terça-feira, 4 de março de 2014

Como avaliar Nietzsche?

 A.P.Santos
 
Friedrich Wilhelm Nietzsche

Começo com uma reflexão: livro é bom, televisão é ruim. Se num programa de televisão sobre Nietzsche uma fala, um pensamento, me chama a atenção, eu não posso me deter em considerações sobre o que foi dito porque a história continua se passando na tela e eu tenho que acompanhá-la. É claro que, em se tratando de um vídeo, eu posso interromper a exibição e continuar vendo depois. Mas nem sempre isso é possível. O fato é que a televisão não respeita os nossos ritmos. Numa palestra a que eu esteja presente, posso pedir ao palestrante que explique melhor um determinado ponto. Num programa de televisão jamais.

Relia eu hoje “O AntiCristo”, de Nietzsche, porque não o entendi direito na primeira leitura. De repente, me dei conta de algo que eu não havia percebido antes. Parei a leitura e fiquei imaginando que tanto Freud quanto Marx devem ter lido Nietzsche. Obviamente que Marx, que morreu em 1883 (tinha o Nietzsche então 39 anos), não poderia ter lido o livro, que é de 1888, mas a impressão que eu tenho é que o ateísmo de Nietzsche influenciou tanto Marx quanto Freud.

Freud tinha 32 anos de idade quando “O AntiCristo” foi lançado. O que ele teria achado desse trecho?

Que ninguém se deixe induzir em erro: grandes espíritos são céticos. Zaratustra é um cético. A força, a liberdade que vem da força e sobreforça do espírito prova-se pela skepsis. Homens de convicção, em tudo o que é fundamental quanto a valor e desvalor, nem entram em consideração. Convicções são prisões. É algo que não vê longe o bastante, que não vê abaixo de si: mas para poder tornar a palavra sobre valor e desvalor, é preciso ver quinhentas convicções abaixo de si - atrás de si... Um espírito que quer algo grande, que quer também os meios para isso, é necessariamente cético. A liberdade diante de toda espécie de convicções pertence à força, o poder-olhar-livremente ... 

A grande paixão, fundamento e potência de seu ser, ainda mais esclarecida, ainda mais despótica do que ele mesmo, torna seu intelecto inteiro a seu serviço; torna-o inescrupuloso; encoraja-o até mesmo a meios sacrílegos; concede-lhe, em certas circunstâncias, convicções. A convicção como meio: muito só se alcança por meio de uma convicção. A grande paixão usa, consome convicções, não se submete a elas − sabe-se soberana − ao inverso, a necessidade de crença, de um incondicionado de sim e não, de carlylismo, se me permitem essa palavra, é uma necessidade da fraqueza. O homem da crença, o “crente” de toda espécie, é necessariamente um homem dependente - um homem que não é capaz de se propor como fim, que em geral não é capaz de propor fins a partir de si.

O “crente” não se pertence, só pode ser meio, tem de ser consumido, necessita de quem o consuma. Seu instinto dá a mais alta honra a uma moral da privação de si: a esta o persuade tudo, sua esperteza, sua experiência, sua vaidade. Toda espécie de crença é em si mesma uma expressão de privação de si, de estranhamento de si...

Sigmund Freud
por Carlín
Que se pondere quão necessário é, para a maioria, um regulativo que a ligue e firme de fora, o quanto a coação ou, em um sentido superior, a escravidão, é a única e última condição, sob a qual o ser humano fraco de vontade, sobretudo a mulher, prospera: assim se entende também a convicção, a “crença”.

O homem da convicção tem nela sua espinha dorsal. Muitas coisas não ver, em nenhum ponto ser imparcial, ser partidário de ponta a ponta, ter uma ótica rigorosa e necessária em todos os valores − somente isso condiciona que uma tal espécie de homem subsista em geral. Mas com isso ela é o oposto, o antagonista do verídico − da verdade ...

O crente não está livre para ter em geral uma consciência para a questão “verdadeiro” e “não-verdadeiro”: ser honesto nesse ponto seria desde logo sua ruína.

O condicionamento patológico de sua ótica faz do convicto o fanático − Savonarola, Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon − o tipo oposto ao espírito forte, tornado livre. Mas a grande atitude desses espíritos doentes, desses epiléticos do conceito, faz efeito sobre a grande massa − os fanáticos são pitorescos, a humanidade prefere ver gestos do que ouvir razões ...

De fato, faz uma grande diferença, com que finalidade se mente: se com isso se conserva ou destrói. Pode-se estabelecer entre cristão e anarquista uma perfeita equação: sua finalidade, seu instinto, visa somente à destruição. A prova desta proposição, basta lê-Ia na história: esta a contém com assustadora clareza.

Se acabamos de travar conhecimento com uma legislação religiosa cuja finalidade era “eternizar” a suprema condição para que a vida prospere, uma grande organização da sociedade − o cristianismo encontrou sua missão em dar fim a uma tal organização, justamente porque nela a vida prospera. Ali, o rendimento em razão de longos anos de experimento e de insegurança deveria ser aplicado em utilidades mais distantes, e ser tão grande a colheita, tão rica, tão completa quanto possível: aqui, ao contrário, da noite para o dia, a colheita foi envenenada ... Aquilo que se erguia aere perennius, o imperium Romanum, a mais grandiosa forma de organização sob condições difíceis que até agora foi alcançada, em comparação à qual todo o antes, todo o depois, é fragmento, remendo, diletantismo - aqueles santos anarquistas se fizeram uma “devoção”, de destruir “o mundo”, isto é, o Imperium Romanum, até que não restasse pedra sobre pedra − até que mesmo os germanos e outros rústicos puderam tornar-se senhores sobre ele ...

O cristão e o anarquista: ambos décadents, ambos ineptos a atuar de outro modo, a não ser dissolvendo, envenenando, enfezando, sugando sangue, ambos o instinto do ódio mortal contra tudo o que está em pé, tem estatura, tem duração, promete futuro à vida ...

O cristianismo foi o vampiro do Imperium Romanum − o descomunal feito dos romanos, conquistar o chão para uma grande civilização, que tem tempo, ele o desfez da noite para o dia − ainda não se entende isso? O Imperium Romanum que conhecemos, que a história da província romana nos ensina a conhecer cada vez melhor, essa admirável obra de arte do grande estilo, foi um início, seu edifício estava calculado para se comprovar com os milênios − até hoje nunca se edificou assim, nunca sequer se sonhou edificar em tal medida sub specie aeterni!  

Essa organização era firme o bastante para suportar maus césares: o acaso das pessoas não pode fazer nada em tais coisas − primeiro princípio de toda grande arquitetura. Mas não era firme o bastante contra a mais corrupta espécie de corrupção, contra o cristão ...

Esse verme secreto que à noite, na neblina e na ambiguidade, se aproximava sorrateiro de todos os indivíduos e sugava de cada indivíduo a seriedade para coisas verdadeiras e, em geral, o instinto para realidades, esse bando covarde, feminino e açucarado, passo a passo afastou as “almas” desse descomunal edifício − aquelas valiosas, aquelas virilmente nobres naturezas, que sentiam na causa de Roma sua própria causa, sua própria seriedade, seu próprio orgulho.

A tortuosidade de carolas, a clandestinidade de conventículos, conceitos sombrios como inferno, como sacrifício dos inocentes, como unio mystica no beber sangue, antes de tudo o fogo lentamente atiçado da vingança de chandala − isso se tornou senhor sobre Roma, a mesma espécie de religião a cuja forma preexistente já Epicuro havia feito guerra. Leia-se Lucrécio para compreender o que Epicuro combateu, não o paganismo, mas “o cristianismo”, quer dizer, a corrupção das almas pelo conceito de culpa, pelo conceito de castigo e de imortalidade.

Combateu os cultos subterrâneos, o escorregadio cristianismo latente e negar a imortalidade era, já naquele tempo, uma efetiva redenção − e Epicuro teria vencido, todo espírito respeitável no império romano era epicurista: então apareceu Paulo ...

Paulo, o ódio-de-chandala feito carne, feito gênio, contra Roma, contra “o mundo”, o judeu, o judeu eterno par excellence... O que ele adivinhou, foi como, com o auxílio do pequeno e sectário movimento cristão, à margem do judaísmo, se pode acender um “incêndio do mundo”, como, com o símbolo “Deus na cruz”, se pode somar tudo o que está por baixo, tudo o que é secretamente sedicioso, a inteira herança de agitações anarquistas dentro do império, em uma potência descomunal. “A salvação vem dos judeus”.

Karl Marx
O cristianismo como fórmula para suplantar os cultos subterrâneos de toda espécie − o de Osíris, da Grande Mãe, de Mithra, por exemplo − e somá-los: nessa intuição consiste o gênio de Paulo. Seu instinto estava tão seguro nisso, que as representações, com as quais aquelas religiões de chandala fascinavam, ele as pôs, com impiedosa violência contra a verdade, na boca daquele “salvador”, de sua invenção − e não somente na boca − que; deste, ele fez algo que também um padre de Mithra podia entender ...

Esse foi seu instante de Damasco: ele compreendeu que tinha necessidade da crença na imortalidade para desvalorar “o mundo”, que o conceito “inferno” ainda se tornaria senhor sobre Roma − que com o “além” se mata a vida ...

Nihilist und Christ, niilista e cristão: isso rima, isso não rima apenas ...

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Eu não sei o que Freud pensou do “O AntiCristo”, mas eu pensei que se o cristianismo destruiu um império como o romano é bem capaz de estar destruindo o império de hoje, que é o “Império Estadunidense”. Desde o lançamento, pelos soviéticos, do Sputnik I, que os norte-americanos estão desconfiados de que existe algo errado com o sistema educacional deles.

Nos anos 1990s o Bill Clinton pediu à comunidade científica que estudasse o assunto de forma mais aprofundada, o que era um sinal claro, de que o problema continuava. E quando ouço falar no avanço das igrejas pentecostais nos Estados Unidos, com pastores eletrônicos ganhando fortunas e com imensas audiências, ao mesmo tempo em que vejo professor norte-americano escrevendo livro dizendo que “nunca viu geração tão idiota quanto a dos Estados Unidos de hoje”, eu começo a pensar que o Nietzsche descobriu a fórmula infalível para a destruição de impérios.

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Quanto ao “Como Avaliar Nietzsche”, tendo em vista que todos devemos ter um consultor ou um conselheiro para nos orientar, embora nem sempre compreendamos o que eles dizem (o Roosevelt, depois de conversar com Keynes, disse para um assessor, que queria saber o que o presidente tinha achado do famoso economista: “Ele é, certamente, um grande homem, mas eu não entendi nada do que ele falou”.

Bertrand Russel
O Roosevelt é a prova cabal de que um presidente não precisa entender das coisas, desde que saiba ouvir as pessoas certas), eu recorri ao meu “consultor filosófico”, o Bertrand Russell.

Mas o Nietzsche é uma figura complexa demais para que eu possa resumir, em poucas palavras o que o Russell disse dele.

Limitar-me-ei a dizer que, segundo Russell, “a crítica nietzschiana das religiões e da filosofia é dominada inteiramente por motivos éticos” e que “A moral de Nietzsche não é de indulgência consigo mesmo em nenhum sentido comum: acredita na disciplina espartana e na capacidade de suportar a dor, como também de infligi-la, para fins importantes. Admira acima de tudo a força de vontade”.

Isso é muito pouco mas eu espero que possa motivar algumas pessoas a estudar a obra desse importante filósofo.
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[*] Alfredo Pereira dos Santos (7 de abril de 1943). Nascido e criado no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. Foi Salva-Vidas durante algum tempo e formou-se em Engenharia, Estatística e Matemática, mas  fixou-se na Informática, que se tornou sua profissão. Criança e adolescente, jamais assistiu TV. Lia muito. Tem um casal de filhos formados (ele, História, ela, pedagogia). Deixou de escrever poesia depois de receber demolidora crítica do silêncio de dois poetas, um consagrado e o outro nem tanto. Enxadrista e colunista de Xadrez tendo escrito um livro sobre o assunto: Cartilha de Xadrez.


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