MK Bhadrakumar |
19/3/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Pessoal da Vila Vudu
“Os EUA podem aprender a conviver com partidos religiosos e relacionar-se com eles, desde que eles “rejeitem o radicalismo e o antissemitismo...”
[John Kerry, vice-presidente, em discurso, ontem, nos EUA]
EUA, Grã-Bretanha e França extraíram do Conselho de Segurança da ONU ontem, tarde da noite, um resolução vazada em termos fortes a favor de ação militar contra o regime de Muammar Gaddafi na Líbia. A parte operativa da resolução – chamada Resolução n. 1.973 – tem cinco itens: proteção aos civis; uma zona aérea de exclusão [orig. a no-fly zone]; reforço no embargo de armas; proibição de voos; e congelamento de bens. [1]
Embora chamada, em termos gerais de “resolução pró zona aérea de exclusão”, o objetivo e a abrangência da R-.973 e o uso autorizado de força são abertos a interpretação. O que significa que o envolvimento ostensivamente limitado do envolvimento da comunidade internacional para a finalidade específica de impor uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia, com o intuito humanitário de proteger comunidades civis, pode, adiante, abrir a porta a intervenção militar de larga escala.
Grã-Bretanha e França estão prontas para dar início às operações; a OTAN marcou reunião para decidir detalhes operacionais. A Alemanha absteve-se de votar e a Turquia manifestou oposição a qualquer intervenção na Líbia. De fato, a OTAN construirá uma “coalizão de vontades” entre os países membros.
A união faz a força
Resultado interessante da votação é que quatro dos países membros BRICSs (Brasil, Rússia, Índia e China – mas não a África do Sul) abstiveram-se. A posição da Índia baseou-se em três pontos: que a resolução não foi embasada em nenhum tipo de relatório ou informe assinado pelo representante do secretário-geral da ONU na Líbia, e foi votada ao mesmo tempo em que a União Africana ainda prepara um painel sobre a situação na Líbia – significando que se deveria prosseguir nos esforços políticos, antes de qualquer decisão sobre ação militar; que havia “relativamente pouca informação confiável” sobre a situação na Líbia, que justificasse a intervenção; e que falta “clareza” sobre as operações autorizadas pela Resolução n. 1.973.
A Rússia tentou adiar a resolução, oferecendo uma variante alternativa (exigir o cessar-fogo), que é a abordagem tradicionalmente encaminhada pelo Conselho de Segurança. A Rússia opôs-se ao uso da força, destacando que a Resolução n. 1.970 – que, em fevereiro passado, impôs sanções à Líbia – ainda sequer foi plenamente implementada; os russos disseram que ainda não se sabe com clareza como a zona de exclusão aérea será implementada; que a Rússia teme as consequências de intervenção militar estrangeira em grande escala.
A China argumentou a partir de princípios. Insistiu no uso de meios pacíficos para resolver os problemas, defendeu a soberania e a integridade territorial da Líbia, opôs ao emprego da força e chamou a atenção para a necessidade de que, se aprovada, a intervenção fosse conduzida em estrito respeito ao que determinam a lei internacional e a Carta das Nações Unidas. A China disse que estava procurando esclarecimentos sobre detalhes do que estava sendo votado, mas que esses esclarecimentos ainda não estavam disponíveis.
EUA sobem a aposta
O detalhe decisivo parece ter sido o “endurecimento” na posição dos EUA. Nas últimas semanas, Washington manteve ar de estudada indiferença sobre a questão da zona aérea de exclusão. Como agora se vê, foi ‘caso pensado’. Ainda há dois dias, nem Grã-Bretanha nem França haviam conseguido mobilizar apoio suficiente para a aprovação, no encontro de dois dias, de ministros de Relações Exteriores do G-8, em Paris.
Há mérito na posição do governo Obama, de não se afastar das “pré-condições” que impôs para aprovar qualquer zona aérea de exclusão na Líbia – a saber, os EUA não agirão sem autorização do Conselho de Segurança; não querem enviar tropas terrestres dos EUA para a Líbia; e é indispensável organizar força internacional, da qual participem, necessariamente, estados árabes. Washington pode dormir sossegada: todas essas pré-condições foram atendidas.
Contudo, os EUA agiram intensamente, nos bastidores, para conseguir ajuda militar para os rebeldes líbios. Semana passada, Robert Fisk, do Independent de Londres, noticiou que o governo Obama fizera contato com o governo saudita para que financiassem secretamente a transferência de armas norte-americanas para os rebeldes líbios (7/3/2011, redecastorphoto, em “Obama pede que sauditas entreguem armas em Benghazi”). Ontem, o Wall Street Journal citou funcionários do governo dos EUA e rebeldes líbios, não identificados, que teriam dito que os militares egípcios estão contrabandeando armas para os rebeldes líbios, pela fronteira, com pleno conhecimento de Washington.
O envolvimento secreto do Egito é cheio de significados. Chama a atenção para a evidência de que a junta militar que governa o Cairo e o governo Obama estão-se entendendo bem, depois de alguma aparente queda na influência dos EUA na era pós-Mubarak. A visita da secretária de Estado Hillary Clinton ao Cairo (depois de o primeiro-ministro Cameron da Grã-Bretanha e o ministro das Relações Exteriores da França Alain Juppe lá terem estado) indica que a junta militar que governa o Egito já recebeu papel-chave no processo de derrubar Gaddafi. São atos que terão impacto na luta do Egito, que tenta construir sua democracia.
Os rebeldes líbios saudaram os Emirados Árabes e o Qatar, como duas nações da Liga Árabe que os estariam ajudando. Veem-se bandeiras do Qatar em locais de destaque na Benghazi controlada pelos rebeldes. Vêm notícias de New York, segundo as quais EUA e Grã-Bretanha já teriam acertado a participação de mais alguns estados árabes na operação líbia.
Só uma coisa é certa: ainda falta muito para que se confirmem o alto estatuto moral, capacidade e empenho de Washington, na luta para forçar as ditaduras do Golfo Persa na direção de alguma reforma democrática.
Tudo são interpretações
Na realidade, as intenções dos EUA permanecem bastante opacas. Clinton disse a jornalistas na Tunísia na 5ª-feira, que uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia exigiria ação militar para proteger pilotos e aeronaves, “inclusive bombardear alvos como os sistemas líbios de defesa”. Mas, isso... a Resolução n. 1.973 do Conselho de Segurança da ONU não autoriza.
Outra vez – embora já esteja suficientemente claro que nem Rússia nem China irão ao extremo de vetar a Resolução – os EUA já aumentaram a aposta, sugerindo que, além de criar uma zona aérea de exclusão, a comunidade internacional deve autorizar uso de aviões, soldados, navios, para conter as forças de Gaddafi. A emenda proposta pelos EUA, dizia que a ONU deveria autorizar a comunidade internacional a “proteger civis e objetos civis, inclusive a deter ataques por terra, mar e ar comandados pelo governo de Gaddafi”.
Essa proposta, contudo, parece ter enfrentado resistência da Rússia; o texto final da R-1.973 autoriza “todas as medidas necessárias” para proteger civis. A solução de conciliação, de fato, deixa aberta a porta para as mais perigosas possibilidades de as operações militares serem ‘estendidas’ tanto na qualidade como na quantidade.
Por um lado, a R-1.973 expressamente proíbe “coturnos no solo” [orig. boots on the ground] – “excluindo [da autorização] qualquer força estrangeira de ocupação, sob qualquer forma, em qualquer parte do território líbio”. Por outro lado, autoriza “a tomar todas as medidas necessárias [sublinhado pelo autor] (...) para proteger civis e áreas de população civil sob ameaça de ataque na Jamahiriya Árabe Líbia, inclusive em Benghazi”.
Também em relação à zona aérea de exclusão, a R-1.973 autoriza os estados “a tomar todas as medidas necessárias [sublinhado pelo autor] para fazer cumprir o banimento de todos os voos”. Tudo leva a crer que, uma vez começada a implementação da zona aérea de exclusão, outras ‘medidas’, dentre as quais ações por terra, passarão a ser necessárias para neutralizar as forças de Gaddafi. Poderiam aparecer sob a forma de operações de forças especiais, todas sempre com alta ‘negabilidade’ e que não constituiriam “ocupação estrangeira” de território líbio.
Em resumo, estamos revivendo quase integralmente a véspera da invasão dos EUA ao Afeganistão, em outubro de 2001: começou com operações aéreas para dar apoio às milícias da Aliança do Norte [orig. Northern Alliance (NA)], suplementadas por operações das forças especiais e, adiante, tudo isso foi legitimado como presença em solo.
“Não assistir de longe, vendo passar as oportunidades...”
Qual é a estratégia dos EUA?
Muito significativamente, na véspera da votação no Conselho de Segurança, o senador John Kerry, presidente da Comissão de Assuntos Externos do Senado e pilar do establishment das políticas exteriores dos EUA, fez ontem longo discurso no Instituto Carnegie, em Washington. Disse ele:
– O despertar árabe é tão profundo quanto o colapso do Muro de Berlin e, portanto, é dever de Washington abraçar o desafio de converter esse despertar em oportunidade, identificando as forças democráticas.
– A ordem do Oriente Médio não pode ser restaurada. A revolução tem raízes profundas em profundo descontentamento popular. Assim sendo, o relacionamento entre os EUA e a região exige “amplo ajustamento que reflita as novas realidades”. Nenhum relacionamento focado só nos líderes é sustentável.
– Os EUA podem aprender a conviver com partidos religiosos e relacionar-se com eles, desde que eles “rejeitem o radicalismo e o antissemitismo” e “abracem a moderação”.
– Alguns governantes estão “respondendo ao imperativo das reformas”, mas “nenhum país na Região escapará da onda de reivindicação popular”.
– Israel enfrenta isolamento e “o status quo com seus vizinhos é agora insustentável”; mas a segurança de longo prazo de Israel tem de ser assegurada.
Kerry cutucou Obama para ser proativo como Ronald Reagan e George H W Bush, que comprometeu recursos para posicionar governos na Europa Central, os quais, até hoje, continuam a manter posições pró-ocidente e são membros da OTAN.
E Kerry fez-se de preceptor de Obama: “Temos de reconhecer a extraordinária oportunidade que se abre para nós – e o perigo de fracassar e não conseguir aproveitá-la (...) A comunidade internacional simplesmente não pode assistir a tudo, de longe (...) O tempo corre rápido, para o povo líbio. O mundo exige respostas imediatas (...) O Conselho de Segurança tem de agir imediatamente.”
Israel é sempre o centro crucial do pensamento de Kerry. Citou os senadores John McCain e Joseph Lieberman, dois eternos apoiadores de Israel, como colaboradores no seu projeto para o Oriente Médio. Kerry, McCain, Lieberman – não é trio formidável de atacantes? Obama não teve escolha. Teve de seguir o escrito.
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Nota de rodapé
[1] Aqui, os pontos principais da Resolução n. 1.973 da ONU que autoriza ação militar para proteger civis líbios, dos ataques de Muammar Gaddafi:
– Manifesta a grave preocupação da ONU com a rápida deterioração da situação, a escalada da violência, o alto número de baixas entre os civis, condena as graves e sistemáticas violações de direitos humanos, inclusive as prisões arbitrárias, sequestros, tortura e execuções sumárias; e diz que ataques contra civis são crimes contra a humanidade e ameaçam a paz e a segurança internacionais.
Uma zona aérea de exclusão é elemento importante para a proteção dos civis e para a segurança dos que trabalham na entrega de ajuda humanitária, e passo decisivo para a cessação de hostilidades na Líbia..
A R-1.973 exige o imediato estabelecimento de um cessar-fogo e fim completo da violência e de todos os ataques e abusos contra civis nos termos da lei internacional (...) e que as autoridades líbias cumpram seu deveres (...) e tomem todas as medidas para proteger civis e suprir suas necessidades básicas e garantir salvo conduto e passagem rápida para a assistência humanitária.
Autoriza estados-membros da ONU a tomar todas as medidas necessárias, apesar do embargo anterior a armas, para proteger civis e áreas de população civil contra a ameaça de ataque na Jamahiriya Líbia Árabe, incluindo Benghazi, excluídas as forças estrangeiras de ocupação em qualquer parte do território líbio.
Para isso, requisita a cooperação dos estados-membros da Liga Árabe.
Decide banir todos os voos do espaço aéreo da Jamahiriya Líbia Árabe, para ajudar a proteger civis, exceto voos humanitários, e autoriza estados-membros e nações da Liga Árabe a agir nacionalmente ou mediante organizações regionais ou em acordos, para tomar todas as medidas necessárias para implantar e fazer cumpri o banimento dos voos.
Conclama todos os estados-membros a interceptar barcos e aeronaves se houver suspeita de que transportem armas e outros itens banidos desde o embargo já aprovado nessa ONU e inclui naquela categoria o pessoal mercenário armado – recomendando aos estados-membros que cumpram estritamente seus deveres (...) para impedir que mercenários armados se integrem à Jamahiriya Líbia Árabe.
Os estados-membros devem exigir que as empresas domésticas sejam vigilantes ao negociar com entidades incorporadas na Líbia, se os estados tiverem informação suficientemente sólida que permita concluir que esses negócios podem contribuir para a violência ou uso de força contra civis.
Solicita que o secretário-geral da ONU crie grupo de oito especialistas, para supervisionar a implementação [da R-1.973].
Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.
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