klein, como “economia de choque”,
porque permitem fazer coisas que não se podem fazer em tempos normais: arrochar
salários, reduzir empregos públicos, atacar sindicatos; o famoso “açougue
social”. Essa é a lógica da crise da governança: uma regulação técnica e
tecnocrática das relações sociais, no estado de emergência.
O
vice-primeiro-ministro da China disse muito bem, em entrevista ao Financial Times: o que vem pela
frente é uma nova Idade Média financeira e social.
Il
Manifesto: E com
que características políticas e antropológicas? Você jamais fala só de
economia...
Christian
Marazzi: Alguns
processos já estão visíveis. O primeiro, é a precarização da Constituição. O
segundo – você também escreveu sobre ele, analisando a “passagem para Monti” – é
a autonomia política que passa a valer zero no estado de exceção. O terceiro é a
passagem de um estado de bem-estar para um estado de dívida, no sentido de
falta, de carências dentro da sociedade: nesse estado, o social representa-se
ele mesmo, sob a forma das dívidas e dos disciplinamentos; é disciplinado, de
fato, pela própria dívida.
Ou, então, é disciplinado pela dívida e pela culpa, nos
dois sentidos da palavra Schuld em alemão: um termo nietzscheano, que reapareceu no coração
do maravilhoso livro de Maurizio Lazzarato,
La fabrique de l'homme endetté
[A Fábrica do Homem Endividado][1]
. É a
dívida como ferramenta antropológica da autodisciplina do homem neoliberal.
Il
Manifesto: É bem
claro no que está acontecendo na Itália, onde, numa piscadela, passamos da ética
do prazer, nos 20 anos de reinado de Berlusconi, para uma ética de penitência,
com o governo Monti. Mas por quanto tempo você acha que essa ferramenta pode
durar? O sujeito neoliberal descrito por Foucault, o empresário-de-si-mesmo que
se alimenta de consumo e endivida-se, está alimentando-se agora de culpas pelas
próprias dívidas? Houve alguma evolução, ou vivemos a crise da ética
neoliberal?
Christian
Marazzi: Por
hora, vejo uma completação, uma realização: o neoliberalismo está realizado, na
essência, nessa fábrica que fabrica o homem endividado. O empresário-de-si-mesmo
produz as próprias dívidas que agora o disciplinam mediante uma ferramenta, a
culpa. Mais que isso, há também a completação, a realização, ou a revelação, da
essência do dinheiro: dinheiro é dívida, a financialização do capital nos
transformou todos em sujeitos endividados; o valor é produzido pela via
negativa, por uma máquina depressiva.
Il
Manifesto: Mas há
os indignados, os que não concordam, os que se rebelam, felizmente. O que você
pensa dos Indignados e de Occupy Wall Street?
Christian
Marazzi: Para
ficarmos com Foucault, ele diria que os
Indignados são um
movimento parresiástico [2]:
movimento de pessoas que dizem a verdade. Denunciando a hipocrisia dos mercados,
revelando que todas as dívidas são “odiosas”, ilegítimas, fruto de usura,
ganância e expropriações, declarando que os bancos provocaram essa crise e não
pagarão por ela. Tudo isso significa afirmar a verdade, do ponto de vista do
povo, contra os mercados. Assim, o movimento de Madrid trabalhou um espaço de
absoluta democracia, como uma grande assembleia constituinte do comum, baseada
no estar e permanecer juntos no espaço público: uma espécie de virar pelo avesso
a ética hobbesiana do medo, depois do
qual se tornam para mim muito claramente visíveis uma marca “feminina” nas
práticas relacionais e uma ecologia política do cuidado.
O
crescimento do movimento em escala europeia é o único antídoto ao processo de
deseuropeização que discutimos no início. Mas um ânimo constituinte também está
presente, sob a forma de autodeterminação local.
Não
há outro modo para quebrar a ferramenta-chave do pós-fordismo, a exploração do
conhecimento e das relações, se não se investe na produção do comum, sobretudo
hoje, quando as políticas de “austeridade” trazem mais privatização e venda de
bens comuns – da água ao patrimônio cultural. Mas produzir o comum significa
organizar-nos em planos locais, nos equiparmos, nós mesmos, para resolver os
problemas de fornecer a nós mesmos a água, a eletricidade, o transporte,
saneamento básico, e até, porque não, serviços bancários nos nossos próprios
bairros.
Il
Manifesto: Loretta
Napoleoni, com quem você se reunirá hoje numa livraria feminista em Milão,
escreveu, há dois anos, que hoje, no mundo, só as finanças islâmicas ainda
preservam a função social dos bancos. E que deveríamos redescobrir as finanças
islâmicas de, pelo menos, um ponto de vista: nas finanças islâmicas não há
especulação.
Christian
Marazzi: É
verdade, no sentido de que temos de reintroduzir o nível justo de solidariedade,
no coração das contradições produzidas pela crise. Uma re-socialização da dívida
e atenção à função social original dos bancos pode ser um caminho para deter, a
nosso favor, a financialização do capital, enfrentando essas questões.
Il
Manifesto: Mas a
financialização pode ser interrompida ou revertida? Você explicou que a economia
da finança já não pode ser separada da economia real e que isso é resultado de
os comportamentos e as formas de vida das pessoas comuns terem sido envolvidos
no mesmo processo: o consumidor que compra picolés com cartão de crédito;
trabalhadores que organizam fundos de pensão, classes médias que se afundam na
miséria por insistir em comprar casas hipotecadas a bancos, os pobres que se
afogam em dívidas, para as quais só têm a oferecer, como garantia, a própria
“vida nua”... Se isso é verdade, será ainda possível des-financializar o
sistema, parcialmente, pelo menos? Ou trata-se, só de extrair daí pelo menos um
pouco dos abusos dos bancos? E se produção e consumo são processos tão
intimamente conectados às dívidas, é possível ainda evitar os resultados mais
recessivos e depressivos da crise?
Christian
Marazzi: A
des-financialização está sendo usada pelo próprio capitalismo, na forma
recessiva que adota para reduzir a dívida, que já discutimos. É uma forma que
deprime a demanda e o consumo. E a disciplina da dívida, que deprime a vida
propriamente dita. Em vez disso, temos de trabalhar para reconverter a renda
privada em renda social: socializar a dívida, relançar a demanda e o consumo de
bens socialmente úteis, reapropriar-nos do espaço público, reconstruir a
socialidade e a felicidade coletiva. Isso, precisamente, é o comum e não há
outro meio para escapar da espiral automutilante da financialização. Algumas das
palavras-chaves que se usaram nas lutas sociais nos últimos anos, como a renda
mínima e uma taxa Tobin, já trabalham nessa direção.
Il
Manifesto: E o
que você pensa sobre o direito à insolvência? Os movimentos sociais
apresentam-no como um direito de resistir à financialização da vida, muitos
economistas disseram que é movimento demagógico, outros veem aí a possibilidade
de restaurar a soberania nacional negada pela tecnocracia europeia.
Christian
Marazzi: Acho
que está certo se se tornar prática subjetiva e contextual, mas não se for
deixada nas mãos do estado. Por exemplo, nos EUA uma bolha de empréstimos
estudantis vem engordando já há algum tempo, equivalente a mais ou menos metade
do volume das hipotecas podres: nesse caso, o direito à insolvência deve, sem
dúvida alguma, ser exercido pelos estudantes e suas famílias, para demarcar a
diferença entre dívida legítima e dívida ilegítima. Mas o estado não pode fazer
isso, nem servir-se disso para renovar alguma soberania nacional
perdida.
Notas
dos tradutores
[1]
LAZZARATO, Maurizio, La fabrique de l'homme endetté : Essai
sur la condition néolibérale, Paris, Ed. Amsterdam,
2011.
[2]
Do
gr.
Parrhêsia [port. parrésia]. Retórica. Figura do
discurso: “dizer sinceramente”, “dizer tudo”, “falar livremente”. É figura do
discurso ético, indispensável no discurso filosófico, por exemplo, no Górgias
(Resumo) de Platão, onde significa não só a
liberdade para falar, mas a obrigação de enunciar a verdade, com vistas ao bem
comum, mesmo que sob risco pessoal. Foucault
reflete sobre esse conceito em conferências em Berkeley, em 1983:
“Na
parrésia, o falante faz uso de sua liberdade e opta por falar francamente em vez
de persuadir; pela verdade, em vez da mentira ou do silêncio; pelo risco de
morrer, em vez da vida e da segurança; pela crítica, em vez da bajulação; pelo
dever moral, em vez dos próprios interesses e da apatia moral” [Le
gouvernement de soi et des autres: le courage de la vérité (1984)/GROS,
Frederic (Org.), Foucault: A coragem da
verdade, Lisboa: Ed. PARABOLA,
2004.
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