quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Colhidos sempre na armadilha dos seus repetidos erros (Os EUA não aprendem com a história)

[*] Conflicts Forum, Comentário Semanal 14/11/2014 (publicado dia 18/11/2014)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Kennedy e assessores na crise dos mísseis de Cuba
William Polk, veterano comentarista da política exterior dos EUA, que foi um dos três membros da Equipe de Gerenciamento de Crise, durante o impasse entre o presidente Kennedy dos EUA e Khrushchev, da Rússia, na chamada Crise dos Mísseis em Cuba, alerta agora que os EUA estamos andando diretamente no rumo de outro daqueles momentos de extremo perigo (pode-se dizer apocalípticos), em que as tensões crescem descontroladamente – na direção de guerra real.

E ele diz que as próprias dinâmicas que impelem os EUA em direção ao conflito de hoje são, precisamente as mesmas de antes (durante a crise dos mísseis em Cuba: a inabilidade para perceber como o “outro” percebe os EUA; a recusa a reconhecer a verdade do “outro” e o relato “do outro”, da história – ou a inabilidade até para perceber que pode haver outra “verdade” por aí pelo mundo, seja onde for, diferente da “verdade” dos EUA.

Em resumo, os norte-americanos assumem como autoevidente que o povo russo pense e compreenda exatamente do mesmo modo como os norte-americanos pensam e compreendem. E os russos hoje só podem estar necessariamente errados, porque, se não estivessem errados, como seria possível que não pensassem nem compreendessem as coisas como os norte-americanos pensam e compreendem, quer dizer: “racionalmente”? E se os russos agem de modo contrário ao que os norte-americanos creem que devessem agir – não é porque vejam as coisas de outro modo; é porque são beligerantes.

O que mais chama a atenção no que Polk escreveu sobre “lições que os EUA não aprenderam” é que também um ex-alto funcionário russo acaba de nos dizer exatamente a mesma coisa (que os EUA parecemos estar repetindo o mesmo perigoso padrão que levou à Crise dos Mísseis russos em Cuba).

William R. Polk
William Polk escreve:

Meses antes de a crise [1962] cair sobre nós, fiz um tour pela Turquia. Ali visitei uma base da Força Aérea dos EUA, onde 12 bombardeiros de combate estavam em “alerta máximo”. Daqueles, dois já estavam no estágio posterior de alerta, com motores ligados e com os pilotos já sentados nos respectivos cockpits. Prontos para decolar, cada um daqueles aviões estava armado com uma bomba de um megaton, e programado para voar para um alvo na União Soviética. Perto dali, no Mar Negro, em Samsun, vi pelo radar aviões de um esquadrão da Real Força Aérea britânica que estavam testando as defesas aéreas dos soviéticos na Crimeia. E adiante, na Anatolia, em locações supostamente secretas, um grupo de mísseis “Jupiter” dos EUA estava já mirado, armado e pronto para ser disparado.

Aquelas armas eram defensivas ou de ataque? Quero dizer, eram ameaça montada contra a União Soviética; ou defesa do “Mundo Livre”? Meus colegas no governo dos EUA entendiam que fossem armas de defesa. Eram parte de nosso sistema de “contenção”. Montamos tudo aquilo para nos proteger, não como ameaça contra os russos.

Os russos pensavam de modo completamente diferente. E, como resposta ao que viam, decidiram estacionar alguns dos mísseis deles em Cuba. Os estrategistas soviéticos acreditavam que, ao criar equilíbrio contra os nossos mísseis postos junto à fronteira deles, os mísseis deles também seriam defensivos; assim como os nossos, nas fronteiras deles, nos pareciam defensivos. Os EUA pensamos de outro modo. Para nós, o movimento dos russos, de pôr mísseis junto às fronteiras dos EUA, sempre seria inquestionavelmente ofensivo. E por pouco não fomos à guerra, para obrigar os russos a remover de Cuba aqueles mísseis.

Até que “poucos minutos antes da meia-noite” voltamos a pensar racionalmente: recolhemos nossos Jupiters, e os russos removeram os mísseis que eles haviam instalado em Cuba.

A primeira lição a ser aprendida dessa quase catástrofe é sempre tentar compreender o ponto de vista do adversário. Como escrevi alguns meses antes da Crise dos Mísseis Russos em Cuba, os russos tinham um ponto: os mísseis que mantínhamos na Turquia eram obsoletos. Dependiam de propulsão por combustível líquido. Esse tipo de combustível demora vários minutos para entrar em ignição. Para que tivessem alguma utilidade, seria preciso dispará-los antes que mísseis ou bombardeios soviéticos os destruíssem em terra. Isso, por sua vez, significava que só serviam como armas para “primeiro ataque”. E, por definição, qualquer primeiro ataque é sempre “ofensivo”.

Insisti para que os retirássemos com urgência da Turquia. Não foram retirados. Os militares norte-americanos entendiam que aqueles mísseis seriam parte essencial de nossa defesa estratégica. E os mísseis lá ficaram, até que os russos puseram os seus mísseis em Cuba. Então, sim, os EUA retiramos os mísseis. Só os retiramos quando os russos retiraram os deles. Assim, em certo sentido, a Crise dos Mísseis foi um toma-lá-dá-cá. Em minha opinião, não há meio mais idiota de pôr em perigo a sobrevivência da humanidade!

União Europeia
Foi assim naquele momento – e é assim hoje: Qual é a percepção que EUA e União Europeia têm sobre o que estão tentando fazer na Ucrânia? Estão tentando criar uma Ucrânia orientada pelo ocidente, integrada, próspera, territorialmente una, segura e democrática.

Muitos europeus veem esse objetivo como – simplesmente – reflexo do impulso gravitacional “civilizacional” da União Europeia. Os russos pensam de outro modo.

Os russos sabem bem dos profundos cismas que dividem a Ucrânia, de ódios antigos. Pensam que o ocidente está usando essas velhas animosidades para criar uma plataforma ofensiva mediante a qual o ocidente tentará enfraquecer a Rússia. Então a liderança russa reage: aumenta a segurança em torno da histórica base naval russa em águas temperadas; e reage com força no Donbass, contra um governo de Kiev hostil. E volta a mesma pergunta: a reação russa foi ofensiva ou defensiva?

Para a Rússia, os seus próprios movimentos são defensivos (de fato, são existencialmente defensivos).

O ocidente vê as coisas de outro modo: vê os movimentos dos russos como ameaça contra toda a ordem europeia do pós-guerra, nada menos que isso. Então, o ocidente posicionou seus “mísseis” junto à fronteira russa. Mas nessa nova modalidade de guerra, não se trata literalmente de bombas, como as que William Polk viu na Turquia, já na pista e com turbinas ligadas; trata-se agora dos “bombardeiros” do Tesouro dos EUA, carregados com bombas de nêutrons financeiros: as tais sanções, pensadas para causar dano aos lucros futuros que a Rússia poderia auferir da venda dos hidrocarbonos. Para o ocidente, é ação de “contenção”, ato “correcional”, que levará a Rússia a “arrepender-se” do “mau comportamento” de antes.

Para os russos, é absolutamente outra coisa: para os russos, é movimento de ataque; é guerra. Guerra contra o presidente Putin e guerra contra a própria Rússia.

A Rússia, portanto, reage conforme sua percepção, defensivamente: e cria um sistema paralelo de finanças, comércio e câmbio, com a China.

O ocidente não entende assim, e o preço do petróleo cai em quase 1/3. Para o ocidente, não passa de reação técnica ante condições de mercado. Os russos, relembrando o modo como a Arábia Saudita operou para derrubar o preço do petróleo em 1986, o que empurrou a União Soviética para a implosão financeira, pensam de outro modo.

Queda de preço do petróleo provocada pela Arábia Saudita sob comando dos EUA
Os russos relembram o passado e sabem que entraram num túnel em escalada que pode, sim, levar à guerra. Pode ser guerra “a quente”, ou nova modalidade de “guerra” comandada pelo Tesouro dos EUA.

Assim sendo, quais as lições da Crise dos Mísseis Russos em Cuba que poderiam nos guiar dessa vez, quando Kiev já teve suas eleições, e o Donbass, suas contraeleições; quando Kiev ostenta suas forças armadas reequipadas; e o Donbass, as suas milícias rearmadas e reabastecidas?

A primeira lição que William Polk extrai disso tudo é que – diferente, ao contrário da narrativa convencional – os EUA não obrigaram Khrushchev a recolher seus mísseis, graças a alguma potente exibição de força. A verdade é que os EUA silenciosamente removeram seus mísseis Júpiter da Turquia; depois disso, a URSS retirou os seus mísseis de Cuba.

Absolutamente não foi – ao contrário do que reza o folclore – um caso de a URSS ter-se recolhido sob pressão.

Na verdade, depois da crise, quando os eventos foram postos em perspectiva, analisados como se fossem um jogo, para deles extraírem-se as lições que houvesse, os oficiais norte-americanos compreenderam que – se Kennedy tivesse insistido na escalada (em vez de iniciar a desescalada) – os EUA e a Rússia teriam entrado em guerra: a mais devastadora guerra nuclear.

Por quê? Porque quando se analisaram friamente os eventos, ficou comprovado que a teoria da “contenção” baseava-se em pressupostos antropomórficos viciosos.

Estados não “pensam” como se fossem indivíduos: há neles uma comunidade com história diversificada tecida de incontáveis fios, que reflete uma variedade de saberes e práticas e tradições comunitárias. O Estado não age necessariamente como um indivíduo agiria, especialmente se o tal “indivíduo” for concebido como “racionalista” avesso a risco e maximizador de utilidades. Em vez disso, Polk e seus colegas concluíram que estavam tendo de lidar com lideranças-com-comando [orig. ruling leaderships]. E essas lideranças, por uma vasta variedade de fatores psicológicos e competitivos, podem simplesmente concluir que não podem pagar o custo de “ser o primeiro a piscar” – e custe o que custar, sejam quais forem os riscos.

O sonho dos NEOCONS
O resumo final de tudo isso é o perigo que advém de assumir (falsamente) que, dado que todos partilhamos basicamente os mesmos órgãos sensoriais, todos percebermos o mundo de modo semelhante. A “realidade” é escorregadia demais para que as coisas sejam assim. O que para um parece leitura evidente de uma situação, e atos racionais e defensivos, pode deslizar, na percepção do “outro”, até alcançar o polo extremo oposto: e aparecer como pura agressão. O tema básico de William Polk é que todos devemos nos manter atentos a o quão rapidamente o que é “defensivo” gera o que é “agressivo” em nossas políticas exteriores.

Não que esse importante, profundo conselho tenha qualquer chance de encontrar ouvidos receptivos em Washington nesse momento. 

Num artigo do Financial Times, o editor de The National Interest observa que os líderes Republicanos, no rescaldo de suas impressionantes vitórias nas eleições de meio de mandado, parecem agora exultantes ante a possibilidade, para eles já ao alcance da mão, de obterem uma vingança. Os neoconservadores pressionaram muito o presidente Obama no quesito “fraqueza” da política exterior, durante toda a campanha. Agora, estão tomando suas “vitórias arrasadoras” como se legitimassem aquela dureza de linha dura conservadora doentia.

Claro que Obama ainda tem todo o restante do mandato, e pode usá-lo para retroceder e des-escalar – mas não há dúvidas de que, se o fizer, terá de remar contra correntes muito fortes.

No ocidente, a narrativa Republicana de política exterior fracassada por causa da fraqueza do presidente será vista como “coisa da política” e reflexo do ir e vir eleitoral.

Mas os russos e grande parte do Oriente Médio já estão pensando de modo bem diferente (ver, sobre o que os Republicanos dizem hoje, artigo de Rahada Dragham em Al Arabiya: A última chance de Obama reconquistar a credibilidade perdida, ing.). Já percebem que, seja quem for o próximo presidente (e possivelmente também o presidente Obama, sob novas pressões domésticas) será mais agressivo contra a Rússia, o Irã e o governo da Síria. Esses personagens não verão o resultado da eleição como simples “coisa da política”, mas como promessa de escalada na violência.

Bases militares NUCLEARES dos EUA na Europa
É possível evitar a escalada da violência? É possível que os “mísseis Júpiter” e os “mísseis russos em Cuba” sejam desarmados e retirados de onde estiverem? Há solução assim tão “simples”? Ora... Mas o que desejam exatamente os “mísseis defensivos” da Rússia? Aí a coisa aparece bem clara: os russos querem Ucrânia neutra, não alinhada; acordos geoeconômicos não excludentes, que não tentem pôr os russos na posição de vizinho condenado a mendigar; descentralização da autoridade de Kiev, para as regiões; a volta do idioma russo como língua oficial; e fim do subsídio russo ao gás consumido na Ucrânia.

Quanto à Europa, o não alinhamento da Ucrânia, por ele só, jamais foi visto como algo antieuropeu. Basta que a Europa retire seus “mísseis do alinhamento UE e OTAN”, em troca de a Rússia retirar seus “mísseis da militarização das milícias”. Não seria difícil para qualquer diplomata competente, se a questão fosse só a Ucrânia. Infelizmente não é (como nunca foi).

A “guerra” dos EUA contra a Rússia tem tanto a ver com a autopercepção, nos EUA, de seu próprio declínio, quanto tem a ver com a Ucrânia – e esse é problema psicológico muitíssimo mais profundo, razão pela qual as tensões com a Rússia parecem condenadas à escalada. O conflito entre EUA e Rússia só se agravará – a menos que algum líder norte-americano consiga gerir esses sintomas coletivos de ansiedade, os quais, também no nível individual, sempre têm muito a ver com como somos percebidos pelos outros. Essas ansiedades, sejam individuais ou coletivas, como nos ensinam os psicólogos, quase sempre se manifestam inconscientemente pela linguagem ou comportamento de agressão (o que, provavelmente, foi o que emergiu durante as eleições de meio de mandato).

Infelizmente, administrar a percepção que os norte-americanos têm deles mesmos não foi, até hoje, o forte de Obama. É verdade que Obama tentou mudar a “pegada” física que os EUA estão deixando sobre o mundo, refletir um mundo em mutação (e, nisso, teve algum sucesso). Mas, ao mesmo tempo, Obama abraçou a retórica de promoção do “excepcionalismo” e da “indispensabilidade” dos EUA. É o mesmo que dizer que apesar de ter tentado cuidar do aspecto prático da mudança, Obama, ao mesmo tempo, não apenas negligenciou a luta contra a resistência à mudança psicológica necessária, mas, de fato, obrou para reforçar a resistência contra aquela mudança psicológica necessária (para continuar a usar esse tipo de linguagem).

Evidentemente, qualquer ajuste real a um novo papel da nação norte-americana no mundo exige ação pelos dois lados: pelo lado da preparação psicológica e pelo lado da implementação prática do ajuste e da mudança.


[*] Alastair Crooke, às vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio


[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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