quarta-feira, 19 de novembro de 2014

EUA: neoconservadores não foram eleitos... mas governam

17/11/2014, [*] Robert ParryConsortium News.com
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Essas políticas “antiguerra” de Putin [na Síria e no Irã] implicam oposição ativa, contra a agenda dos neoconservadores – que nunca desistem de tentar golpes para “mudança de regime” em todos os países que eles considerem hostis a Israel.


Obama e seus "neocons" na Sala Oval da Casa Branca
Num sistema político racional, os neoconservadores norte-americanos seriam o grupo mais desacreditado e desmoralizado de toda a moderna história dos EUA. Se já não estivessem condenados por cumplicidade em crimes de guerra – da América Central nos anos 1980s ao Iraque, na década passada – no mínimo não seriam, num sistema político racional, repetidamente elogiados por intelectuais de renome em think tanks importantes, nem seriam ativamente promovidos como sumidades e nomes dignos de respeito e reverência, aos quais os grandes veículos da imprensa-empresa norte-americana entregariam a palavra, como colunistas sempre convidados e reconvidados.

Mas os EUA não vivem hoje sob sistema político racional. Em vez de denunciados, processados e condenados, ou de serem postos no ostracismo, os neoconservadores continuam a dominar a política externa da Washington Oficial. Os neoconservadores e seus assessores “intervencionistas liberais” continuam a demonizar líderes “inimigos” – exatamente como fizeram no caso da América Central e do Iraque – e a atacar quem manifeste qualquer dúvida, declarados “fracos” se não embarcam na canoa deles.

E a imprensa-empresa dominante nos EUA, liderada por The New York Times, Washington Post e assemelhados alinha-se com eles sem qualquer resistência ou já é realmente dirigida por neoconservadoresNa sequência, os políticos eleitos, mesmo os que já deveriam saber como opera essa máquina, como o presidente Barack Obama, não se atrevem a afastar jornalistas influentes ou “formadores de opinião” prestigiados pela própria empresa-imprensa. Assim, para se fazerem de “durões”, acabam, também os políticos eleitos, por reforçar os temas dos neoconservadores.

Na altura em que estamos dos acontecimentos, seria terrivelmente simplório e ingênuo esperar que o presidente Obama venha ainda a demonstrar alguma real liderança e repudie o “pensamento” neoconservador em ampla gama de questões, dentre as quais as gravíssimas situações que os EUA criaram no Irã, Síria, Iraque, Rússia e Ucrânia.

Mas paremos por um minuto, só para imaginar o que teria acontecido se o presidente Obama tivesse seguido o aconselhamento dos neoconservadores, ano passado, para atacar massivamente a Síria, deixando-se convencer por acusações sem qualquer fundamentosegundo as quais o governo sírio teria sido responsável por ataque com gás sarín.
Síria - falsas acusações de uso de armas químicas pelo governo de Bashar al-Assad

Por mais que o “pensamento” da Washington oficial insista que de algum modo, por efeito de mágica, a oposição “moderada” síria (que, de fato, não existe) teria assumido o poder e tudo teria saído magnificamente bem, o resultado mais provável daquele ataque, se tivesse acontecido, teria sido que islamistas radicais, fosse o Estado Islâmico ou a Frente al-Nusra da al-Qaeda, teriam tomado o poder. A bandeira negra dos jihadistas poderia ter sido vista a tremular sobre Damasco.

Nesse caso, aconteceria o quê? O ocidente admitiria que a Síria, no coração do Oriente Médio, permanecesse governada pela al-Qaeda, ou pelo Estado Islâmico, ainda mais extremista? E mais: sem o governo secular de Bashar al-Assad, seria de esperar e temer que acontecessem massacres horríveis de cristãos, xiitas, alawitas e outras minorias que apoiam o governo de Assad.

Europa e EUA fariam o quê, nesse caso? Deixar-se-iam ficar de lado, só observando? Cresceriam os clamores para que Obama fizesse “alguma coisa”. E então, naquelas circunstâncias, a única “alguma coisa” a fazer seria intervenção militar pelos EUA, em grande escala, o que significaria mobilizar centenas de milhares de soldados e centenas de bilhões de dólares, sem qualquer possibilidade realista de sucesso.

Como chegamos a esse ponto

É preciso não esquecer como os EUA chegamos a esse ponto. Não havia qualquer Al-Qaeda no Iraque ou na Síria, antes de o presidente George W. Bush embraçar o esquema alucinado dos neoconservadores para invadir e ocupar o Iraque em 2003. O brutal Estado Islâmico cresceu no Iraque, como a Al-Qaeda-no-Iraque, como movimento de resistência contra a ocupação militar norte-americana.

Sob a liderança do extremista jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, a Al-Qaeda-no-Iraque desenvolveu estratégia ultraviolenta, operando sempre com extrema brutalidade, inclusive com massacres de xiitas e ocidentais, como meio para expulsar de terras dos muçulmanos todas aquelas forças pressupostas heréticas.

Zarqawi foi assassinado num atentado terrorista levado a efeito pelos EUA, em 2006, mas sua estratégia sobreviveu, inspirando a crueldade sem limites que se vê ativada hoje no Estado Islâmico, e ao qual até a Al-Qaeda já renunciara, a favor de sua afiliada síria preferida, a Frente al-Nusra.

Abu Musab al-Zarqawi
Assim sendo, se os neoconservadores não tivessem conseguido impor, há uma década, seu “projeto” de invadir e ocupar o Iraque – com o apoio entusiástico de jornalistas e políticos carreiristas profissionais da imprensa-empresa “liberal” norte-americana – é bastante provável que não houvesse hoje as crises do Iraque e da Síria. Pois mesmo assim, a Washington oficial continua a obedecer cegamente a um consenso comandado pelos neoconservadores, sobre tudo que deva ser feito no Oriente Médio e em outras partes do mundo.

Claro: a situação hoje é de tal gravidade e de tal modo confusa que é difícil decidir qual o melhor curso de ação a adotar. Mas qualquer política racional ou sistema racional de fazer política obrigariam a descartar o aconselhamento e todas as opiniões dos “pensadores” que criaram toda essa desgraça.

Pois em vez de serer mandados ajoelhar no milho no canto da sala, com orelhas de burro, os neoconservadores ganharam ainda mais espaço, para ampliar o campo de suas operações! Agora já estão intrometidos no conflito na Ucrânia e na decisão de converter o presidente Vladimir Putin em absoluto Satã, para tentar justificar uma nova Guerra Fria.

Os neoconservadores iniciaram sua estratégia geopolítica soprando as brasas da guerra na Ucrânia, sabendo da sensibilidade dos russos às questões de segurança. Os neoconservadores decidiram que a Ucrânia e Putin seriam seus alvos diretos em setembro de 2013, quando Putin ajudou Obama a evitar um bombardeio aéreo contra o governo sírio.
Carl Gershman, presidente da NED
O plano chegou a ser anunciado por neoconservadores norte-americanos como o presidente do National Endowment for Democracy [lit. Dotação Nacional para a Democracia], Carl Gershman, que se serviu da página de colunistas convidados do Washington Post, jornal que é a nave-madrinha dos neoconservadores, para declarar que a Ucrânia seria “o grande prêmio” e degrau importante para, no futuro, derrubar Putin da presidência da Rússia.

Gershman, cuja Dotação Nacional para a Democracia é mantida e paga pelo Congresso dos EUA, escreveu:

A decisão da Ucrânia de unir-se à Europa acelerará o fim da ideologia do imperialismo russo que Putin representa. (...) Os russos também terão de fazer escolhas, e Putin pode acabar se vendo na ponta mais fraca, não só em relação aos vizinhos próximos, mas também dentro da Rússia.

Em outras palavras, desde o início Putin foi o alvo do ataque norte-americano, na crise ucraniana, não o instigador de qualquer crise. Mas ainda que se ignore que Gershman obra na direção de promover um golpe contra Putin, ainda assim seria preciso construir e acreditar numa rocambolesca conspiração, antes de engolir a ideia de que Putin estaria tramando terrível “agressão” contra a Ucrânia, como primeiro passo no projeto de reconstruir o Império Russo.

Sochi distraiu a atenção de Putin

Verdade é que, quando eclodiu a crise ucraniana, em fevereiro de 2014, Putin estava distraído, ocupado com os Jogos de Inverno em Sochi – e apoiava o status quo na Ucrânia, vale dizer, o governo eleito do presidente Viktor Yanukovych, sem qualquer “projeto” de ampliar o território russo para dentro da Ucrânia.

Vladimir Putin em Sochi (24/2/2014)
Quem apoiava declaradamente a derrubada do governo constitucionalmente eleito na Ucrânia eram EUA e União Europeia, não Putin! Os promotores do golpe na Ucrânia eram neoconservadores norte-americanos conhecidos, como Gershman; a secretária-assistente de Estado dos EUA para a Europa, Victoria Nuland; o senador John McCain.

Esses são fatos conhecidos, sobre os quais já não há qualquer dúvida. Foram plenamente reconhecidos até por Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA, que disse em entrevista à revista alemã Der Spiegel:

Putin gastou bilhões de dólares nos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi. Otema daqueles jogos foi a Rússia como estado progressista ligado ao Ocidente pela cultura, e estado o qual, presumivelmente, deseja permanecer como parte do ocidente. Não faz sentido algum que, uma semana depois de encerrados os Jogos Olímpicos, Putin inventasse de tomar a Crimeia e iniciar uma guerra pela Ucrânia.

Em outras palavras, Putin realmente quer cooperar com os EUA e com o ocidente, o que demonstrou em dois casos cruciais: ao conseguir que a Síria entregasse seu arsenal químico e ao encorajar o Irã a aceitar um acordo temporário sobre a limitação de seu programa nuclear.

Essas políticas “antiguerra” de Putin [na Síria e no Irã] implicam oposição ativa, contra a agenda dos neoconservadores – que nunca desistem de tentar golpes para “mudança de regime” em todos os países que eles considerem hostis a Israel. Assim, Putin, com sua colaboração por trás dos bastidores com Obama, para encontrarem soluções políticas nas questões de Síria e Irã tornaram-se ameaças contra o objetivo máximo dos neoconservadores, ou seja, mais e mais guerrasPor isso Putin tornou-se o alvo de todos os neoconservadores.

Victoria Nuland, agente provocadora do Golpe de Estado na Ucrânia
Na sequência, a imprensa-empresa ocidental de notícias e virtualmente todos os líderes políticos do ocidente abraçaram a narrativa neoconservadora segundo a qual a crise na Ucrânia teria sido culpa integral de Putin e da Rússia, seja no grande contexto como em cada incidente, inclusive no massacre, promovido pelo governo de Kiev, de milhares de russos étnicos. Nos termos do duplipensar do “ocidente”, se Putin não tivesse provocado a crise, aquelas pessoas não teriam morrido.

E assim o golpe apoiado pelos EUA contra o governo de Kiev obteve uma espécie de “indulgência plena” para toda sua brutal operação contra russos étnicos no leste e no sul da Ucrânia, que resistiram contra o golpe que derrubou o presidente Yanukovych que eles haviam elegido, e contra a imposição de uma “nova ordem” que visa, mais uma vez, a impor as duras medidas de “austeridade” e “reformas” ordenadas pelo FMI.

Quando russos étnicos na Crimeia votaram em plebiscito a favor de se separarem da Ucrânia e de serem reintegrados à Rússia – reintegração que Moscou aceitou, depois do resultado do plebiscito – a imprensa-empresa ocidental pôs-se a desqualificar o referendo e a acusar a Rússia de ter “invadido” a Crimeia. A verdade é que sempre houve tropas russas na Crimeia, nos termos do contrato que autorizava a manutenção, em Sebastopol, de uma base naval russa.

Quando a “operação antiterrorista” do novo governo de Kiev matou milhares de russos étnicos no leste – e para esse fim recrutou até milícias neonazistas para fazerem o pior do serviço imundo – a imprensa-empresa neoconservadora nos EUA ou ignorou a brutalidade da ação, ou deu jeito para culpar Putin e a Rússia.

E o avião derrubado? Procurem o criminoso

Dia 17 de julho/2014, quando o avião da Malaysia Airlines que fazia o voo 17 foi derrubado sobre o leste da Ucrânia, o governo de Kiev, a Washington oficial e as redes de televisão correram a “noticiar” que os rebeldes teriam assassinado 298 passageiros do tal avião – o que só teria sido possível, porque a Rússia teria fornecido aos terroristas mísseis antiaéreos suficientes para derrubar um avião de passageiros que voava a 33 mil pés de altitude.

MH-17, antes e depois de derrubado pela Força Aérea da Ucrânia
Pouco depois de o avião ter sido derrubado, comecei a ouvir comentários indiretos, de analistas de inteligência dos EUA, que a investigação já sugeria fortemente outra direção, que não havia prova alguma de que os russos tivessem fornecido a alguém aquele armamento sofisticado; e que as suspeitas aproximavam-se de elementos extremistas dentro do governo ucraniano. Depois, ouvi a informação de que o presidente Obama já sabia disso tudo.

Mas Obama não se deu o trabalho de corrigir nem, sequer, de atualizar os informes para a opinião pública. Por que desperdiçar peça tão útil de propaganda? Além disso, pode ter tido medo de ser taxado de “mole”, contra Putin, por não repetir a sabedoria pressuposta dos “durões” de Washington, para os quais Putin é culpado de todos os males, sempre. Obama continuou, até, a deixar implícita a ideia de que a Rússia teria, sim, algo a ver com a atrocidade.

Falando na Austrália, dia 15 de novembro de 2014, Obama deixou a impressão de que os russos seriam culpados, e insistiu no mote autoelogiativo e autocongratulatório de “EUA acima de todos”, que os neoconservadores tanto prezam. Ainda há poucos dias, Obama disse que:

(...) trabalhamos na oposição à agressão russa contra a Ucrânia – que é ameaça ao mundo, como se viu na ação aterrorizante que derrubou o voo MH17, tragédia que roubou a vida de muitos inocentes, dentre os quais, cidadãos australianos. Como aliados e amigos, os EUA partilham o luto dessas famílias australianas e partilham a determinação de sua nação em busca de justiça e transparência.

Se se examinam com atenção as palavras de Obama, vê-se que ele não culpa a Rússia, declaradamente, pela derrubada do MH-17... mas deixa aberta a porta para uma inferência nessa direção. É mais que claro que a esperança vai-se esvaindo – se ainda houvesse alguma esperança – de que Obama aproveitasse a oportunidade pós-eleições, para delinear abordagem mais honesta e mais realista para a política externa dos EUA.

Obama parece conformado com seguir ordens dos neoconservadores, embora vez ou outra relutantemente e possivelmente se desviando alguns passos das políticas mais extremas, sempre no último momento – como quando decidiu não bombardear a Síria, no verão de 2013.

Mas há perigos graves em Obama não informar aos norte-americanos, com honestidade, sobre o que sabe de todas essas crises. Ah, sim, com certeza seria criticado pelos insiders da Washington oficial e ouviria mais acusações, pelos Republicanos, de “fraqueza” e de que teria “capitulado”.

Mesmo assim daria, pelo menos à parte que pensa da população dos EUA, uma chance de resistir ao próximo desastre, que já se avizinha, pelo script dos neoconservadores.
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[*] Robert Parry (nascido em 24/6/1949) é um jornalista investigativo norte-americano muito conhecido por seu papel na cobertura do Caso Irã-Contras para a Associated Press (AP) e Newsweek, inclusive quebrando o sigilo do Psychological Operations in Guerrilla Warfare ( Manual da CIA fornecido aos Contras da Nicarágua) e por ter descoberto o escândalo do Tráfico de cocaína CIA e Contras nos EUA em 1985. Foi agraciado com o Prêmio George Polk como o melhor Repórter Nacional em 1984. Edita o sítio Consortium News desde 1995.

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