Publicado
em 01/12/2011 por *Mair Pena
Neto
Os países precisam se confrontar com seus horrores para
se encontrarem consigo mesmo. A Alemanha precisa de um museu do Holocausto para
saber o que provocou de barbárie e de dor. Imagino como deva ser sofrido a cada
alemão entrar neste museu, em Berlim. Os que apoiaram o
nazismo se vêem diante do espelho. Os filhos dos que apoiaram Hitler testemunham
do que seus pais foram capazes. E os que estão mais afastados do que aconteceu
no regime fascista conhecem a história do país para não
repeti-la.
Este
expurgo é necessário para virar a página. Sem ele, o trauma fica lá, guardado,
sem resolução, pronto a ser expelido a qualquer momento, de uma forma ou de
outra. Esta é a necessidade de uma comissão da verdade no Brasil, que passe a
limpo a história do país durante a ditadura militar que nos governou por duas
décadas. Ela é imprescindível para que o país siga adiante e irá acontecer da
forma como é necessária.
Mas
se uma comissão está a caminho, qual a razão deste discurso? É que a comissão
anunciada nasce meio tolhida, constrangida, premida por prazos curtos como se
estivesse avançando um sinal proibido. Pisa-se em ovos para não melindrar os
antigos donos do poder, que estão na berlinda. A filha de Rubens Paiva foi
impedida de discursar no ato de assinatura da lei que criava a Comissão da
Verdade para que os militares não se sentissem ofendidos. Ora, o propósito da
comissão, como se deduz de seu próprio nome, é trazer a verdade à tona. E a
verdade incomoda. Se fosse ao contrário, sua existência não se
justificaria.
Vera
Paiva iria cobrar, como se viu no discurso que publicou na internet, que a
comissão fosse autônoma e soberana de fato para investigar a verdade dos fatos
terríveis que afetaram e ainda afetam a vida de muitas famílias brasileiras até
hoje. As revelações serão incômodas, não apenas para militares e policiais, mas
para civis e empresários que apoiaram o regime, inclusive financeiramente,
conscientes de que estas verbas financiavam a repressão política e seus centros
de tortura.
Esta
Comissão da Verdade é, inequivocamente, um avanço, mas enfrentará resistência de
muitas partes. Se conseguir trabalhar livremente, ter acesso ao maior número de
documentos, inquirir os que tentam ocultá-los e desfrutar de um espaço
permanente de divulgação de suas ações, poderá fazer um bom trabalho. Caso não
seja possível, não será o fim da história.
O
Brasil passará por tantas comissões quantas forem necessárias até recontar cada
detalhe do que foi o negro período do terror de Estado promovido pelos
militares. O Museu do Holocausto, em Berlim, levou 60 anos após a derrota do
nazismo para ser construído e ainda o foi a tempo. Se a Comissão da Verdade não
funcionar como a da África do Sul, após o apartheid, ou não conseguir ir tão a
fundo como as de nossos vizinhos chilenos e argentinos, ela renascerá em outro
momento para finalizar o que ficar inacabado. O próprio Chile é um exemplo neste
sentido. Uma primeira comissão de verdade e reconciliação, criada em 1991,
reconheceu pouco mais de duas mil mortes durante o regime de Pinochet. Sabia-se
que o número era muito superior, e uma nova comissão nasceu, dois anos depois,
para constatar, em uma segunda reabertura, em 2009, que os mortos eram mais de 3
mil e que as vítimas da ditadura, incluindo mortos, presos ou torturados
alcançava 40 mil pessoas.
Este
é um processo sem ponto final, como governantes conservadores tentaram fazer na
Argentina. Lá, leis semelhantes à da Anistia, que impediam os julgamentos dos
responsáveis pelas torturas, desaparecimentos e mortes, foram atropeladas pelo
vagão da história, e cerca de 500 envolvidos no terrorismo de Estado estão na
cadeia, incluindo ex-integrantes da junta militar, como Jorge Videla. A nossa
Comissão da Verdade deve ser vista como um primeiro passo rumo ao esclarecimento
do que se passou por aqui nos anos de chumbo. Muita coisa acontecerá depois que
os fatos de causar horror vierem ao conhecimento público com detalhes ainda
desconhecidos.
*Mair
Pena Neto é jornalista
carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, Agência Estado e Agência
Reuters. No JB foi editor de política e repórter especial de
economia.
Enviado por Direto da Redação
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