9/12/2011,
Pepe Escobar, Al-Jazeera,
Qatar
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
Olhem
bem essa foto de 1970.
Essa
moça de 22 anos está diante de um bando de inquisidores subtropicais, para ser
interrogada.
Hoje presidenta do Brasil, Dilma Rousseff foi torturada em 1970 pela junta militar que governava o país [Ricardo Amaral] |
Foi
torturada com choques elétricos e sofreu simulação de afogamento – práticas que,
para Dick Cheney, são apenas “interrogatório estimulado” – durante 22
dias.
E
não cedeu.
Hoje,
essa mulher, Dilma Rousseff, é presidenta do Brasil – aquele perene “país do
futuro”, a 7ª maior economia do mundo (à frente de Grã-Bretanha, França e
Itália), país-membro dos BRICS, mestre de um soft Power que vai além da música, do futebol e da
alegria de viver.
Essa
foto acaba de ser divulgada, como parte de uma biografia de Rousseff, exatamente
quando o Brasil afinal cria uma Comissão da Verdade, para saber o que realmente
aconteceu durante a ditadura militar (1964-1985). A Argentina já fez esse
trabalho, bem antes do Brasil – julgando e punindo os inquisidores de uniforme
sobreviventes.
Esse
sábado, Rousseff estará em Buenos Aires, para a cerimônia de posse de Cristina
Kirchner, reeleita presidenta da Argentina. Esses dois países chaves da América
do Sul têm mulheres na presidência. Contem lá àquele Tantawi da junta que
governa o Egito – ou àqueles exemplares paradigmáticos de democracia da Casa de
Saud.
Essas
coisas demoram...
Os
egípcios talvez não saibam que os brasileiros tiveram de esperar 21 anos para
livrarem-se de uma ditadura militar. Equivalentes de Dilma, a que não quebra e
que se vê na foto dos anos 1970s, hoje da geração Google, estão lutando por
melhor democracia, do Cairo a Manama, de Aleppo ao leste da Arábia
Saudita.
Liberdade
é o nome que se dá ao que resta quando já nada se tem a perder – além de tempo,
muito tempo. No Brasil, uma verdadeira democracia estava começando a avançar,
quando, em 1964, foi esmagada por um golpe militar ativamente supervisionado por
Washington. O coma durou duas longas décadas.
Então,
nos anos 1980s, os militares decidiram dar um pequeno passo, numa transição em
ritmo de lesma, “lenta, gradual e segura” (segura para eles mesmos, claro) na
direção de alguma democracia. Mas foi a rua – ao estilo da Praça Tahrir – que
finalmente fez a coisa andar adiante.
O
fortalecimento das instituições democráticas demorou mais uma década – e incluiu
impeachment, por corrupção, de um
presidente eleito. E passaram mais oito anos, para que um presidente eleito – o
presidente Lula, imensamente popular, que Obama reverenciou como “o cara” –
abrisse o caminho para Dilma Rousseff.
A
estrada foi longa, até que um dos países mais desiguais do mundo – governado por
séculos por uma elite arrogante e corrupta, que só tinha olhos para o Norte rico
– afinal consagrasse a luta pela inclusão social como questão essencial da
política nacional.
O
progresso no Brasil foi semelhante ao de várias outras partes da América do
Sul.
Semana
passada alcançou-se um clímax parcial, quando a nova Comunidade dos Estados
Latino-americanos e do Caribe (conhecida pela sigla CELAC, em espanhol),
reuniu-se em Caracas. A CELAC começou como ideia luminosa ante a emergência –
num novo sistema-mundo, como diria Immanuel Wallerstein – de uma nação
latino-americana integrada, baseada na justiça, no desenvolvimento sustentável e
na igualdade. Dois homens foram essencialmente importantes nesse processo: o
presidente Lula do Brasil e o presidente Hugo Chávez da Venezuela. A visão
desses dois convenceu todos, do presidente Pepe Mujica do Uruguai,
ex-guerrilheiro, ao presidente do Chile, Sebastian Piñera, banqueiro.
Assim,
hoje, em meio à crise agônica que consome o Norte Atlanticista, a América Latina
surge como possibilidade de uma verdadeira “terceira via” (que nada tem a ver
com o que Tony Blair inventou).
Enquanto
a Europa – onde o Deus Mercado governa – constrói meios para miserabilizar cada
vez os povos europeus, a América Latina acelera no seu impulso rumo a inclusão
social cada vez mais ampla.
E,
enquanto virtualmente todas as latitudes, do Norte da África ao Oriente Médio
sonham com democracia, a América Latina pode, realmente exibir os frutos,
duramente buscados, de suas conquistas democráticas.
Não
percam o foco, não esperem presentes caídos do céu
A
CELAC é aposta poderosa nas possibilidades do diálogo sul-sul. Será dirigida,
nesse estágio inicial, por Chile, Cuba e Venezuela.
Pepe
Mujica, presidente do Uruguai e ex-líder dos guerrilheiros Tupamaro, disse,
muito claramente em Caracas, que a estrada, até que se alcance o sonho da
integração latino-americana não será um mar de rosas. Inúmeras batalhas
ideológicas ainda terão de ser lutadas, antes que tome forma algum projeto
político e econômico amplo.
A
CELAC complementa a UNASUL – União Latino-americana – que o Brasil domina. A
UNASUR também está começando; por hora, é, essencialmente, um
fórum.
E
há também o MERCOSUL – mercado comum de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, ao
qual, em breve, a Venezuela também se integrará. Em Caracas, Dilma e Cristina
selaram a futura integração com Chávez.
O
principal parceiro comercial do Brasil é a China; antes, foram os EUA. Em breve,
a Argentina alcançará a posição de segundo principal parceiro comercial do
Brasil – deixando os EUA para trás. O comércio dentro do MERCOSUL está crescendo
rapidamente – e mais ainda crescerá com a incorporação da
Venezuela.
Não
que faltem obstáculos no caminho da integração. O Chile prefere acordos
bilaterais. O México olha, sempre antes, para o norte – por causa do NAFTA. E a
América Central está convertida em virtual satrapia dos EUA, por causa do
CAFTA.
Mesmo
assim, a UNASUR acaba de aprovar projeto estratégico crucialmente importante em
termos geopolíticos: uma rede de 10 mil quilômetros de fibra ótica, administrada
por empresas estatais locais, para livrar-se da dependência dos
EUA.
Atualmente,
nada menos que 80% do tráfego internacional de dados na América Latina viajam
pelos cabos submarinos até Miami e a Califórnia – duas vezes a porcentagem da
Ásia e quatro vezes a da Europa.
As
taxas cobradas pela Internet na América Latina são três vezes mais caras que nos
EUA. Nessas condições, é difícil falar de soberania e
integração.
Washington
– que exporta três vezes mais para a América Latina que para a China – está e
terá de continuar focada em outros pontos: na Ásia, continente ao qual o governo
Obama tanto se empenha para vender a agenda do “Século do
Pacífico”.
A
verdade é que Washington – como as várias direitas latino-americanas – nada tem
a propor aos povos da América Latina, nem em termos políticos nem em termos
econômicos. Portanto, cabe aos latino-americanos aperfeiçoar suas democracias,
fazer avançar a integração regional e construir modelos de democracia social que
se possam apresentar como alternativas ao velho neoliberalismo hardcore.
Por
um desses truques do Anjo da História, de Walter Benjamin, talvez seja hora,
agora, de os latino-americanos partilharem sua experiência com os irmãos e irmãs
do Oriente Médio, no sul global.
Que
a estrada é longa, é. Começa com uma moça de 22 anos, que não baixou a cabeça
frente à ditadura e aos ditadores. E é caminho adiante, sem
volta.
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