Bruno Cava |
6/12/2011, Bruno Cava, Coletivo
Amálgama –
Enviado pelo pessoal
da Vila
Vudu
Resenha de: FUMAGALLI, Andrea; MEZZADRA, Sandro (orgs.)
“A crise da economia
global. Mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários
políticos”. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011,
364 páginas
“É preciso organizar
a crise, antes que o capitalismo se reorganize em nome
dela”
"A crise da economia global: Mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos", de Andrea Fumagalli e Sandro Mezzadra |
O capitalismo é
crise. E não morrerá de morte natural, como dizia Walter Benjamin. Aprendeu a
governar a crise, alimentar-se dela, perpetuar-se nela. Mas, quando a palavra
capitalismo volta à ordem do dia, algo vai mal no reino. Até pouco tempo atrás,
era simplesmente romântico falar em capitalismo. Esse é um livro sobre a crise.
Traz o sentido da urgência de quem vive tempos comprimidos, críticos. É motivado
pela premência de organizar a crise, antes que o capitalismo se reorganize em
nome dela.
Nessas horas, nada
mais oportuno do que uma política radical. Radicada nas causas materiais e nas
lutas concretas, de baixo pra cima, somente uma atuação política que vá às
raízes pode evitar que a crise se traduza em regimes políticos muito piores, em
warfare, em novos-velhos racismos e
fascismos. Eis a primeira premissa, que explica o subtítulo: “mercados
financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos“.
O desenrolar de
narrativa, que vai das finanças à revolução, não se vai encontrar nas páginas de
economia dos jornais ou nas revistas “especializadas”. Nas 364 páginas, nove
pesquisadores ligados à rede militante Universidade Nômade oferecem
interpretações outras para a crise da economia global. Seu foco é os EUA e a
Europa, foco dos múltiplos colapsos de 2007 até hoje. Suas inquietações: qual a
participação das pessoas não só como objetos da crise, mas como sujeitos? Quais
as oportunidades para a organização política? Como reabrir um horizonte de
mudança radical, à altura de nossos tempos? Em meio a tantos especialistas de
olhos azuis e populismos de última hora, o que se pode
fazer?!
A resposta padrão
à crise tem sido reportá-la à esfera econômica. E ponto. Contorna-se o aspecto
propriamente político, a dimensão social, para atribuir a crise a desvios,
abusos ou corrupções da ordem financeira. A culpa é de um capitalismo financeiro
demasiado desregulado e corrompido. No fundo, é desses yuppies de Wall Street, sua ganância, seu cotidiano
profissional que mistura ética de pôquer com videogame, regado a cocaína, uísque
e putas de luxo. E quando tudo vem abaixo como um castelo de cartas, saem à
francesa com “greed is good and so is Marx” [1].
Então é hora de
pôr os pés no chão e chamar os tecnocratas para salvar o que resta da economia
global. Fazer o que tem de ser feito, sem muita firula, sem inventar moda. É
caso de opor-se a especuladores e favorecer empreendedores reais e produtivos.
Retornar aos bons tempos do século 19, saudosos da teoria do valor de David
Ricardo, em que o melhor para os trabalhadores é aliar-se aos bons capitalistas
— esses que organizam a produção e geram a riqueza, a ser ordenadamente
distribuída, a cada um o seu. Ética do trabalho, da produção real, do
desenvolvimento sustentável, contra todo tipo de rentismo fácil. Eis o discurso
do Partido Republicano dos EUA e do Tea
Party, que o livro descarta.
Para os autores, a
financeirização da economia não é acessória ou dispensável. Não basta regulá-la,
coibi-la, mitigá-la — para revalorizar a dinâmica real que lhe serviria de
substrato. Na cópula “capitalismo financeiro”, o “financeiro” está sobrando.
Isso já sabia Rudolph Hilferding, no clássico de 1909. As finanças estão
disseminadas por todo o ciclo econômico, social e político. Não há mais opção de
voltar atrás em busca do elo perdido do capitalismo produtivo. Na produção,
circulação, distribuição e consumo, habita o crédito como elemento essencial. As
operações econômicas de um modo ou de outro passam pelos bancos, pelos cartões
de crédito, pelas prestações, pelos investimentos a curto, médio e longo prazo,
pela atribuição de valor segundo as ações, as cotações na bolsa, os juros e as
expectativas. Hoje, não se fala mais em previdência, educação ou saúde sem falar
nos fundos de investimento correspondentes: públicos ou privados ou
público-privados. A métrica passa a ser definida pelas bolsas de valores, que,
sob a mão invisível dos grandes
players, repartem as cotas de mais-valor entre a
massa.
Uma tese do livro
sustenta que, para a roda continuar girando — na lógica capitalista de
rendimentos a curto prazo e líquidos –, só mesmo ampliando a base financeira.
Isto significa implementar uma política monetária expansiva, alavancar
(leverage) em fluxo permanente e versátil, e engendrar mirabolantes
produtos financeiros (securitização, refinanciamento, mercado futuro ou
opções, swaps, etc.). Portanto,
menos do que ganância de um punhado de tubarões de Wall Street, o sistema capitalista se
dilatou na financeirização por razões estruturais. Foi o que contribuiu para
manter o aquecimento da economia americana e do mundo por boa parte da década
passada. Por isso, quando Alan Greenspan se dizia movido por ideologia, não
estava de todo errado. De fato, na lógica sistêmica, era
coerente.
Para os autores, a
crise não é um problema técnico, como se acontecesse acima das nuvens, numa
atividade esotérica reservada aos iniciados. É um problema de todos nós. Somos o
alfa e o ômega da financeirização, numa reedição contemporânea da servidão
voluntária. É que a financeirização não se trata de uma etapa do capitalismo,
mas de uma forma específica de governo, de um “modo de regulação”, de uma
“governança social” com dimensões políticas, morais e
jurídicas.
Nessa forma de
governo, o endividamento é uma estratégia. Ele é encorajado e chega mesmo a
valer a pena. Se, antigamente, as pessoas eram consideradas incluídas quando
conquistavam o welfare (emprego e
seguridade social), agora o são quando auferem acesso a crédito abundante. Daí
se torna normal financiar (e refinanciar) a casa própria, bens de consumo, os
negócios, a bolsa de estudos, o plano de saúde, o casamento da filha, a viagem
internacional etc. etc..
Vive-se uma
sociedade de acionistas, investidores, rentistas e 99% de endividados. Através
do crédito, as pessoas acabam enquadradas e amarradas a estilos de vida. É uma
moral creditícia, que demanda meticuloso planejamento da carreira, do
patrimônio, da família. Suas expectativas de consumo são formatadas,
metrificadas e, assim, capitalizadas. É como se o desejo fosse projetado para o
futuro, dando origem a um duplo, a sua gêmea maligna: a esperança. Essa colossal
esperança do conjunto da sociedade endividada é então processada
(financeiramente) em títulos e promissórias. Por sua vez, esses papéis são
garantidos por outros títulos, por outros produtos financeiros, os
“derivativos”. O futuro é derivado do presente e então capitalizado. Estes se
multiplicam como os pães de Jesus, à casa da dezena (2004), da centena de
trilhão de dólares (2008). O fiador definitivo dessa sofisticada corrente de
Santo Antônio? A fé no sistema. Daí que descrer no capitalismo já é
resistir.
Que é essa
operação milagrosa senão a colonização massiva e sistemática do futuro, das
crenças populares, do enquadramento no sistema capitalista e sua forma de
governar? Nunca o capitalismo foi tão místico, tão abstrato na sua maneira de
medir e distribuir a produção social. E injustamente. O rentismo financeiro tem
produzido uma brutal transferência de renda dos mais pobres aos mais ricos. Boa
parte dessa expropriação se dá com o aumento da dívida pública. Com a crise, os
estados emitem títulos para salvar os bancos, comprar títulos tóxicos
(desvalorizados), semi-nacionalizar empresas (como a GM americana) e reinjetar
liquidez. Acabam transferindo boa parte da arrecadação aos agora rentistas da
dívida pública. Assim, pode parecer que as bolhas estouram no vácuo, na ficção
de créditos e títulos derivados. Porém, no fundo desse processo, enormes jazidas
humanas estão sendo governadas e espoliadas, na produção, distribuição ou
consumo. Na realidade, por todo o ciclo econômico, já que as finanças atuam em
cada momento.
Para os autores, a
crise é mais do que um acidente de percurso. A crise foi precipitada pela
própria sociedade, por 99% dela. Se, com efeito, o sistema consegue governar a
esperança e o medo (da insegurança), não pode fazer o mesmo com o desejo, que se
coloca sempre em relação de desmedida. Daí a crise dos subprimes nos EUA, no fundo, basear-se
numa luta social pela moradia (hipotecas…) e pela educação (bolsas…). A crise da
dívida soberana européia, por sua vez, na precarização das populações, sem
crédito nem welfare; principalmente
os jovens, que protagonizaram os movimentos do 15 de Maio e do 15 de Outubro. Já
as insurreições na Inglaterra se ancoram na desigualdade social, tão aparente em
termos de consumo. O movimento Occupy, na percepção derradeira que a
verdadeira forma de governo vigente no ocidente não é a democracia liberal
representativa, de fachada, mas uma aristocracia capitalista, profundamente
ideológica, articulada globalmente e entranhada nos principais estados-nações.
Para os resistentes ficou claro como, de cima pra baixo, não tem como sair nada
de bom: nem novo Bretton Woods, nem
novo New Deal.
Há um fracasso
generalizado nas tentativas de saída da crise, porque ela acontece fora da
lógica simplesmente financeira. Não há sinal da tão esperada reacomodação de
crenças e confianças na economia política em vigor. Em 2011, os tumultos
cresceram e se multiplicaram. O xis da questão continua sendo o conflito entre o
desejo social e a lógica dos mercados, entre as forças produtivas (a multidão) e
as relações de produção (a governança financeira). A crise é da
medida.
Mas que os autores
propõem? Além de apostar as fichas no poder criativo das redes militantes,
acampadas e tumultos?
Entre outras
coisas, a rediscutir o que efetivamente se deve. Até que ponto as pessoas tem de
pagar pelo colapso do sistema de crédito, pela socialização das perdas operada
pelos estados? Em tempos de crise global, é plausível falar em um direito ao
calote [2]. Para ajudar não os
bancos, mas as pessoas. Uma das tentativas de instituí-lo nos EUA se deu com a
Lei de Ajuda às Famílias para Salvar Suas Casas (2009). O projeto original
continha inédita cláusula que autorizaria o juízo de falência a modificar o
valor devido pelas pessoas, quando do resgate das hipotecas. Mas o Senado
americano vetou-a.
Em segundo lugar,
os artigos convergem ao redor do direito à renda universal. Se o capitalismo se
tornou rentista, também é nesse caminho que se pode imaginar a reapropriação da
riqueza. Menos assistencialismo ou justiça social do que a devida remuneração à
população. Como o valor é extraído difusamente em todo o ciclo econômico, nada
mais justo do que restituir a parte dos produtores. É a “ressocialização da
moeda”, que opera dentro e contra a financeirização da vida. Na renda universal,
trata-se de desquantificar o valor de troca e requalificar o próprio sentido do
dinheiro e da riqueza.
A qualidade desse
livro está em fazer o percurso inverso do economês predominante. Ou seja,
resgatar a crise do capitalismo global das páginas de economia e reportá-la à
sua dimensão política. Afinal, o quanto pode ser extorquido de nós nunca deixou
de ser uma questão política.
Notas do autor
[1] 11/8/2011, Wall Street
Journal (entrevista com Nouriel
Roubini), em: “Nouriel
“Dr. Doom” Roubini: Karl Marx Was Right” (em
inglês).
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