sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A comédia sino-americana de erros


Entreouvido no frege da Maria Boa na Vila Vudu: “Artigo útil, só, para ver sionistas norte-americanos alinhando-se com a China” :-D)).

10/11/2014, [*] SpenglerAsia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Dos “Comentários” [aqui traduzidos]:

John Rintala  Top Commenter (Harvard University)
“Os que comentam que Spengler representa a linha pró-Israel, e surpreendem-se agora ao vê-lo falar dos chineses com [alguma] simpatia, têm de compreender que a China soube, muito cuidadosamente, neutralizar o lobby EUA-Israel, garantindo negócios lucrativos para os empresários israelenses; assim, preservou boas relações com Israel. A China vai construir uma ferrovia de Eilat, no Mar Vermelho, até Ashdod, no Mediterrâneo.”

Michael Ngan  Top Commenter (University of Victoria)
Muito obrigado, John Rintala, pelo esclarecimento. É a explicação mais plausível para a súbita conversão do “Spengler”, à racionalidade, sem repetir o sionismo doentio de sempre.


A odisseia da China (Teatro de Pequim)

PEQUIM – Tudo na tragédia acontece por alguma razão, e o resultado é sempre triste; na comédia, muitas coisas acontecem por acaso, e o resultado é quase sempre feliz. As relações sino-americanas não estão destinadas ao conflito, embora o conflito seja possível. Os desentendimentos que dificultam as relações entre os dois países mais poderosos do mundo permanecem no âmbito da comédia, não da tragédia. É o máximo a que se pode aspirar, porque não há quantidade possível de explicações que tornem chineses e norte-americanos compreensíveis uns para os outros.

Onde os chineses são defensivos e cuidadosos, os norte-americanos tendem a vê-los como agressivos; onde os chineses são ambiciosos expansionistas, os EUA os ignoram completamente. Os EUA são potência do Pacífico acostumada a dominar os mares. No pouco que os EUA dão atenção à política exterior chinesa, só fazem mostrar alarme quando a China faz exigências territoriais sobre ilhas microscópicas e não habitadas que Japão, Vietnã e as Filipinas também reclamam para si. Exceto para fazer soar como se fosse coisa séria a retórica de alguns líderes militares chineses, porém, as ilhas em disputa praticamente nem aparecem na escala das prioridades da China.

É o que aparece bem claramente na notícia segundo a qual, na semana passada, China e Japão divulgaram um “Acordo Fundamentado sobre como Gerir e Aprimorar Relações Bilaterais”, resultado de reuniões entre o Conselheiro para Segurança Nacional do Japão, Shotaro Yachi, e o Conselheiro do Estado Chinês, Yang Jiechi. O documento sinaliza que serão criados “mecanismos para gerenciamento de crises, que evitem disputas”; e que os dois países servir-se-ão sempre de “consultas e diálogo”.

Nem o Japão nem a China têm qualquer interesse numa confrontação militar no Pacífico, embora os dois lados tenham usado as disputas pelas ilhas, em encenação dirigida aos respectivos eleitorados nacionalistas internos. O Acordo Fundamentado sobre como Gerir e Aprimorar Relações Bilaterais é claro sinal de que a encenação ao estilo Kabuki já foi longe demais.

Samurai no teatro estilo Kabuki
Meme frequente, em resposta ao suposto expansionismo chinês no Pacífico, inventou uma aliança militar Índia-Japão, sob patrocínio dos EUA, para conter as ambições chinesas. Embora uns poucos nacionalistas indianos tenham abraçado a ideia, examinada de fora vê-se que não passou de gesto oco. Se Índia e China entrarem em confronto por causa, por exemplo, de fronteiras, o que o Japão poderia fazer para ajudar?!

O recém-eleito governo indiano de Narendra Modi jamais levou a sério a ideia. Ao contrário, depois da recente visita do presidente Xi Jinping à Índia, Modi já está de olhos postos em investimentos chineses dos quais a infraestrutura indiana carece com urgência. A economia passa por cima de questiúnculas sobre fronteiras em áreas montanhosas desabitadas que separam as duas nações mais populosas do mundo.

Há também uma dimensão estratégica sobre o crescente bom entendimento que se constata entre China e Índia. Do ponto de vista da Índia, o apoio chinês ao exército paquistanês é motivo de preocupação, mas pode servir como faca de dois gumes. O Paquistão permanece sob o risco de ataque pelo Islã militante, e o principal garantidor da estabilidade do país é o exército. A China quer fortalecer o exército como escudo contra os radicais islamistas, que ameaçam tanto a província chinesa de Xinjiang quanto a Índia; e fortalecer o exército paquistanês, provavelmente, atende tanto aos interesses indianos quanto aos interesses da China.

Analistas chineses estão espantados, sem fala, ante a resposta dos EUA ao que veem como show sem importância no Mar do Sul da China; e a Índia só os preocupa tangencialmente. Ainda estão dando tratos à bola para compreender por que a resposta que emergiu do estrago que os EUA promoveram na Ucrânia foi relacionamento muitíssimo ampliado entre EUA e Rússia.

Por um princípio de diplomacia, a China não aprecia separatistas, porque já tem seus próprios separatistas a enfrentar, a começar pelos uigures muçulmanos na província de Xinjiang. Mas Washington jogou todas as suas fichas na certeza de que os tumultos da Praça Maidan em Kiev ano passado arrancariam a Crimeia do controle russo; o que realmente aconteceu foi que a Crimeia, onde está localizada a principal base naval de águas temperadas da Rússia, foi reintegrada à Federação Russa.

S-400 - Sistema anti-aéreo de mísseis  de defesa
(clique na imagem para aumentar)
Quando, em retaliação, o ocidente impôs sanções contra a Rússia, Moscou moveu-se para o leste – resposta óbvia, e resposta com forte impacto sobre o poder no ocidente. Não apenas a Rússia abriu suas reservas de gás à China, mas também aceitou fornecer à China sua mais sofisticada tecnologia militar, inclusive o formidável sistema de defesa aérea S-400. No passado, a Rússia sempre resistiu contra fazer isso, por causa dos esforços chineses para copiar, por engenharia reversa, os sistemas russos. A crise da Ucrânia mudou tudo isso.

Só agora, afinal, analistas ocidentais observam que a nova aproximação entre russos e chineses pode criar dificuldades para o ocidente. O New York Times devotou manchete de primeira página às opiniões de observadores soviéticos, os suspeitos de sempre, na edição do dia 9/11/2014.

Era óbvio há meses, e deveria continuar óbvio imediatamente antes do fato: o ocidente meramente empurrou “Mano” Putin-Coelho [orig. B'rer Putin] para a floresta densa a leste dele. De todos os erros de cálculo na política do ocidente desde a IIª Guerra Mundial, esse foi, talvez, o mais estúpido. E lá ficam os chineses, hoje, a coçar a cabeça, sem acreditar em tal boa sorte não esperada.

Claro que, sim, é erro falar de aliança Rússia-China; mas está em desenvolvimento um condomínio sino-russo na Ásia. Os negócios de energia e defesa entre Moscou e Pequim são importantes por eles mesmos, mas se tornam muito mais importantes no contexto do que pode ser o mais ambicioso projeto econômico de toda a história: a Nova Rota da Seda. O Pacífico pouco promete à China. Japão e Coreia do Sul são economias maduras, consumidores, tanto quanto concorrentes, da China.

Expansão no Pacífico simplesmente nada tem a oferecer à economia da China. O que a China deseja é ser inexpugnável dentro das próprias fronteiras: gastará generosamente para desenvolver mísseis terra-mar suficientemente potentes para despachar porta-aviões, submarinos de caça e sistemas de defesa aérea dos EUA.

A China prospecta nas direções oeste e sul: energia e minérios na Ásia Central; comida no sudeste da Ásia, portos de águas mornas no Oceano Índico, mercado vasto e acesso aos mercados mundiais onde estejam. A rede de ferrovias, oleodutos, gasodutos e telecomunicações que a China está construindo através das ex-repúblicas soviéticas e através da própria Rússia a levará até o Mediterrâneo [1] e será como trampolim para o comércio chinês com a Europa.

Rota da Seda via sul da Ásia e OM (terra e mar)
(clique na imagem para aumentar)
Toda a massa continental eurasiana tornar-se-á, provavelmente, zona econômica chinesa, sobretudo agora, com a Rússia muito mais disposta a aceitar os termos da China. Que os EUA tenham facilitado esse processo, tornando-o realidade antes até do esperado, pondo-se a atirar contra moinhos de vento na Ucrânia, confunde os chineses, sim; mas não impede que eles usufruam os resultados.

É difícil estimar o impacto de tudo isso, mas é provável que a influência chinesa expanda-se para o oeste, numa escala que o ocidente ainda nem começou a imaginar. Não se sabe se a China tem ideia clara das implicações que pode ter sua Nova Rota da Seda. A implosão da posição geopolítica dos EUA jogou oportunidades e riscos à porta de Pequim, para grande surpresa de Pequim.

Há um ano, funcionários chineses diziam, privadamente, que seu país acompanharia “a liderança da potência dominante” em tudo que tivesse a ver com segurança do Oriente Médio, incluídas as tentativas iranianas para adquirir armas atômicas. Ao longo das últimas várias décadas, a China deixou que os EUA se aproximassem do Golfo Pérsico, enquanto ia aumentando a dependência chinesa daquele petróleo. Em 2020, a China espera estar importando 70% do seu petróleo, a maior parte do qual virá do Golfo.

O pensamento chinês mudou radicalmente nos últimos poucos meses, em parte por causa do colapso do estado iraquiano e do crescimento do Estado Islâmico. Nada mais difícil que encontrar algum especialista chinês que ainda creia que os EUA possam realmente cuidar da segurança do Golfo Pérsico. As opiniões dividem-se entre os que pensam que os EUA são simplesmente incompetentes, e os que pensam que os EUA desejam, deliberadamente, desestabilizar o Golfo Pérsico.

Para muitos (...), os EUA têm interesse em desestabilizar o Golfo para atingir a China. Outro proeminente analista chinês disse que o Estado Islâmico é comandado por oficiais sunitas treinados nos EUA durante a “avançada” [orig. surge] de 2007-2008, e por elementos do velho exército de Saddam Hussein; o que explicaria por que o EI tem mostrado tanta competência militar e organizacional.

A ideia é plenamente justificável, sim: o general David Petraeus ajudou a treinar os 100 mil que fizeram o “Despertar Sunita”, para criar “equilíbrio” de poder contra o regime de maioria xiita que os EUA haviam ajudado a pôr no poder em 2006. Como, perguntam os chineses, o governo Bush e Petraeus poderia ter sido tão absolutamente estúpido? É tarefa hercúlea convencer os chineses de que, sim, sim, eles foram, sim, tão absolutamente estúpidos.


A atitude da China em relação a Washington já é hoje de declarado desdém. Sobre as eleições de meio de mandato nos EUA, o jornal oficial do governo chinês, Global Times, escreveu:

O presidente pato-manco será ainda mais firmemente imobilizado? Fez serviço insípido, quase nada deu a quem o apoiou. A sociedade norte-americana cansou-se de banalidade do presidente que elegeu.

Mas o declínio da influência dos EUA na região da qual a China obtém a maior parte do próprio petróleo não é evento feliz para Pequim.

A China não previu o fim da rédea solta que dera aos norte-americanos e não sabe ainda com certeza o que fará a seguir. Tentou manter um equilíbrio entre os países com os quais comercia e que são hostis entre eles. Vendeu muitas armas convencionais ao Irã, por exemplo, e alguns mísseis balísticos, antigos, pouco sofisticados.

Mas a China vendeu à Arábia Saudita seus mísseis ultrassofisticados de médio alcance, top-de-linha, o que deu aos sauditas “formidável capacidade de contenção” contra o Irã e outros possíveis adversários. A China obtém mais petróleo da Arábia Saudita que de qualquer outro país, embora as importações de Iraque e Omã para a China estejam aumentando depressa. Por que Iraque e Omã são mais próximos do Irã, a China quer que, ali, haja equilíbrio.

A opinião chinesa está dividida quanto às implicações de o Irã obter armas atômicas: alguns estrategistas creem que o equilíbrio nuclear na região bastará para impedir que qualquer daqueles países use as tais armas; outros temem que ação nuclear no Golfo venha a deter o fluxo de petróleo, o que derrubaria a economia chinesa. A China uniu-se às negociações no grupo P-5 “+1” (dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha) sobre o status nuclear do Irã, mas não ofereceu política independente da política do presidente Barack Obama.


Enquanto isso, o crescimento do extremismo islamista preocupa Pequim, como teria, mesmo, de preocupar. Pelo menos, algumas centenas de uigures estão lutando incorporados ao Estado Islâmico, presumivelmente para aprender competências de terrorista a serem levadas de volta à China. Analistas chineses têm opinião nada apreciativa da abordagem que o governo Obama adotou para enfrentar o Estado Islâmico, mas não têm qualquer alternativa a propor. É questão cada dia mais importante. A instabilidade ameaça o projeto da Rota da Seda em vários centros crucialmente importantes.

A China não nutre qualquer simpatia pelo que analistas ali costumam chamar de “Islã político”. O flerte entre EUA e Fraternidade Muçulmana – Obama flertou e importantes senadores Republicanos, como o senador John McCain, também flertaram – é visto pelos chineses como incompetência, ou pior. Mas a China não tem capacidade para perseguir terroristas islamistas, se não pelo deslocamento de uns poucos marinheiros na costa da Somália.

O processo de construir políticas na China é cauteloso, conservador e dirigido por consensos. A preocupação dominante, acima de todas as demais, entre os chineses, é a própria economia chinesa. O ritmo das transformações do Oriente Médio surpreendeu os chineses; agora, tentam decidir o que fazer a seguir.

A política pro forma dos chineses é unir-se às conversações sobre o Irã e oferecer-se para unir-se às conversações do “Quarteto” (ONU, EUA, União Europeia e Rússia) sobre a questão Israel-Palestina; mas nenhuma dessas iniciativas tem muito a ver com as atuais preocupações dos chineses.

Não se pode ainda prever o que a China fará no futuro. Mas parece inevitável que os interesses básicos da China levem o país a envolvimento muito maior e mais profundo na região, tanto maior e mais profundo quanto mais avance a retirada dos EUA.


Nota dos tradutores
[1] Ver também, 16/11/2014, redecastorphoto: Pepe Escobar, “Rota de Seda da China, à glória”, traduzido.

[*] Spengler, apelido de David P. Goldman, escreve a coluna Spengler para o Asia Times Online e contribuifrequentemente para as publicações The Tablet, First Things (2009-2011) e outras. Foi Chefe Global de Pesquisa de Dívida do Bank of America (2002-2005), Diretor Global de Estratégia de Crédito do Credit Suisse (1998-2002). Ocupou cargos importantes nas organizações financeiras Bear Stearnse Cantor Fitzgerald. Foi colunista da revista Forbes (1994-2001). Seu livro How Civilizations Die (and why Islam is Dying, Too) foi lançado em setembro de 2011.

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