domingo, 16 de novembro de 2014

Movimentos podem fazer história, mas revoluções não surgem do nada, sem mais nem menos

14/11/2014, [*] Chris Nineham, Counterfire
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


O neoliberalismo é ao mesmo tempo tão global, tão ideológico e tão destrutivo, que forçou as grandes minorias a pensar seriamente sobre uma luta coordenada na busca de vias alternativas para organizar a sociedade. (...) O perigo aqui é celebrar o espontaneísmo, à custa de toda a estratégia. (...)


O ponto crucial é que nenhum dos autores reunidos nessas antologias dá o passo decisivo e aponta a falta absoluta que faz uma clara consciência de classe dentro dos movimentos – porque, sem essa clara consciência de classe, nenhum movimento conseguirá desenvolver-se como efetiva ação política. E o marxismo não é teoria para explicar e descrever. O marxismo sempre visa a construir ação política, porque o marxismo é projeto para transformar.


(1) Resenha de Colin Barker, Laurence Cox, John Krinsky and Alf Gunvald Nilsen (Eds.) Marxism and Social Movements [Marxismo e Movimentos Sociais] (Historical Materialism 46), Brill: 2013, vii, 473pp.



Desde o levante Zapatista de meados dos anos 1990s no México, até os protestos antiausteridade e pró-democracia de hoje, os movimentos sociais de massa formam a principal linha de oposição à ordem neoliberal.

Os movimentos subiram às páginas da imprensa-empresa dominante, em 1999, quando 60 mil manifestantes sitiaram Seattle durante uma reunião da Organização Mundial do Comércio. A partir dali se tornaram ligados, em ligação frouxa, no que passou a ser chamado “movimento anticapitalista” ou “movimento antiglobalização”. Incorporado num ciclo de fóruns sociais mundiais e regionais massivos, o movimento antiglobalização serviu como plataforma de lançamento para o movimento antiguerra – o qual, muito bizarra e estranhamente, não é discutido em nenhum dos livros aqui resenhados – e que coordenou as maiores manifestações de massa da história do mundo, dia 15/2/2003. A partir de então, houve uma proliferação de diferentes tipos de lutas de rua e de ocupações, que desafiam a austeridade, denunciam o déficit de democracia, a degradação do meio ambiente, todas as ditaduras e todas as guerras.

Esses movimentos não foram apenas mobilizadores importantíssimos; também alcançaram importantes vitórias e ajudaram a modelar a vida política em vários países. Os protestos de massa contra a privatização da água na Bolívia em 2000, por exemplo, obtiveram suas demandas básicas; e iniciaram um ciclo de ações radicais que forçaram a política eleitoral na direção da esquerda em movimento ativo até hoje.

A grande confrontação com o G8 em Gênova em 2001 acionou três ou quatro anos de ação militante e mobilizações na Itália, e ajudou a converter o partido comunista radical Rifondazione, pelo menos temporariamente, em grande força política nacional. Mais recentemente, um ciclo de manifestações de rua e depois de greves na Grécia criou condições pelas quais o partido Syriza da esquerda radical chegou a liderar pesquisas eleitorais, com boas chances de ser eleito; e, na Espanha, uma nova entidade política, Podemos, emergiu do movimento de protestos de rua. Ao mesmo tempo, os movimentos de oposição à guerra têm conseguido dificultar o processo pelo qual governos ocidentais envolvem-se em guerras; e em alguns países o movimento Occupy ajudou a despertar importantes debates públicos sobre o caos gerado pelo capitalismo.

Outro ponto de vista

Estranhamente, nem todos os marxistas têm dado muita atenção a esses desenvolvimentos. Como Cox e Nilsen comentam, “grande parte do marxismo realmente existente tem bem pouco a dizer sobre movimentos sociais” (p.2). Explica-se, pelo menos em parte, porque os movimentos envolveram novas alianças e às vezes novas táticas que não se enquadram perfeitamente em ideias pre-existentes sobre as características que a luta “deveria” ter.

Encarar os movimentos sociais como desimportantes tem sido erro grave cometido pelos marxistas, porque um dos traços mais notáveis daqueles movimentos ou, pelo menos, de alguns deles, é a combinação que mostram, de amplitude e radicalismo. No geral, esses movimentos aproximam gama muito diversificada de organizações e indivíduos; em geral desafiam sistemas e estruturas; e só muito raramente manifestam-se sobre questões específicas.

Nesse sentido, então, é boa notícia que tenham aparecido dois livros sérios, dedicados à tarefa de compreender os movimentos sociais, de uma perspectiva marxista. São bem-vinda correção que se aplica à condescendência sectária que tão frequentemente se observa em partes da esquerda radical. Há muito a aprender daqueles dois livros, coisas demasiadas, de fato, para que se possam resenhá-las todas.

Marxism and Social Movements [Marxismo e Movimentos Sociais] é uma coletânea de vinte ensaios, alguns sobre questões chave, acadêmicas e estratégicas, outros análises e estudos de caso, contemporâneos e históricos. Os pontos positivos saltam aos olhos. Laurence Cox é um, dentre vários outros autores que destaca a notável tendência dos movimentos para gerar sua própria crítica radical:

Não são simples reprodução de atividade irrefletida, mas processos criativos os quais – para mobilizar os não mobilizados e mudar o mundo – têm de conseguir alcançar além deles mesmos. Vivem em constante debate sobre “o que devemos fazer?, contestando ideias feitas sobre como o mundo é. (p.145).

Desafiar o poder

Um ou dois estudos de caso mostram como, no momento de pico, os movimentos passaram, de desafiar ideologias, para ameaçar as estruturas de poder do mundo real. David McNally traça o processo pelo qual a rebelião boliviana contra a privatização da água em 2000 metamorfoseou-se em luta pelo poder popular. Cita Oscar Olivera, líder do movimento, para explicar como “durante uma semana o estado permaneceu demolido. Em lugar dele, se impôs o autogoverno dos pobres, baseado nas suas estruturas organizacionais locais e regionais” (p.406). Chris Hesketh descreve como uma greve de professores em Oaxaca, México, em 2006, disparou uma faísca repentina que terminou numa proposta assalto ao poder e de governo pelo poder popular:

Os professores organizaram uma assembleia dia 20 de junho/2006, para a qual convidaram vários grupos oficiais que eles esperavam que se mobilizariam em apoio à luta deles. Em vez das vinte e poucas organizações convidadas, apareceram mais de 300 organizações da sociedade civil, cada uma com o seu próprio conjunto de demandas sociais. O que começara como luta num sindicato profissional, foi assim convertido em amplo movimento de insatisfação popular (p.218).

O que se vê aí são duas amplas abordagens sobre o material a ser analisado. Muitos autores destacam o que lhes parece novo sobre os movimentos e sugerem que os movimentos têm capacidade para desenvolver desafios capazes de transformar a ordem neoliberal. Chris Hesketh conclui sua análise dos eventos em Oaxaca sugerindo que “a reformatação do espaço pelos movimentos sociais é, portanto, a reformatação da democracia, a qual exige participação permanente da vida social” (p.231). Alf Nilsen é um dos autores que opera com conceitos construídos pelo marxista italiano Antonio Gramsci, para enfatizar o potencial radical dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo em que destaca que a classe dominante tem inúmeras estratégias para conter e dirigir os movimentos de oposição, esse autor argumenta que, sob as circunstâncias certas, os movimentos sociais têm capacidade para superar qualquer daquelas estratégicas. Em suas palavras:

(...) a resistência dos subalternos pode converter-se em força social contra-hegemônica capaz de transcender e transformar uma dada totalidade e a posição hegemônica dos grupos sociais dominantes dentro dessa totalidade (p.170).

Outra tendência dedica-se a provar que o marxismo é o modo mais efetivo para analisar movimentos sociais e tende a enfatizar a continuidade. O capítulo assinado por Colin Barker mostra sucintamente que marxistas “clássicos”, o próprio Marx, Engels, Lênin e Luxemburgo, todos tinham visão ampla e não redutora da luta de classe, que incluiu o que agora se conhece como movimentos sociais. Barker demonstra que Marx e muitos marxistas-chaves viram consistentemente vários movimentos sociais — o Nacionalismo Irlandês, a revolta contra a escravatura — como movimentos centrais, no projeto do socialismo.

John Krinsky critica o modo como a teoria social dominante abstrai os movimentos sociais de questões de “poder, economia e estado” (p.108). Krinsky nos oferece um útil levantamento do modo como “visões marxistas das relações sociais como totalidade (...) estruturada por contradições” (p.121) garantem os melhores meios para compreender os movimentos sociais.

São discussões importantes, e há outras, no livro. Mas as reflexões teóricas precisariam ser iluminadas por análises mais detidas do destino real dos recentes movimentos sociais. No esforço, correto, para promover a importância dos movimentos, alguns dos autores expõem-se aos perigos de não perceber as limitações deles.

Um dos ensaios mais provocativos e estimulantes é a avaliação, feita por Bond, Desai e Ngwane, do impasse em que vive hoje o movimento sul-africano. O ensaio delineia algumas das complexidades e divisões que emergiram depois do apartheid e pergunta:

Como nos movemos para além da preocupação com o acesso, o localismo, o constitucionalismo e o populismo antipolítica dos protestos contemporâneos – ainda que ações nesses campos às vezes gerem resultados concretos – enquanto, ao mesmo tempo, avançamos para além da ambiguidade de um simples slogan? (p.254).

Os autores discutem a necessidade de desenvolver “um novo estrato de intelectuais orgânicos a partir dos movimentos (...) que possam, talvez, movimentar-se entre eles de modos tais que permitam aos movimentos abstrair do local, sem abandonar a realidade dos próprios movimentos” (p.255).

Infelizmente, esse é um dos raros momentos em Marxism and Social Movements em que dificuldades e controvérsias estratégicas concretas são discutidas com seriedade, e geram-se condições para que apareça a questão da liderança política. Considerados os resultados das lutas discutidas, essa questão é problemática. As grandes mobilizações na Bolívia, de 2000-2005, não geraram poder popular. O movimento em Oaxaca foi derrotado, e a Primavera Árabe foi esmagada ou desviada.

“Juntar os pontos”

(2) Resenha de Laurence Cox e Alf Gunvald Nilsen (Eds.) We Make Our Own History: Marxism and Social Movements in the Twilight of Neoliberalism [Nós fazemos nossa própria história. Marxismo e movimentos sociais no crepúsculo do neoliberalismo]. Pluto: 2014, 272pp.


We make our Own History, de Laurence Cox e Alf Nilsen, começa expondo convincentemente o argumento segundo o qual o neoliberalismo passa hoje por uma fase que Gramsci teria classificado como “uma crise orgânica”;

(...) o espetacular fracasso do neoliberalismo como projeto liderado pela elite global, de reformas econômicas comandadas pelo mercado, é cada dia mais óbvio (p.2).

E prossegue com rica descrição das capacidades dos movimentos para mobilizar contra o sistema, baseada num relato de o quanto a experiência e as lutas são centrais para qualquer compreensão séria do que seja o marxismo:

No processo de organizar e mobilizar, os ativistas podem chegar a “juntar os pontos” entre suas experiências particulares, específicas, localizadas, e as estruturas subjacentes que engendraram tais experiências. (...) Isso, por sua vez, pode levar a alterações na forma e direção da ação coletiva, no rumo de projetos de movimentos mais abrangentes para alcançar formas mais radicais de mudança. (p.72)

Mais uma vez, a tônica cai sobre o potencial dos movimentos para desenvolverem-se e passar a constituir projetos efetivos de transformação social. Autores dos dois livros apoiam-se no trabalho teórico de E.P. Thompson, historiador da New-left, como instrumento para corrigir quaisquer marxismos mecânicos, deterministas. Thompson chama insistentemente a atenção para o íntimo relacionamento que há entre ideias radicais e experiência vivida:

[Processos de mudança] se são internos ao “ente social” parecem recair, debruçar-se, lançar-se, atirar-se contra a consciência social existente, e as mudanças acontecem dentro do ente social que deu origem à experiência mudada: e essa experiência é determinada, no sentido em que exerce pressões sobre a consciência social existente.(pp.33-4). [1]

Nas palavras de Cox e Nilsen,

(...) significados, valores, práticas, relacionamentos e tipos de relacionamentos emergentes cristalizam-se em torno de novas necessidades e capacidades que são constantemente criados mediante a praxis.

Estão absolutamente certos ao chamar a atenção para a evidência de que a experiência vivida do capitalismo pode levar as pessoas ao radicalismo, porque frustra os impulsos humanos e remove a base de qualquer vida suportável. Também é verdade que os recentes movimentos sociais mostraram mais uma vez a imensa capacidade dos povos para luta coletiva criativa, e a extraordinária amplidão que pode alcançar. O neoliberalismo é ao mesmo tempo tão global, tão ideológico e tão destrutivo, que forçou as grandes minorias a pensar seriamente sobre uma luta coordenada na busca de vias alternativas para organizar a sociedade.

Aí se encontra, afinal, um muito necessário antídoto contra o pessimismo que assola alguns círculos ativistas. É também valioso corretivo aos marxismos numéricos, que leem o presente e o futuro pelo prisma do passado e trabalham mais com fórmulas, que com forças vivas. E esse marxismo dogmático, mecânico, foi o que levou, em primeiro lugar, a uma atitude de descrédito em relação aos novos movimentos. Foi ele, também, que empurrou todos para a armadilha simplória de iniciar qualquer conversa com a lista de tudo que mais separa os marxistas do restante do movimento social, em vez de buscar o muito que todos têm em comum, ou (que deus nos salve!) do muito que os marxistas têm a contribuir para o sucesso dos movimentos sociais. Nilsen e Cox estão absolutamente certos, quando dizem que o único partido de esquerda digno do nome é o que ponha os movimentos em primeiro lugar.

Falta ainda o Moderno Príncipe

Mas o argumento que Laurence Cox e Alf Nilsen desenvolvem contra o marxismo “mecânico” custa preço altíssimo. A ideia de que a consciência emerge do próprio tecido da vida atropela um elemento crucialmente importante em qualquer verdadeiro movimento radical: que não há movimento radical sem teorização ativa, sem análise ativa e sem uma específica organização que possibilite tudo isso. Embora vez ou outra os autores reconheçam a necessidade de pensamento estratégico, a íntima identificação que forçam, entre ideias e experiência, acaba por estreitar o espaço para a reflexão, para o debate e para a teoria. O perigo aqui é celebrar o espontaneísmo à custa de qualquer estratégia. É uma versão do marxismo que, no final, reflete e repete, muito mais do que desafia, a tendência a idealizar o espontaneísmo – sempre tão presente e disseminada nos movimentos sociais.

Como Paul Blackledge destaca, muitos marxistas criticaram Thompson por confundir classe e consciência de classe. Geoffrey de Ste Croix nos lembra, por exemplo, que, para Marx, classe e exploração são realidades objetivas (p.271).

Mas o problema é que nem Blackledge nem ninguém extrai disso a conclusão mais óbvia. Se abandonamos a noção de classe e exploração como realidades objetivas, perdemos todos os pontos de referência e somos forçados a desistir de compreender ou pensar estrategicamente sobre o sistema que se opõe a nós ou as forças que podemos conseguir trazer para o nosso lado. A lógica, de fato, nesse caso, cai na subjetividade, e em colapso.

Sem meios para mapear um caminho à frente, terminamos por simplesmente aplaudir qualquer ato de resistência. Ironicamente, para uma teoria que se propõe a combater todos os determinismos, só destacar o espontaneísmo na geração de ideias radicais acaba por ser concepção muito passiva – e determinista – de como as pessoas pensam e agem.

Esses livros não obram contra a teoria, longe disso. Em vários pontos lê-se, várias vezes repetida, a ideia de que o marxismo é a melhor ferramenta para compreender os movimentos sociais. E também há aí, sugeridos, os mais sofisticados modelos de consciência. Mas nada disso nos empurra na direção de garantir aos radicais algum papel essencialmente analítico.

O ponto crucial é que nenhum dos autores reunidos nessas antologias dá o passo decisivo e aponta a falta absoluta que faz uma clara consciência de classe dentro dos movimentos – porque, sem essa clara consciência de classe, nenhum movimento conseguirá desenvolver-se como efetiva liderança política. E o marxismo não é teoria para explicar e descrever. O marxismo sempre visa a construir liderança política, porque o marxismo é projeto para transformar.

Resultado disso, é que as ideias de Cox e Nilsen e de outros que apoiam esse espontaneísmo acabam por escapar de qualquer crítica. Mesmo que os dois livros aqui resenhados, de fato, praticamente ignorem todo o vasto corpo de reflexão que o marxismo dedicou a como construir uma rede de socialistas conscientes e organizadamente operantes.

A revolução não nascerá sem mais nem menos, espontânea, do nada

Há inúmeras razões pelas quais o espontaneísmo é teoria gravemente falhada. Primeiro, é fatal ignorar o modo desigual como a consciência muda. É sinal estimulante que tantos dos novos movimentos tenham assumido críticas radicais. Mas mesmo entre os movimentos mais aparentemente radicais, e mesmo em tempos de crise social, sempre coexistem diferentes ideias. Alguns entenderão que o sistema tem de ser demolido e substituído; outros, que pode ser reformado. E outros acolherão na própria consciência elementos dessas duas posições, simultaneamente.

De certo modo, é como deveria ser, porque, dentre outras funcionalidades, os movimentos servem para mobilizar “marinheiros de primeira viagem”, e esses sempre, inevitavelmente, trazem consigo ideias confusas.

A menos que tenham essa compreensão dos movimentos, os ativistas correm o risco de cair no erro oposto: pensar que precisariam de um movimento radical “puro”. É caminho certo para o isolamento e a frustração, como aprenderam recentemente muitos dos envolvidos nos movimentos Occupy e em movimentos estudantis, em diferentes momentos.

Em termos mais gerais, a confusão de ideias que se encontra em movimentos mais amplos acabará por ser reforçada por líderes moderados ou reformistas e por organizações que sempre tentarão limitar o radicalismo do movimento. Se os reformistas, para tentar “corrigir” a confusão de ideias, empurram na direção da moderação, os revolucionários têm de convencer as pessoas de que é indispensável ação mais militante, mais organizada. Para conseguir isso, é indispensável que as organizações revolucionárias operem dentro dos movimentos.

O segundo problema tem a ver com nossa história. Movimentos radicais não vivem em fartura de recursos. Temos números – potencialmente – temos organização e temos experiência histórica. Apesar dos estudos de casos, muito frequentemente o modelo de radicalização que se encontra nesses livros sugere que cada geração deva apagar a existência da anterior e recomeçar do zero.

Em alguns casos, as crises envolvem forte aceleração da história: “há décadas em que nada acontece; e há semanas em que acontecem décadas”, nas palavras de Lênin. Nessas semanas excepcionais, as pessoas aprendem muito depressa, mas por mais estimulante que se mostre a curva de aprendizagem, a consciência de massa que se desenvolve como resposta aos eventos não se desenvolve suficientemente depressa a ponto de poder prevenir e controlar os eventos. Lições aprendidas da análise de lutas anteriores têm de ser reinvocadas para o presente e o futuro. Sem isso, podemos acabar por cometer os mesmos erros, outra vez, outra vez, até perdermos a guerra.

O terceiro perigo é subestimar a importância de produzir estratégias em geral. Gramsci aparece muito nesses dois livros, e seu trabalho é citado repetidas vezes, como “aval” a ideias sobre consciência espontânea.

Mas os Cadernos do Cárcere de Gramsci são movidos pela convicção, sempre presente no autor, de o quanto podem ser complexas e sofisticadas as defesas políticas, culturais e físicas do sistema capitalista. Qualquer tentativa séria para opor-se ao poder capitalista exige estratégia: para fazer frente à imprensa-empresa dominante; para desarmar o exército e desorganizar as forças policiais; para construir alianças entre diferentes grupos oprimidos etc., etc..

Vê-se tudo isso até em movimentos bem recentes. O movimento boliviano de 2000- 2005 falhou, ao não conseguir capitalizar momentos potencialmente revolucionários. A insurgência em Oaxaca, em 2006, fracassou ao não construir aliados efetivos no resto do país. O magnífico movimento pró-democracia no Egito fracassou em grande parte, porque a esquerda não entendeu que era necessário defender a Fraternidade Muçulmana contra o golpe militar de 2012, por mais que houvesse discordâncias contra as políticas do governo da Fraternidade.

Lidar com esse tipo (e outros!) de desafios estratégicos pressupõe alto grau de planejamento, coordenação e cooperação conscientes dentro do movimento. É por isso que, embora tivesse de codificar os próprios pensamentos, o trabalho de Gramsci na prisão, como seu ativismo nos anos anteriores à prisão, foi dedicado, mais que a qualquer outra meta, aos problemas de construir o que ele chamou de “o Moderno Príncipe” – uma organização política na qual se reuniriam os ativistas de mais clara consciência política, capazes de desempenhar bem a tarefa de garantir liderança revolucionária aos movimentos sociais.

Vez ou outra, só muito raramente, alguma dessas questões aparece referida nesses dois livros. Mas não há qualquer possibilidade de transformação social fundamental sem esse tipo de liderança consciente organizada. E o trabalho que se espera de marxistas é que tentem desenvolver e desenvolvam precisamente esse tipo de liderança. A maioria dos estudos de caso reunidos nessas antologias chega até a ignorar o papel da esquerda organizada nos eventos que comentam.

A discussão que Mark Blecher oferece sobre a história do movimento operário e a organização política na China cabe em duas páginas (pp.162-3), e a fraqueza do movimento é explicada, quase exclusivamente, em termos estruturalistas. Dave McNally examina movimentos insurgentes recentes, mas absolutamente não vê nenhum papel da esquerda em nenhum deles; e o estudo de Chris Hesketh do movimento em Oaxaca diz praticamente zero sobre forças políticas envolvidas.

Não há dúvidas de que a esquerda estava em momento de maré baixa quando emergiu o movimento anticapitalista, mas, do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, aos Comunistas Franceses e aos Trotskistas Egípcios, socialistas de vários tipos tiveram, sim, papel constituinte nos vários movimentos que se discutem hoje.

Essa tendência a ignorar ou a diminuir o papel da esquerda nos movimentos pode explicar também a extraordinária omissão, nesses dois livros, do movimento global antiguerra – o mais amplo movimento social de todos os tempos, e um dos movimentos nos quais a esquerda radical desempenhou papel crucial, em vários pontos do mundo.

Por que esquerda tão tímida?

Alguns dos autores recolhidos naquelas antologias de ensaios, entre os quais Cox e Nilsen, são visivelmente céticos sobre a necessidade de organização revolucionária dedicada. Em We Make our Own History, Cox e Nilsen argumentam que “a ênfase marxista tem de estar no movimento, não no partido” – e, na sequência, dizem até que o serviço chave dos marxistas é contribuir para o “processo desenvolvimental, das racionalidades locais até os projetos dos movimentos –, o que necessariamente envolve luta externa, aprendizado interno e processos complexos de construir alianças e contra-hegemonia” (p.204). É frase um tanto vaga, mas, no geral, é verdade.

O problema é que se revolucionários não têm organização própria, como serão ativos na construção dos tais processos contra-hegemônicos? Qual é o veículo para fazer isso? Na realidade, voltamos à ideia da construção dos movimentos que esperam, contra qualquer possibilidade, que as pessoas encontrem o caminho que leve à revolução.

Outros autores tocam nas tradições da organização revolucionária. Colin Barker delineia um pouco dessa história, em parte do capítulo que assina em Marxism and Social Movements (pp.52–61), mas não discutem o que seriam essas organizações hoje. Algumas das melhores contribuições que se leem em Marxism and Social Movements veem, como trabalho dos marxistas, o desenvolvimento de teorias a serem usadas por outros:

Ativistas e organizadores sociais que operam no terreno mutável das relações de classe nos têm legado teorizações concretas e robustas, nesse espírito. (p.423).

Em parte, a timidez quanto ao papel da esquerda pode ser efeito de pressões criadas pela/na universidade/academia. Universidades e instituições acadêmicas existem para reproduzir ideias dominantes, do establishment. Como Nilsen e Cox sugerem, é extremamente difícil trabalhar na academia, a partir de uma posição de compromisso com os movimentos (p.18). Se já é difícil assumir o lado dos movimentos na academia, quanto mais difícil será defender ou, mesmo, discutir, no mesmo espaço “de saber”, um projeto político para derrubar o capitalismo?

Mesmo assim, a concepção do marxismo como prática de comentário e análise desengajadas aparece nas universidades e estende-se, infelizmente, para bem além das universidades. A atitude sectária em relação aos movimentos e, particularmente, contra os líderes dos movimentos, é sintoma disso; outro sintoma é a proliferação de círculos de discussão e ênfase no debate interno e no trabalho teórico abstrato. Ainda mais um sintoma é a cultura de propor aos líderes demandas irrealistas, em vez de realmente organizar para possibilitar que as coisas sejam feitas.

Houve recentemente uma crise de marxismo ativista, em parte resultado da circulação de algumas grosseiras caricaturas do leninismo. O risco é que essa crise resolva-se em dois polos que se autorreforçam: a prática exclusiva da propaganda, comentário e crítica, de um lado; e, de outro lado, uma idealização acrítica da classe trabalhadora, dos movimentos social e de tudo que se mova. Nem um nem outro dos dois lados dessa equação exigem grande engajamento ou muita atividade. Nem um nem outro lado nos levará muito longe.

O marxismo põe-se em situação de extrema dificuldade, quando se deixa converter em esporte para espectadores. O marxismo é teoria do movimento. Um dos pilares filosóficos sobre os quais se sustenta o marxismo é a ideia de que só é possível compreender os contornos da realidade quando se está em luta com a realidade. Nas palavras de Gramsci, “só o homem que deseja fortemente algo é capaz de identificar os elementos necessários para realizar seu desejo”. A passividade reforça um marxismo mecânico, de fórmulas, porque, se você está fora dos eventos, só lhe restam, dos eventos, as fórmulas.

Na prática, é completa alucinação que tantos marxistas assumam função de espectadores, num momento em que até as análises desenvolvidas pela linha dominante de pensamento apontam para uma crise da ordem política e social. A crise é estrutural e profunda. Apenas para defender os ganhos sociais-democratas de ontem, já é preciso confrontar o consenso do establishment de hoje. Nesse momento, os revolucionários devem lutar para assumir papel protagonista nas lutas as mais amplas possíveis. Só assim se poderá ter esperança de conseguir tornar a política radical relevante para os milhões de pessoas que a cada dia mais conscientes se tornam de que estão sendo descartadas e deixadas para trás.

Essa é também a única via pela qual temos chance de cristalizar o tipo de organização de militantes colaboradores conscientes de que falavam os camaradas da África do Sul. Mas assim como essas organizações exigem liderança de vanguarda ativa, elas também exigem que todos sejamos honestos quanto à necessidade dessa liderança para a organização revolucionária. Temos de superar as disparidades e as desigualdades nos movimentos e começar a forjar estratégias para mudança revolucionária. Sem isso, a vitória é impossível.


[*] Chris Nineham é membro fundador de “Stop the War” e de “Counterfire” e fala frequentemente pelo país, na divulgação de suas organizações. É autor de The People Versus Tony Blair e Capitalism and Class Consciousness: the ideas of Georg Lukacs.


Nota dos tradutores
[1] THOMPSON, E. P., A Formação da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vols., trad. de Denise Bottman.



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