Samir Amin |
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Samir
Amin é diretor do Fórum
do Terceiro Mundo, associação internacional de intelectuais da África, Ásia e
América Latina, com sede em Dakar, Senegal, que visa a fortalecer os esforços
intelectuais e os laços entre os países
do Terceiro Mundo.
Ante
o que chama de “a farsa democrática”, Samir Amin levanta uma questão
essencial:
“Assim
sendo... Renunciar às eleições? Não.
Mas
como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que dêem às
eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para
elas?”
Para
Samir Amin, aí está o desafio que temos de enfrentar.
Leia
antes Parte
1/2
O
vice-rei Mohamed Ali (1804-1849) e os quedivas [1]
até os
anos 1870s optaram por uma modernização aberta à adoção de fórmulas de modelos
europeus. Não se pode dizer que essa opção fosse uma “ocidentalização” de
pacotilha. Os chefes do estado egípcio davam importância à industrialização
modernizante do país, não à adoção, unicamente, do modelo de consumo dos
europeus. Interiorizaram a assimilação dos modelos europeus associando-os à
renovação da cultura nacional e contribuindo para fazê-la mover-se no sentido do
laicismo, e a prova está nos seus esforços para apoiar a renovação da língua.
Claro que o modelo europeu em questão era o modelo capitalista e sem dúvida não
avaliavam a exata medida do caráter imperialista daquele modelo. Mas não se pode
recriminá-los por isso. E quando o quediva Ismail proclamou seu objetivo –
“fazer do Egito um país europeu” – ultrapassou Ataturk em 50 anos; e planejava
associar aquela “europeização” ao renascimento nacional, não à negação desse
renascimento.
As insuficiências
do Nahda [“Renascimento Árabe”] cultural da época
(sua incapacidade para compreender o que fora o Renascimento europeu), e o
caráter “passadista” que dominava os conceitos do Nahda, sobre os quais escrevi, não
são segredo para ninguém.
Saldo disso é
precisamente a visão predominantemente passadista que se imporá ao movimento de
renovação nacional no final do século 19. Ofereci uma explicação para isso: a
derrota do projeto “modernista” que ocupara o proscênio entre 1800 e 1870 levou
o Egito a regredir. E a ideologia da recusa daquele declínio cristalizou-se
naquele momento de regressão, com todas as deformações que isso implicava. Os
fundadores no novo Partido Nacional (Al hisb al watani), no final do
século 19, Mustafá Kamel e Mohamed Farid, escolheram o passadismo como eixo
central de seu combate, como se vê, dentre outras evidências, em suas ilusões
“otomanistas” (apoiar-se em Istambul contra os ingleses).
A história
provaria o erro dessa escolha. A revolução nacional e popular de 1919-1920 não
foi conduzida pelo Partido Nacionalista, mas por seu adversário “modernista”, o
Partido Wafd. Taha Hussein retoma então o slogan do quediva Ismail: “europeizar
o Egito”; apoiar para essa finalidade a nova Universidade e marginalizar o Azhar [uma das principais mesquitas e entidades
islâmicas do Egito].
A tendência
passadista, herdada do Partido Nacionalista, logo deslizaria para a
insignificância. Seu líder – Ahmad Hussein –, nos anos 1930 já não passa de
chefe de um partido minúsculo, que pouco depois seria atraído pelo fascismo. Mas
a tendência passadista reapareceria fortemente presente, outra vez, entre os
oficiais livres que, em 1952, derrubariam o rei.
As ambiguidades do
projeto de Nasser são o resultado desse recuo, no debate sobre a natureza do
desafio. Nasser tenta associar alguma modernização, que mais uma vez não era de
pacotilha, fundada na industrialização, ao apoio a algumas das ilusões
passadistas. Pouco importa que o projeto de Nasser inscreva-se – ou tenha
suposto que se inscrevesse – numa perspectiva “socialista”, evidentemente
desconhecida no século 19. A atração que o passadismo exercia
sobre ele continua lá. As opções relacionadas à “modernização do Azhar”, que já critiquei, são prova
disso.
O conflito entre
as visões “modernistas, universalistas” de uns e as visões “passadistas
integralistas” de outros ainda ocupam o proscênio no Egito. As primeiras são
defendidas, principalmente, pela esquerda radical (no Egito, de tradição
comunista, forte nos anos imediatamente posteriores à II Guerra Mundial),
ouvidas pelas classes médias esclarecidas, sindicatos operários e, ainda mais,
pelas novas gerações. O passadismo tende mais à direita, com os Irmãos da
Fraternidade Muçulmana, que adotou posições extremas na interpretação mais
arcaica do Islã (promovida pela Arábia Saudita), o
wahabismo.
Não é
difícil chamar a atenção para o contraste que há entre essa evolução, que fechou
o Egito num impasse, e a via adotada pela China depois da revolução dos Taipings
[2], que o maoísmo retomou e
aprofundou: a construção do futuro passa pela crítica radical do passado. “A
emergência” no mundo moderno e, portanto, a proposição de respostas eficazes ao
desafio, inclusive o engajamento na via da democratização – cujas linhas gerais
exporei adiante, nesse artigo – são condicionadas pela recusa a fazer do
passadismo o eixo central da renovação.
Não é pois por
acaso que a China está hoje na vanguarda dos países “emergentes”. Tampouco é
acaso que, na região do Oriente Médio, a Turquia, não o Egito, inclua-se no
mesmo pelotão. A Turquia – mesmo a do Partido AKP “islâmico” – beneficia-se da
ruptura que, ao seu tempo, foi o kemalismo. Mas a diferença entre a China e a
Turquia é diferença decisiva: a escolha “modernista” da China já se inscreve
numa perspectiva que se deseja “socialista” (e a China está em conflito com o
hegemonismo dos EUA, quer dizer, com o imperialismo coletivo da Tríade),
perspectiva que veicula oportunidades de progresso, enquanto a “modernidade” da
Turquia contemporânea, que não cogita de sair da lógica da globalização
contemporânea, é via sem futuro. Seu sucesso é só aparente e
provisório.
A
associação entre a tendência modernista e a tendência passadista que se encontra
em todos os países do grande Sul (as periferias), evidentemente em fórmulas
diversas. A confusão produzida por essa associação aparece numa de suas
manifestações mais visíveis na profusão de discursos ineptos sobre “as formas do
passado que se pretendiam democráticas”, trazidas a nu, sem crítica. A Índia
independente faz o elogio dos
panchayat [3]; os muçulmanos, da shura;
os africanos, da “árvore que fala”, como se essas formas da vida social do
passado tivessem algo a ver com os desafios do mundo moderno. A Índia é a maior
democracia (por número de eleitores) do planeta? Ou essa democracia eleitoral
ainda é e continuará a ser farsa, enquanto não se fizer a crítica radical do
sistema de castas (herdado, também ele, do passado), até aboli-lo? A shura continua a ser veículo para pôr em ação a
Xaria, interpretada no sentido mais reacionário, inimigo da
democracia.
Os povos da
América Latina enfrentam hoje esse mesmo problema. Compreende-se facilmente a
legitimidade das reivindicações “dos indígenas”, se se sabe o que foi o
colonialismo interno ibérico. Alguns discursos indigenistas pouco criticam os
passados locais envolvidos na questão. Mas outros, sim, criticam aqueles
passados e fazem avançar os conceitos ao associar, de modo radicalmente
progressista, as exigências universalistas e o potencial que se acumula na
evolução do que se herda do passado. Nesse sentido, os debates bolivianos são,
provavelmente, muito ricos. A análise crítica dos discursos indigenistas em
questão, feita por François Houtart (El concepto de Sumai Kwasai) acende
nossas lanternas. A ambiguidade aparece muito destacada nesse estudo notável,
que passa em revista o que me parece ser a provável totalidade dos discursos
sobre o tema.
A contribuição –
negativa – do passadismo na construção do mundo moderno é de tal ordem, que pode
ser detectada não só nos povos das periferias. Na Europa, além de seu quarto
noroeste, as burguesias estavam enfraquecidas demais para engajar-se em
revoluções como na Inglaterra ou na França. O objetivo “nacional” –
particularmente na Alemanha e na Itália, depois também na direção do leste e do
sul do continente – serviu como meio de mobilização e de guarda-chuva para
compromissos “meio-burgueses/meio-velhos regimes”. O passadismo mobilizado aqui
não foi “religioso”, mas “étnico”, fundado numa definição etnocêntrica da nação
(na Alemanha) ou numa leitura mitológica da história romana (na Itália). O
desastre está aí à vista – o fascismo e o nazismo –, a ilustrar o caráter
arquirreacionário, com certeza antidemocrático, do passadismo nessas formas
“nacionais”.
A
alternativa universalista: a autêntica e plena democratização e a perspectiva
socialista
Falarei aqui de
democratização, não de democracia. A democracia, reduzida como está nas fórmulas
impostas pelos poderes dominantes, já não passa de farsa. A farsa eleitoral
produz um parlamento “esgoto” impotente, com o governo como único responsável
frente ao FMI e à OMC, quer dizer, frente aos instrumentos dos monopólios da
tríade imperialista. A farsa democrática está agora completada pelo
“discurso-dos-direitos-do- homemista”, que insiste no respeito ao direito de
protestar, sob a estrita condição de que o protesto jamais ponha em questão o
poder supremo dos monopólios. E o protesto também já foi criminalizado,
associado, como foi, ao “terrorismo”.
A democratização,
concebida em contraponto como plena, quer dizer, dizendo respeito a todos os
aspectos da vida, inclusive, claro, à gestão da economia, tem de ser processo
sem fronteiras e sem limites, produzido pelas lutas e pela imaginação criadora
dos povos. A democratização só tem sentido e autenticidade, se mobiliza essas
potências inventivas, na perspectiva de construir um estágio mais avançado da
civilização humana. Não pode pois vir fechada num formulário (“blue
print”) prêt-à-porter. Nem
por isso é desnecessário propor algumas linhas diretrizes do movimento, quanto
ao rumo geral e para que se definam objetivos estratégicos possíveis, etapa a
etapa.
A luta pela
democratização é luta. Exige, portanto, mobilização, organização, escolha de
ações, visão estratégica, sentido de tática, politização das lutas. Claro que
essas formas não podem ser decretadas antes, a partir de dogmas santificados.
Mas é indispensável identificá-las e não há como fugir disso. Porque se trata,
bem claramente, de forçar o sistema de poder que aí está a recuar, tendo, como
objetivo, substituí-lo por outro sistema de poderes. Sem dúvida, deve-se
abandonar a fórmula da “revolução” que substitui de vez o poder do capital pelo
poder do povo, santificado. São possíveis avanços revolucionários, fundados
sobre os avanços de novos poderes, populares, reais, que fazem recuar os que
continuarem a defender os princípios que reproduzem a desigualdade. Além do
mais, Marx jamais formulou qualquer teoria “da revolução solene e solução
definitiva”. Sempre, ao contrário, insistiu na longa transição caracterizada por
esse conflito de poderes: os velhos em declínio e os novos em
formação.
Abandonar a
questão do poder é jogar fora o bebê com a água do banho. Acreditar que a
sociedade possa ser transformada sem destruição, ainda que progressista, do
sistema do poder que há, é crença da mais completa ingenuidade. Porque os
poderes que há, longe de serem “desconstituídos” pela mudança social, são sempre
capazes de capturar o novo, submetê-lo, integrá-lo como reforço – não como
enfraquecimento – do poder do capital.
A triste deriva do
“ecologismo”, que é hoje campo aberto à expansão do capital, é prova disso.
Eludir a questão do poder, é pôr os movimentos numa situação que não lhes
permite passar à ofensiva, condená-los a posições defensivas, de resistir às
ofensivas dos que têm o poder e privá-los, portanto, da iniciativa.
(...)
As lutas sociais e
políticas (indissociáveis) poder-se-iam propor-se alguns grandes objetivos
estratégicos, que apresentarei (adiante) ao debate teórico e político,
confrontado sempre à prática das lutas, aos seus avanços e
recuos.
Para começar,
reforçar os poderes dos trabalhadores nos seus locais de trabalho, nas suas
lutas cotidianas contra o capital. É, digamos, a vocação dos sindicatos. Sim,
mas só se os sindicatos forem instrumentos de lutas reais. O que já não são,
sobretudo os “grandes sindicatos”, pressupostos “fortes”, porque se assemelham a
grandes maiorias entre os trabalhadores envolvidos. Essa força aparente é a
verdadeira fraqueza dos sindicatos, porque os sindicatos crêem-se obrigados a
“ajustar-se” às reivindicações consensuais, sempre muito, muito modestas. Quem
se surpreende por as classes operárias na Alemanha e na Grã-Bretanha (países de
“sindicatos fortes”, como se ouve dizer) terem aceitado ajustes drásticos que o
capital lhes impôs ao longo dos últimos 30 anos, enquanto os “sindicatos
franceses” - minoritários e considerados fracos – conseguiram resistir melhor
(ou menos mal?). Essa realidade nos lembra, simplesmente, que as organizações de
militantes, sempre minoritárias por definição (a classe não pode ser constituída
só de militantes!), conseguem, muito mais que os sindicatos “de massa” (e,
portanto, de não militantes), arrastar maiorias para as
lutas.
Outro terreno de
lutas possíveis para estabelecer poderes novos, são os poderes locais. Nesse
domínio, contudo, não farei generalizações rápidas, seja pela afirmação de que a
descentralização é sempre um avanço democrático, seja, pelo contrário, pela
afirmação de que a centralização é necessária para “mudar o poder”. A
descentralização pode ser capturada por “sumidades locais”, em geral tão
reacionárias quanto os agentes do poder central. Mas a descentralização também
pode, conforme as estratégias postas em ação pelas forças progressistas em luta
e as condições locais – favoráveis aqui, desfavoráveis ali –, completar e
substituir os avanços na criação de novos poderes populares. A Comuna de Paris
incluiu, com seu projeto de federalismo comunal. Os communards sabiam que retomavam, nessa questão, a
tradição montagnarde dos Jacobinos de 1793. Porque estes,
diferente do que se diz sem pensar (quantas vezes já se ouviu dizer que os
“centralistas” jacobinos completaram a obra da Monarquia?!), foram federalistas
(como esquecer a Festa da Federação?). A “centralização” foi obra posterior da
reação termidoriana, concluída por Bonaparte.
A
“descentralização” continua a ser termo dúbio, oposto como absoluto a outro
termo absoluto, a “centralização”. Associar um ao outro é desafio que está
posto, nos combates pela democratização.
A questão dos
poderes múltiplos – locais e centrais – é crucialmente importante nos países
“heterogêneos”, ou por alguma razão histórica, ou qualquer outra. Nos países
andinos e, mais geralmente, na América dita latina – e que deveria ser chamada
de indo-afro-latina – a construção de poderes específicos (e dizer específicos é
dizer que gozam de alguma margem de autonomia real) é condição para o
renascimento das nações indígenas, renascimento sem o qual a emancipação social
não tem sentido algum.
O feminismo e o
ecologismo são outros terrenos de conflitos entre as forças sociais engajadas na
perspectiva da emancipação global da sociedade e os poderes conservadores ou
reformistas dedicados a perpetuar as condições da reprodução capitalista. Não
cabe, evidentemente, considerá-los lutas “específicas”, porque as reivindicações
aparentemente específicas que essas lutas promovem e a transformação global da
sociedade são indissociáveis. Mas nem todos os movimentos feministas e
ecologistas entendem assim.
A articulação das
lutas nos diversos terrenos aqui evocados – e em outros – convida a construir
formas institucionalizadas da interdependência entre todos os campos. Trata-se,
uma vez mais, de mostrar imaginação criadora. Não é necessário esperar que a
legislação vigente o permita, para criar sistemas institucionalizados
(“informais”, se não sempre “ilegais”), por exemplo, de negociação social
permanente e “obrigatória” de fato, empregados/patronato; por exemplo, de
controle, que imponha a paridade homem/mulher; por exemplo, que toda decisão
importante de investimento (privado ou estatal) seja submetido a avaliação
séria, do ponto de vista ecológico.
Avanços reais nas
direções propostas aqui criam uma dualidade de poderes – como a que Marx
imaginou para a longa transição do socialismo ao comunismo, etapa mais avançada
da civilização humana. Esses avanços levariam as “eleições” por sufrágio
universal a tomar rumo completamente diferente do previsto na democracia-farsa.
Mas aqui, outra vez, só fazem sentido eleições que se realizem depois das
vitórias, nunca antes.
As propostas aqui
sugeridas – e muitas outras possíveis – não se inscrevem no discurso dominante
sobre “a sociedade civil”. De fato, andam no sentido oposto. O discurso sobre “a
sociedade civil”, parente próximo dos delírios do “pós-modernismo” à Negri, é
herdeiro direto da tradição da ideologia do consenso à moda dos EUA que sempre o
promoveu em todo o planeta, retomado sem crítica por dezenas de milhares de ONGs
e por seus representantes que se impõem em grandes números nos Fóruns Sociais.
Essa ideologia aceita o regime (vale dizer: o capitalismo dos monopólios), no
que tem de essencial – e serve de modo muito útil ao poder do capital. Como que
lhe azeita as engrenagens. Assim o próprio capital gera uma falsa “oposição” sem
qualquer capacidade para mudar o mundo. Por mais que aquela falsa “oposição” se
apresente como agente de mudança, nada jamais muda.
Três conclusões
1. O Vírus Liberal tem efeitos devastadores.
Produziu um “ajuste ideológico” que serve muito bem à expansão capitalista a
qual sempre gera mais barbárie. Mas convenceu grandes maiorias – inclusive nas
gerações mais novas – de que é hora de “viver no presente”, colher o que o
imediato oferece, esquecer o passado, não pensar no futuro, sob o pretexto de
que a imaginação utópica engendraria monstros. Convenceu vastas maiorias de que
o sistema que há seria compatível com “o desenvolvimento do indivíduo” (o que
absolutamente ele não é). Formulações acadêmicas pretensamente “novas” – os
“pós”, pós-modernismo, pós-colonialismo, estudos culturais, elucubrações à Negri
– garantem alvarás de legitimidade à capitulação do espírito crítico e da
imaginação inventiva.
O desarranjo que
essa prática de submissão interiorizada implica está, sem dúvida, na origem,
dentre outros, da “renovação religiosa” (ressurgimento de interpretações
religiosas e pararreligiosas conservadoras e reacionárias, “comunitaristas”,
ritualistas. O “monoteísmo” dá o braço, sem problema algum, ao
“moneyteísmo” – assunto sobre o qual já escrevi. Excluo evidentemente as
interpretações religiosas que mobilizam o sentido que dão à espiritualidade,
para legitimar a tomada de posição ao lado das forças sociais que lutam por
emancipação. Mas as forças religiosas reacionárias são majoritárias, as forças
religiosas progressistas são minoritárias, quando não marginalizadas. Outras
formulações ideológicas não menos reacionárias também preenchem o vazio criado
pelo vírus liberal: por exemplo, dentre outros, todos os “nacionalismos” e os
comunitarismos étnicos e paraétnicos.
De minha parte,
proponho que se considerem à parte as “diversidades herdadas” (do passado), que,
afinal, é o que são, e que só depois de demorado exame crítico poderão ser (ou
não) reconhecidas eficazes para o projeto de emancipação. Proponho que não se
misturem essas diversidades e outras – que visam a inventar o futuro e lutar
pela emancipação. Porque também há diversidades cá do nosso lado, de análises e
substratos culturais e ideológicos e propostas de estratégias de luta.
Na 1a.
Internacional, lá estavam Marx, Proudhon, Bakunin. A 5a. Internacional deve
fazer da diversidade um trunfo. Imagino que não pode “eliminar”, mas deve reunir
e integrar: marxistas de diferentes escolas (inclusive alguns passavelmente
“dogmáticos”); reformadores radicais autênticos que, mesmo assim, preferem
reforçar objetivos viáveis mais próximos que perspectivas distantes; teólogos da
libertação; pensadores e militantes que queiram inscrever as renovações
nacionais que promovem, na perspectiva da emancipação universal; feministas e
ecologistas que também se inscrevam nessa perspectiva. A condição fundamental
que permitirá que esse reagrupamento de combatentes realmente trabalhe pela
mesma causa é a tomada de consciência do caráter imperialista do sistema que há.
A 5a. Internacional tem de ser muito claramente anti-imperialista. Não se pode
satisfazer com “intervenções humanitárias” com as quais os poderes dominantes
tentam substituir a solidariedade e o apoio às lutas de libertação dos povos,
das nações e dos estados das periferias. Além desse reagrupamento, devem-se
buscar alianças amplas com todas as forças e movimentos em luta contra as
derivas da democracia-farsa.
3. Se insisto na
dimensão anti-imperialista dos combates a fazer, é porque essa é a condição da
possibilidade de construir uma convergência entre as lutas do Norte e do Sul do
planeta. Já disse que a fraqueza – pelo mínimo que se diga – da consciência
anti-imperialista no Norte é a principal causa da limitação dos avanços que os
povos das periferias conseguiram até agora, e mais ainda de seus recuos.
Construir a
perspectiva de convergência das lutas é empreitada difícil. É preciso não
subestimar os perigos mortais que há nessas dificuldades.
No Norte, uma
dessas dificuldades é a adesão ainda grande à ideologia do consenso que legitima
a farsa democrática, aceitavam graças aos efeitos corruptores do rentismo
imperialista. Mesmo assim, a própria ofensiva do capital dos monopólios contra
os próprios trabalhadores do Norte, que está em curso, poderia ajudar na direção
de os trabalhadores tomarem consciência de que os monopólios imperialistas são
inimigos comuns, de todos. Os movimentos que se estão criando e reconstruindo em
tempos politizados e organizados conseguirão fazer ver que os monopólios
capitalistas têm de ser expropriados e nacionalizados na direção de serem
socializados? Se não nos aproximarmos desse ponto de ruptura, o poder de última
instância dos monopólios do capitalismo/imperialismo continuará intacto. As
derrotas que o Sul poderia infligir àqueles monopólios, fazendo recuar a sangria
operada pelo rentismo imperialista só reforçariam as chances de os povos do Sul
livrarem-se também de suas cadeias.
Mas no Sul
persiste o conflito de expressões da visão do futuro: universalistas ou
passadistas? Enquanto esse conflito não se decidir a favor dos primeiros, os
povos do Sul só conseguirão obter, em suas lutas de libertação, vitórias
frágeis, limitadas e vulneráveis.
O bloco histórico
progressista universalista só ganhará corpo, se se fizerem avanços sérios no
Norte e no Sul, nos rumos aqui sugeridos.
Referências
Para
referências que podem ajudar o leitor a refazer o percurso da formação dos
conceitos utilizados nesse texto (em francês e inglês), ver Pambazuka.
Notas dos
tradutores
[1] Quediva (do persa
“soberano”; خديوي em árabe) era o
título de vice-rei conferido pelo Império Otomano ao paxá do Egito.
[2]
Taiping Rebellion
- Guerra civil, no
sul da China, que durou de 1850 a 1864, liderada por um cristão
convertido, Hong Xiuquan, que se apresentava como irmão mais jovem de Jesus
Cristo, contra a dinastia Qing, dos Manchu. Houve cerca de 20 milhões de mortos,
sobretudo civis, num dos conflitos militares mais mortais de toda a história.
Mao Tse Tung, em Política e Tática, fala dessa revolta de Taiping, como
um dos primeiros levantes revolucionários heróicos contra um regime feudal
corrupto.
[3] Panchayat, lit.
“assembleia” (ayat) de “cinco” (panch) anciãos sábios e
respeitados, escolhidos e aceitos por comunidades locais. Governos
contemporâneos da Índia descentralizaram várias funções administrativas para o
nível local, dando poder político a
gram panchayats eleitos.
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