quarta-feira, 31 de agosto de 2011

EUA e a bola de cristal defeituosa

Amin Shalabi, Al-Ahram Weekly, Cairo, 25-31/8/2011, n. 1.062
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


“Não é a ironia definitiva o fato de, na tarde de 11/9/2001, antes de começar o bombardeio, Kabul já ser igual ao sul de Manhattan? A “guerra contra o terrorismo” funciona, pois como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura convicção de que nada mudou realmente.
(Slavoj ZIZEK, Bem-vindos ao deserto do real, cap. 2, Reapropriações: a lição de Mulá Omar”,
[Epígrafe acrescentada pelos tradutores]


Logo depois dos ataques terroristas do 11/9 contra New York e o Pentágono, os centros de pesquisa e think tanks norte-americanos foram denunciados por terem fracassado, sem qualquer informação de que aqueles ataques estavam sendo preparados, e pela incapacidade para avaliar corretamente a situação nas sociedades árabes e islâmicas.

Os especialistas norte-americanos em Oriente Médio fracassaram por não ter sabido avaliar as dinâmicas sociopolíticas que fizeram despertar os grupos militantes da resistência islâmica; erraram completamente na avaliação de ataques terroristas que já haviam acontecido, por exemplo no Egito – que riscaram de seus mapas, como incidentes locais, que não cresceriam a ponto de se tornarem fenômeno global.

Hoje, outra vez os especialistas norte-americanos que estudam o mundo árabe/islâmico estão sob pressão, ou, no mínimo, deveriam encolher-se, envergonhados, dessa vez por não terem antevisto a onda de revoluções que sacudiu o mundo árabe, e pelas premissas e pressupostos errados que subjaziam a todas as avaliações das condições da região, até a véspera daqueles eventos.

O cientista político professor Gregory Gause é um dos especialistas que a Primavera Árabe empurrou para uma espécie de introspecção autoavaliativa das perspectivas daqueles especialistas sobre as forças sociopolíticas ativas no mundo árabe e as relações que mantêm com os regimes governantes. Em discussão na revista Foreign Affairs de julho-agosto 2001 [1] , sobre a transformação democrática e sua conexão com a luta contra o terrorismo, Gause reconhece que várias vozes na comunidade acadêmica norte-americana muito insistiram na direção de que Washington não encorajasse a democratização do mundo árabe, porque os regimes autoritários aliados dos EUA seriam aposta mais segura para o futuro. Muitos, sobretudo, alertaram para o risco de que, se surgissem regimes democráticos no mundo árabe, dificilmente cooperariam para que os EUA alcançassem seus objetivos na região.

Mas quais são os pressupostos nos quais tantos intelectuais norte-americanos basearam suas interpretações dos desenvolvimentos no mundo árabe e das relações existentes entre os regimes governantes e as respectivas sociedades?

O primeiro é que os regimes governantes teriam construído aparatos militares e de segurança suficientemente fortes para derrubar qualquer levante doméstico. Dada a íntima conexão entre os governos e os aparelhos de segurança, os especialistas presumiram que em nenhum caso levantes domésticos que surgissem ganhariam fôlego e teriam desenvolvimento independente. As revoluções árabes provaram que esse pressuposto estava errado.

Com as revoluções na Tunísia e, principalmente, no Egito, os especialistas em Oriente Médio nos EUA acordaram de repente para o fato de que não haviam avaliado corretamente o papel do exército na política árabe. Embora tivessem dedicado atenção considerável a essa questão nos anos 1950s e 1960s, por causa dos vários golpes militares na região, a estabilidade dos regimes árabes desde então levou os especialistas norte-americanos a supor que o exército já não seria fator político crucial.

Em segundo lugar, aqueles especialistas presumiram que os programas de reformas econômicas, combinados com a riqueza acumulada na venda do petróleo, teriam permitido que os governos oferecessem serviços sociais e econômicos que manteriam a estabilidade doméstica e esvaziariam quaisquer movimentos de protesto político.

Outra vez, as revoluções árabes, principalmente as que aconteceram em países que não são produtores de petróleo, como Tunísia e Egito, expuseram o vício da premissa. Apesar de os programas de reformas econômicas implantados nesses dois países terem conseguido gerar taxas de crescimento relativamente altas, só conseguiram criar, de fato, uma muito estreita e flagrantemente milionária classe de empresários, que rapidamente se interligaram intimamente com a classe política dirigente. Mas o efeito das reformas teve pequeno efeito sobre a população. As reformas econômicas, de fato, tiveram efeito oposto ao desejado: geraram desigualdade, indignação e frustração gerais, a tal ponto que os novos ricos imediatamente cuidaram de, na primeira oportunidade, contrabandear suas fortunas para locais onde ficassem protegidas de qualquer maré revolucionária.

Evidentemente, os especialistas norte-americanos erraram ao avaliar o impacto das políticas de reformas econômicas implantadas pelos regimes árabes, ou nunca viram o quanto aquelas políticas eram viciadas ou foram mal aplicadas.

Em terceiro lugar, as revoluções árabes impuseram aos especialistas norte-americanos em Oriente Médio uma questão que eles supunham que estivesse enterrada há muito tempo: o arabismo e o nacionalismo panárabe. Embora a onda de nacionalismo árabe que despertou e foi liderada por Gamal Abdel Nasser nos anos 1950s e 1960s tenha de fato se esvaziado depois da derrota militar dos árabes contra Israel em 1967, as revoluções árabes de 2011 mostraram considerável renascimento dessas ideias. Não é acaso que os maiores levantes que irromperam no mundo árabe em 2011 tenham acontecido ao mesmo tempo e com as mesmas demandas e os mesmos slogans.

As manifestações que houve no Irã em 2009 não ecoaram nos países vizinhos do Irã. Mas um mês depois da autoimolação de Bou Azizi na Tunísia, já brotavam movimentos populares revolucionários em todo o mundo árabe. É sinal de que há um sentido coletivo de identidade cultural e política entre os árabes, mesmo que, hoje, esteja espalhada por 20 estados diferentes. A Primavera Árabe acabou com qualquer dúvida que restasse quanto a isso e mostrou que eventos num país árabe podem ter impacto poderoso, que ninguém previu, sobre outros.

Sabe-se que nos EUA órgãos da sociedade civil e da comunidade acadêmica, sobretudo, têm ativa participação na modelagem do pensamento norte-americano na área da política externa. Dessa vez, com os especialistas norte-americanos em Oriente Médio trabalhando com uma bola de cristal defeituosa, praticamente sem nada ver e nada saber das sociedades árabes, não surpreende que a Secretária de Estado Hillary Clinton tenha ido à televisão, nas primeiras horas da revolução no Egito, para declarar que “o regime egípcio é estável e Mubarak é aliado confiável dos EUA”. Foi avaliação errada, que nada tinha a ver com a revolução egípcia. Pouco depois, Washington resolveu rebaixar Hosni Mubarak: de aliado confiável, tornou-se peso descartável.


Nota dos tradutores
[1] Gregory Gause, “Why Middle East Studies Missed Arab Spring”, Foreign Affairs, jul-ago. 2011 (em inglês).




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