TEMOS DE LER OS TELEGRAMAS COMO SE FOSSEM CENAS, não como se fossem “fatos” (que não são!)
Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila Vudu
Aqui vai, à guisa de amostra, um telegrama distribuído ontem e que traduzimos a partir de uma página-espelho de WikiLeaks (endereço no telegrama).
A amostra-exercício consiste em LER o telegrama, menos em busca de 'fatos' que possam ser reescritos como manchete jornalística, e, mais, como se o próprio telegrama fosse uma 'cena'.
Os fatos que se veiculam nesses telegramas NÃO SÃO, de modo algum, o que alguém disse ou não disse, ou diz-que-disse, ou diz-que-alguém disse.
Esses telegramas são CENAS às quais, até agora, NINGUÉM teve acesso fora do governo dos EUA. E em todos os telegramas alguém fala de nós ou de temas que nos interessam. O FATO que mais nos interessa é, quase sempre, nesses telegramas, A PRÓPRIA CENA.
Se não aprendermos a explorar a CENA a que se assiste em cada telegrama, NÓS MESMOS estaremos nos condenando a leituras 'jornalísticas' dos telegramas. BASTA dessa perversão de ouvir conversas dos outros e achar que, se alguém lá diz algo que alguém cá gosta de ouvir... "então", o que alguém cá gosta de ouvir estaria "comprovado".
Leiam o telegrama que aí vai e vamos tentar LER A CENA. Vamos ver no que dá?
Vamos ver se nós, pelo menos, SAÍMOS dessa arapuca jornalística?!
A ideia é fazer uma leitura digamos "literária- cenográfica" do telegrama abaixo.
Pode-se supor, por exemplo, que a cena abaixo apareceu num filme.
Taí. Se a cena abaixo aparecesse num filme, ela SIGNIFICARIA o quê?
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ID: 06SAOPAULO276
Dokument dato: 14/03/2006 19:07:00
Release dato: 2010-12-14 06:06:00
Kilde: Consulate Sao Paulo
Cabeçalho (...)
SIPDIS / SENSITIVE / SIPDIS
(...)
ASSUNTO: O Cardeal HUMMES sobre o governo Lula, a oposição e a ALCA
SENSÍVEL MAS NÃO SECRETO – PLEASE PROTECT ACCORDINGLY.
------- RESUMO -------
1. (U) Dia 10/3, durante visita de cortesia que lhe fez o Cônsul Geral [SP], Claudio Cardinal Hummes (sic) falou longamente sobre os sucessos e fracassos do governo Lula, sobre sua opinião sobre a disputa entre Serra (Prefeito de São Paulo) e o governador Alckmin que aspiram a ser indicado como candidato à presidência pelo PSDB (Brazilian Social Democracy Party); e destacou que, ao contrário do que dizem muitos, a Igreja Católica, como instituição não se opõe ao Free Trade Area of the Americas (FTAA = ALCA) e de fato considera necessários tais acordos, mas entende que qualquer acordo deve ser interessante para todas as partes e deve ser exaustivamente discutido por todas as partes. FIM DO RESUMO.
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GOVERNO LULA: REALIZAÇÕES, MAS TAMBÉM FRUSTRAÇÕES
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2. (U) O Cônsul Geral [ing. Consul General (CG)], acompanhado pelo “Poloff”, visitou dia 10/3 Dom Claudio Cardinal Hummes (sic), Bispo de São Paulo e líder da Igreja Católica no Brasil. Perguntado sobre sua opinião sobre o cenário político atual, Hummes disse que o governo Lula “foi um importante marco para o Brasil: governo democrático, comandado por um trabalhador, com grandes sucessos, como a estabilidade macroeconômica, a melhoria da imagem internacional do Brasil e o pagamento da dívida que o país contraíra no exterior. Evidentemente, nem tudo foi tão positivo. O Cardeal conhece Lula desde quando ambos trabalhavam, cada um em seu campo, nos subúrbios industrial do ABC (Santo Andre, São Bernardo dos Campos, São Caetano do Sul) ao sul da cidade de SP, durante a ditadura militar (informação biográfica completa no Ref A), e sempre soube que Lula queria fazer mais no plano social para melhorar as condições de vida dos trabalhadores e dos pobres. Tem certeza de que Lula está desapontado por não ter criado mais empregos. “Bolsa Familia” (transferência de pagamentos para os mais pobres que preencham algumas exigências) é bom programa; é verdade, como disseram alguns críticos, que não basta para “arrancar as pessoas da miséria”, mas é medida emergencial eficiente para os realmente necessitados. O problema fundamental, disse Hummes, foi que o Brasil não cresceu o suficiente. Juros altos e muitos impostos impediram que o Brasil alcançasse o ritmo de crescimento de outras economias emergentes como China, Índia e México. Se isso pudesse ser alterado, o Brasil estaria pronto para andar adiante.
3. (SBU) Depois, foi o escândalo da corrupção. Lula não merecia, disse Hummes. Não significa que Lula não soubesse de coisa alguma, como disse. Mas Lula foi enganado por gente que o cercava, alguns com agenda própria, principalmente o ex-ministro da Casa Civil Jose Dirceu. A agenda de Dirceu era manter o PT no poder, objetivo que exigia grande quantidade de dinheiro. Para Dirceu, os fins justificam os meios. Dirceu, que é operador político racional e astuto, queria ser o sucessor de Lula, e usou, para esse seu objetivo, os poderes do governo, inclusive mais de 20 mil cargos para indicados pelo presidente (“injustificável, numa democracia”, disse Hummes). Por ironia, as atividades de Dirceu foram divulgadas por Roberto Jefferson (deputado federal por um partido aliado do governo que também estava implicado em atos de corrupção e que passou a implicar outros, até ser, o próprio Jefferson, expulso do Congresso) – “Jefferson tampouco era algum paladino da ética”.
4. (SBU) Hummes não afirmou com certeza que Lula se canditará à reeleição. “Há 70% de chances de que se candidate. Lula sempre foi contra a reeleição de presidentes. Lula entende que melhor seria um mandato mais longo, 5 ou seis anos, mas sem reeleição. Também acho que seria muito melhor para nossa democracia”. Hummes também acha que haver eleições a cada dois anos – eleições federais e estaduais que se alternam com eleições municipais – é processo que impede a continuidade e torna impossível, para qualquer governo, completar qualquer plano.
---- PSDB ----
5. (SBU) O Cônsul Geral observou que o recente crescimento de Lula nas pesquisas de opinião [obs. O telegrama é datado de 14/3/2006] implica sério desafio para o PSDB, da oposição. O cardeal Hummes concordou; e destacou que há muitas semelhanças entre o PT e o PSDB. “Fernando Henrique Cardoso (FHC), de vários modos, aproximou o PSDB do PT. E então Lula, ao chegar ao poder, adotou algumas políticas do PSDB. É preciso que os dois estejam em confronto, para que se consiga ver as diferenças”. O partido tinha excesso de bons candidatos, disse Hummes, e abundância de talentos, desde a fundação. Em 2002, o partido enfrentou dificuldades para decidir-se a favor da indicação de Jose Serra; no final, FHC teve de intervir e indicá-lo ‘pessoalmente’. O cardeal conhece os dois pré-candidatos do PSDB e conversa regularmento com ambos. Na opinião do cardeal, o problema com a candidatura de Serra é que, se concorrer e perder, o PSDB terá perdido a prefeitura de São Paulo, sua maior vitrine para a política nacional. Alckmin, embora pouco conhecido fora de São Paulo, poderia ser uma grande novidade nacional. Na opinião de Hummes, Alckmin poderia ser adversário mais difícil para Lula no nordeste, porque Alckmin teria melhor penetração nas classes inferiores, do que Serra. Ainda que perdesse para Lula, o PSDB ainda teria a prefeitura de São Paulo. Portanto, a decisão racional seria Alckmin, mas o cardeal reconheceu que a política nem sempre é racional. Observou também que o governador de Minas Gerais Aecio Neves chegou a pensar em concorrer, mas optou pela certeza da reeleição como governador de Minas, em vez da disputa contra Lula, que Aécio não tinha certeza de que venceria.
6. (SBU) Num segundo mandato, Hummes previu que Lula seria mais moderado que Serra [se eleito]. Lula não é aventureiro e, como qualquer estadista, não correrá riscos temerários. Serra é, por temperamento, muito mais duro que Lula, e sempre se opôs à política macroeconômica ‘neoliberal’ implementada primeiro por FHC e, depois, por Lula.
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A IGREJA NÃO SE OPÕE À ALCA
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7. (SBU) O Cônsul Geral levantou a questão da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) [ing. Free Trade Area of the Americas (FTAA)], observando que os EUA continuam interessados em negociar um acordo ainda que o governo Lula não dê sinais de entusiasmo, e perguntou sobre a posição da Igreja. O Cardeal respondeu que a Igreja não faz oposição institucional a esse tipo de acordo. O mundo está evidentemente cada vez mais integrado, e as nações não podem isolar-se nem fechar-se em nacionalismos. O Brasil, por exemplo, é forte apoiador do Mercosul, mas a comunidade é muito frágil, em parte por causa dos problemas econômicos da Argentina. A ALCA tem de ultrapassar ideias tradicionais de que seria mais um veículo para que os EUA explorem a miséria da América Latina. Poucos na região creem que seja possível alcançar um acordo equilibrado. Mas, embora não seja fácil, é importante que todos continuem tentando. Hummes entende que o presidente Lula está tentando superar o “pensamento velho” que tende a atribuir a outros – quase sempre aos EUA – a culpa pelos problemas do Brasil. A Igreja, como instituição, o cardeal reiterou, não se opõe à ALCA e não se oporá. Pode acontecer de alguns bispos individualmente, ou grupos de bispos, oporem-se, ou ONGs ligadas à Igreja. Provavelmente, algum grupo de estudos apresentou recomendações à Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) fazendo oposição à ALCA, e esses estudos talvez tenham sido publicados como se manifestassem a posição da Igraja no Brasil. Mas a CNBB jamais adotou posição oficial contra a ALCA e a Igreja não se opõe a acordos de livre comércio em geral ou à ALCA em particular. A Igreja, disse o cardeal Hummes em conclusão, considera importante que todos os acordos sejam discutidos publicamente, e que sejam justos para todas as partes. O Cônsul Geral replicou que o Governo dos EUA concorda com que esses acordos tenham de ser aceitáveis pelos dois (ou todos os) lados, porque, se assim não for, os acordos não serão sustentáveis.
------- COMENTÁRIO -------
8. (SBU) Durante os últimos seis meses, vários interlocutores brasileiros, do governo e do setor privado, nos alertaram sobre a oposição da Igreja a um acordo ALCA, que viam como fator importante da oposição que o acordo encontra na opinião pública, a qual, por sua vez, pesara na relutância do Governo Brasileiro, que não se interessou por adiantar as negociações. Ref C relatou que, em julho de 2002, a CNBB comandou Campanha Nacional contra a ALCA, a qual, dentre outras coisas, publicou “panfleto escandaloso [orig. scurrilous] de 42 páginas cheias de erros, atacando a proposta e com ofensas aos “EUA imperialistas”. O Cônsul não pode ter certeza, tanto tempo depois, de que a campanha e o panfleto tenham sido trabalho da própria CNBB ou de alguns membros mais radicais. Em setembro de 2002, a Pastoral Social da Igreja Católica co-patrocinou (associada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o PT e cerca de 30 ONGs) a realização de um referendum não-oficial contra a ALCA.
Se está correto o que diz o Cardeal sobre a posição oficial da Igreja Brasileira (sic) – e não há por que duvidar de sua palavra ou de seus conhecimentos dos negócios da Igreja –, nesse caso a posição oficial já foi a muito superada, na opinião pública, pela posição sempre repetida, e contra a ALCA, de alguns sacerdotes, bispos e atores laicos influentes. Seja como for, o fato de que a Igreja não se opõe de fato a um acordo talvez venha a ser útil nos próximos meses. Em geral, as opiniões de Hummes sobre o atual cenário político no Brasil, são lúcidas e bem informadas, e é claro que acompanha de perto a situação e que mantém contato próximo com todos os atores relevantes. FIM DO COMENTÁRIO.
9. (U) Telegrama liberado/coordenado com a Embaixada em Brasília. McMullen.
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