segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Os arquitetos do caos na Ásia Ocidental

3/2/2015, [*] Vijay Prashad, The Hindu, Nova Delhi
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Obama e o rei Salman da Arábia Saudita
Pandemônio, eis o que se vê praticamente sem interrupção, da Líbia ao Iraque. O Presidente Barack Obama dos EUA voou de Nova Delhi diretamente para os braços do rei Salman, novo governante da Arábia Saudita. A dupla tinha muito a discutir. Nem um nem outro pode estar muito satisfeito com a desgraça que seus países fizeram e continuam a distribuir por toda a Ásia Ocidental. Tragicamente, o único caminho que pensam em reforçar é exatamente o mesmo que só aprofundará os problemas e os tormentos nos próximos anos. Claramente o exemplo deles é o Egito, onde a dupla EUA-Arábia Saudita apoiou o golpe do general Abdel Fattah el-Sisi, e agora apoia o governo dele, apesar da repressão contra protestos.

O assassinato de uma jovem socialista, Shaimaa el-Sabbagh, quando depositava uma coroa de flores na Praça Tahrir, no 4º aniversário da revolução contra Mubarak, é sinal da podridão. Não impediu que um destacamento do “Estado Islâmico” (EI) atacasse na Península do Sinai, fazendo 30 mortos, entre militares e civis. Na Líbia, os sauditas e os EUA apoiam o ditador (Khalifa Haftar), como apoiaram no Iêmen (Abdullah Saleh). No Iraque e Síria, EUA e Arábia Saudita não gostaram do que viram e tentaram desfazer tudo. Os sauditas são movidos por sectarismo – sempre contra os xiitas (e a influência do Irã). Por isso, são obcecadamente contra os governos em Damasco e Bagdá, como também se opõem furiosamente aos rebeldes no Iêmen. Obama e o rei Salman não conseguiram resolver os problemas na região: acabaram-se todas as ideias e palpites que tinham a oferecer. Agora, outros terão de indicar o caminho adiante.


Líbia. O Corinthia Hotel é o mais luxuoso de Trípoli. Foi residência de primeiros-ministros sucessivos que temiam pela própria vida naquela capital perigosíssima (o Primeiro-Ministro Ali Zeidan foi raptado desse hotel, em 2013). Também abriga a missão da ONU, que conduziu um Diálogo sobre a Líbia, em Genebra. Dia 27/1/2015, pistoleiros entraram no hotel e mataram guardas e hóspedes estrangeiros (inclusive um mercenário que prestava serviços de segurança aos EUA). O ramo do Estado Islâmico em Trípoli reivindicou os créditos pela operação.


caos impera na Líbia desde 2011. Dois governos dizem que governam o país – ambos apoiados em milícias e esquadrões-da-morte, ambos com exércitos estrangeiros a lhes dar cobertura. A missão da ONU – da qual o ocidente desertou depois da guerra em 2011 — não conseguiu criar nenhum processo de paz. O governo apoiado internacionalmente do Primeiro-Ministro Abdullah al-Thani enviou delegação a Genebra para unir-se ao processo de paz “conduzido” pela ONU. Os músculos desse processo são os do general renegado Khalifa Haftar, que faz guerra privada, sua, contra as milícias islamistas em Benghazi sob o nome de “Operation Karama” (Dignidade). Mas o governo de al-Thani está na cidade oriental de Tobruk, exilado da capital (Trípoli) e das cidades principais (Benghazi e Misrata). Vive à sombra do Egito e da Arábia Saudita.

O governo de al-Thani é uma concha. É o herdeiro dos que herdaram a Líbia das mãos do ocidente e dos estados do Golfo. As armas em campo não favorecem o grupo governante. Em Benghazi, a maré reinante ainda é comandada por um grupo islamista radical, Ansar al-Sharia, formado depois da queda do coronel Gaddafi. No oeste da Líbia, quem manda é o movimento conhecido como Fajr Líbia (Alvorada Líbia). Inclui o poderoso Escudo Líbio de Misrata e remanescentes do Grupo Islâmico de Combate Líbio. Seu Primeiro-Ministro, Omar al-Hassi, viveu no Hotel Corinthia, de onde teve de ser retirado em segredo por guardas da segurança. O grupo Alvorada Líbia recusou-se a participar das conversações de paz de Genebra. O ator mais poderoso afastou-se do processo anêmico apoiado pelo ocidente. Mostra bem o quanto o ocidente é irrelevante na Líbia contemporânea (a embaixada dos EUA para a Líbia está instalada em Malta). Quem manda na Líbia são Qatar e Turquia, apoiadores estrangeiros do grupo Alvorada Líbia.

É só simples questão de tempo, até que o Estado Islâmico estabeleça bases na Líbia. A cidade de Derna há muito tempo é centro de recrutamento de islamistas radicais. Piada que circula em Derna informa que é a cidade, em todo o mundo, que mandou mais combatentes da liberdade para Iraque e Síria.

Majlis Shura Shabab al-Islam
Em junho passado (2014), o grupo Majlis Shura Shabab al-Islam, um desdobramento do Ansar al-Sharia, aderiu ao Estado Islâmico. Declarou que passava a caçar as marda al-nafous (almas doentes) que ameaçava “esse nosso oprimido Estado Islâmico”. Não é difícil estabelecer laços operacionais entre Derna e Síria-Iraque; os milicianos continuam infatigavelmente a ir e vir o quanto desejem, através da Turquia. Ouvem-se ecos do Estado Islâmico entre Derna e Benghazi, onde os soldados de Ansar al-Sharia beneficiam-se da audácia das declarações de Abu Bakr al-Baghdadi. Do fundo da derrota, arrancam a sensação de vitória.

Ninguém quer paz

Iêmen. Velhas fissuras tribais no Iêmen que isolaram a comunidade dos xiitas zaidistas liderados pela família al-Houthi impuseram-se. Em nome da Guerra ao Terror, em 2004 o velho autocrata do Iêmen, Abdullah Saleh, traiu e matou o líder zaidista Hussein Badreddin al-Houthi. Um acordo político razoável teria posto fim a esse conflito, mas Saleh não quis acordo algum.

Inteiramente apoiado pelo ocidente, Saleh serviu-se de ataques com drones e muito suborno para destruir os inimigos. Atraída pela isca, a Arábia Saudita — que sempre, antes, desprezara Saleh — acabou por ceder aos próprios preconceitos anti-xiitas e aceitou apoiar o ditador em sua guerra contra os zaidistas. Saleh tratou os zaidistas – não a al-Qaeda – como principal inimigo. O grupo terrorista havia desaparecido do Iêmen, mas reapareceu em 2004, resultado de recrutamento nas prisões, experiência na insurgência no Iraque e ódio contra a guerra norte-americana de drones. Mas Saleh não usou todo o seu potencial de fogo contra a al-Qaeda. Seus inimigos estavam noutro lugar.

A “Operation Scorched Earth” [Operação Terra Arrasada] em 2009 levou a uma invasão saudita do Iêmen, para pôr fim à resistência zaidista. Dezenas de milhares de refugiados fugiram da região; não se conhece o número de mortos. Ninguém convocou qualquer processo de paz. Foi luta até o último homem.

Protestos de houthis na capital Sanaa
A Primavera Árabe no Iêmen permitiu que os rebeldes houthis se unissem aos protestos contra o governo de Saleh. A Al-Qaeda, enquanto isso, tomava o controle das cidades de Jaar e al-Husn. Um “diálogo nacional” convocado então não levou a qualquer solução. Os houthis queriam um acordo político. Os governos da Arábia Saudita e do Iêmen conseguiram convencer o ocidente de que os houthis seriam aliados do Irã. A partir disso, todas as atenções concentraram-se em manter os houthis longe do poder. Aí, precisamente é que o “plano” falhou mais fragorosamente; os houthis agora já assumiram o controle de Sana’a (capital do Iêmen). Ainda não se sabe se os houthis serão magnânimos na vitória; mas tampouco se pode adivinhar se os sauditas e o ocidente aceitarão qualquer gesto, mesmo que magnânimo, dos houthis.

Parte de uma guerra maior

Síria. No dia em que o rei saudita Abdullah morreu, o braço armado que representa os sauditas na guerra contra a Síria – o Jaish al-Islam de Zahran Alloush – disparou foguetes contra Damasco. Alloush anunciou por Twitter que faria “chover centenas de foguetes sobre a capital durante o dia todo, em resposta à barbárie que o regime cometera com ataques aéreos no Ghouta”. A guerra entre Alloush e o governo de Bashar al-Assad tornou-se guerra menor, mas nem por isso é escaramuça menos mortal na guerra maior no Iraque e Síria. Os inimigos do Presidente Bashar al-Assad não são absolutamente gentis, e assaltam áreas civis sem descanso e com requintes de crueldade.

Estado Islâmico é mantido por Israel, EUA, Qatar... 
Os ataques israelenses dentro da Síria contra o Hezbollah, da resistência libanesa, só complicarão cada vez mais a situação. Confrontos nas Fazendas Shebaa, uma parte do Líbano ocupada por Israel, poderia ter-se convertido em mais uma guerra de Israel contra o Líbano. Enquanto foguetes voavam nas duas direções, o Estado Islâmico distribuiu documento no qual dizia que seria “prematuro” declarar um emirado no Líbano. Beirute respirou aliviada. São raras as boas notícias na região.

Mais para o norte, o Estado Islâmico sofreu duas derrotas militares. Em Kobane – a Stalingrado dos curdos – as Unidades de Proteção do Povo Curdo [ing. Kurdish People’s Protection Units (YPG) finalmente conseguiram expulsar os milicianos do Estado Islâmico. Ataques pela Força Aérea da coalizão dos EUA ajudaram a cortar as linhas de suprimento do Estado Islâmico, embora a sempre porosa fronteira com a Turquia sempre lhes garanta algum socorro.

Também no Iraque, a Brigada Badr, uma milícias de xiitas, atacou o Estado Islâmico na província de Diyala, que foi libertada. Nem o exército iraquiano nem o exército sírio tiveram qualquer função nessas duas derrotas infligidas ao Estado Islâmicos. Mas o Estado Islâmico é difícil de eliminar. O grupo desapareceu dessas áreas, e encontrou outras áreas onde se abrigar. Um ataque pelo Estado Islâmico em Kirkuk tirou a vida de um respeitado líder curdo-iraquiano, brigadeiro-general Sherko Shwany; o Estado Islâmico mostrou que continua no jogo. Empurrado para fora do Iraque e do norte da Síria, talvez assuma afinal a via que o levará ao norte da Jordânia.

O Estado Islâmico manteve preso um piloto jordaniano, tenente Mu’ath al-Kaseasbeh, durante um mês, mas só ameaçou executá-lo depois da queda de Kobane e Diyala. Disse que pouparia a vida do piloto, se a Jordânia libertasse uma quase-suicida-bomba iraquiana Sajida al-Rishawi (a bomba dela não explodiu, num ataque em 2005 em Amã, Jordânia); mas fracassaram as negociações sobre a libertação da moça, e o Estado Islâmico executou dois reféns japoneses. Ao que se sabe, o piloto jordaniano continua prisioneiro do Estado Islâmico. As tensões estão subindo na Jordânia, sobre o papel do reino na coalizão contra o Estado Islâmico. É precisamente o tipo de fissura que o Estado Islâmico quer ver crescendo na Jordânia. Qualquer passo para o sul, fará soar os sinos de alarme na Arábia Saudita.

Mu’ath al-Kaseasbeh; foto maior, de branco
Entrementes, um alto oficial da inteligência jordaniana me informa que já ruiu completamente a tentativa dos EUA para criarem uma força moderada contra o Estado Islâmico. A [operação] Müs’terek Operasyon Merkezi, que a CIA construiu com aliados na Turquia já fracassou. Um depois do outro, todos os grupos rebeldes que a CIA arregimentara trocaram a CIA por outras formações – mais recentemente, foi o Exército Mujahedin que se uniu à Frente Islâmica, grupo que reúne dois outros afiliados da al-Qaeda, Ahrar al-Sham e a Frente al-Nusra.

Verdade é que nem os EUA nem a Arábia Saudita têm qualquer agenda que faça algum sentido na Síria. Permanecem obcecados com derrubar o governo do presidente Assad, mas já estão em pânico ante o crescimento do Estado Islâmico. Quanto maior a audácia do Estado Islâmico em seu território natal, mais potentes os ecos enviados para a Líbia e para o interior da Península Árabe.



[*] Vijay Prashad é professor de estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People’s History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter. 
Publica artigos regularmente em Asia Times Online, Frontline Magazine e CounterpunchÉ usualmente entrevistado pela TRNN - The Real News Network  sobre Geopolítica e Política internacional; é também Editor-Chefe do LeftWord Books, Nova Delhi. É colunista de al-Araby al-Jadeed e Information Clearing House. 

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