segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O fim do Iraque: começa a neo-idade-das-trevas

11/8/2014, [*] Patrick CockburnCounterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A volta dos Jihadis: o ISIS e o novo levante sunita
O Iraque desintegrou-se. Pouco se troca entre as três grandes comunidades – xiita, sunita e curda – exceto tiros. O mundo exterior espera que governo mais inclusivo consiga mudar isso, mas, provavelmente, já é tarde demais.

O principal vitorioso na nova guerra no Iraque é o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIL) que quer matar xiitas, em vez de negociar com eles. O Iraque está a um passo de uma guerra civil que pode ser tão sangrenta como o que se viu na Síria e pode estender-se durante anos.

A data crucial nesse renovado conflito é 10/6/2014, quando o ISIL capturou a capital do norte do Iraque, Mosul, depois de três dias de lutas. O governo iraquiano tinha um exército de 350 mil soldados, no qual foram gastos US$ 41,6 bilhões em três anos, a partir de 2011, mas esse exército derreteu-se, sem oferecer qualquer resistência significativa.

Uniformes e equipamentos descartados foram abandonados ao longo da estrada para o Curdistão e a segurança. A revoada-deserção foi iniciada pelos oficiais comandantes, alguns dos quais trocaram rapidamente o uniforme militar por trajes civis, ao abandonar os próprios soldados. Considerando-se que o ISIL talvez não passasse de 1.300 combatentes naquele assalto a Mosul, essa pode ser uma das maiores debâcles militares em toda a história.

Em duas semanas, aquelas partes do Iraque norte e leste não controladas pelos curdos já estavam em mãos do ISIL. Ao final do mês, o grupo já tinha anunciado um califato que se atravessaria a fronteira Iraque-Síria.

As pessoas em Bagdá são acostumadas a choques depois de anos de guerras, massacres, ocupação e ditadura, mas quando Mosul caiu todos sentiram o chão tremer sob os próprios pés. Em dias, os homens do ISIL estavam a menos de uma hora de distância, por carro, da capital; ali, as ruas, normalmente cheias de trânsito e de gente, esvaziaram-se repentinamente, como se todos se mantivessem dentro de casa, porque lhes parecesse perigoso demais aventurar-se pelas calçadas.

Foi especialmente verdade nos distritos sunitas, como al-Adhamiyah na margem oriental do Rio Tigre, onde os homens mais jovens temiam, com razão, ser presos, ou coisa pior, se se atrevessem a tentar cruzar por um dos postos de controle. As pessoas mantinham-se obsessivamente à frente dos televisores, pulando nervosamente de canal em canal, tentando inferir a verdade, por baixo de incansáveis frases de propaganda.

A desintegração atinge boa parte de Síria
A sensação de crise grave tornou-se ainda mais aguda porque o canal estatal só fazia rememorar vitórias passadas, editadas sobre imagens antigas.

Se você ficar um dia inteiro à frente da televisão estatal, você acabará convencido de que não há nem um miliciano do ISIL dentro do Iraque – disse-me um observador.

A geografia política do Iraque estava mudando bem ali, ante os olhos de todos, e viam-se sinais da mudança por toda parte. Os baghdadis cozinham com gás propano, porque o suprimento de energia elétrica é pouco confiável; mas rapidamente os botijões de gás sumiram dos pontos de venda, porque vêm de Kirkuk e a estrada do norte estava fechada pelo ISIL. Alugar um caminhão para viajar os 320km da capital curda Erbil até Bagdá custa agora US$ 10,000.00 por jornada; mês passado, custava US$ 500.00.

Há indícios terríveis de que os iraquianos devem temer um futuro de violência desenfreada, também no aumento dos preços de armas e munições. O preço de uma bala para o rifle de assalto AK47 rapidamente triplicou, para cerca de 3 mil dinares iraquianos, cerca de 2 dólares norte-americanos. As Kalashnikovs sumiram dos postos de venda; ainda se conseguiam pistolas, mas a preços três vezes superiores aos da semana anterior. De repente, todos estavam armados, inclusive os guardas-de-trânsito de Bagdá, com suas camisas brancas e submetralhadoras.

Muitos dos homens armados que começaram a aparecer pelas ruas de Bagdá e outras cidades xiitas; eram milicianos xiitas, alguns do Asaib Ahl al-Haq, grupo que se separou do movimento xiita popular e nacionalista do clérigo Muqtada al-Sadr. Essa organização é parcialmente controlada pelo [ex-]primeiro-ministro Nouri al-Maliki e, pelo que se pressupõe em geral, pelos iranianos. É uma medida para avaliar a extensão do colapso das forças de segurança e do exército nacional, que o governo tenha passado a depender de uma milícia sectária para proteger a capital.

Nouri al-Maliki
Ironicamente, uma das poucas realizações de Maliki como primeiro-ministro foi ter controlado as milícias xiitas em 2008; para, agora, as encorajar a retornar às ruas. Na sequência, começaram a surgir corpos. Não tinham identidade e pressupunha-se que fossem vítimas sunitas de esquadrões da morte. O Iraque parecia estar deslizando rumo a um abismo de massacres e contramassacres que traziam de volta o que se vira na guerra civil sectária entre sunitas e xiitas em 2006-07.

A renovada violência sectária era muito visível. Há um vídeo horrendo de cadetes iraquianos sendo metralhados perto de Tikrit por uma linha de pistoleiros do ISIL, a um passo de uma cova rasa já cavada. Fez-me lembrar dos SS matando judeus na Rússia e na Polônia na IIª Guerra Mundial.

Organizações de direitos humanos que se serviram de fotos de satélites estimam em 170 o número de mortos, mas podem ser muitos mais. Xiitas do grupo étnico turcomano que vivem em vilas ao sul de Kirkuk foram tirados das próprias casas e de 15 a 25 deles foram assassinados. É possível que os xiitas reajam em grupo, porque até aqui o maior número de vítimas do ISIL são xiitas.

ISIL descreveu a própria estratégia militar como “esgueirar-se como serpente entre as pedras”: em outras palavras, usar suas forças como unidades de choque para atacar alvos fáceis, mas sem se engajar em conflitos prolongados nos quais aumentam os riscos de o grupo ser cercado e sofrer grande número de baixas. Já tomaram quartéis do governo em distritos de maioria sunita, e não viram necessidade de deixar nos postos toados grande número de combatentes, porque confiam nos seus aliados locais. Muitos em Bagdá e em governos por todo o mundo esperavam que esses aliados do ISIL – tribos locais e líderes sunitas locais – pudessem ser convencidos a separar-se do ISIL por causa da violência e da agenda primitiva do grupo.

Refinaria de Baiji, a maior do Iraque
Na cidade-refinaria de Baiji os locais diziam que o ISIL estava andando de casa em casa perguntando os nomes das mulheres casadas e solteiras, às vezes pedindo para ver o documento de identidade que, no Iraque, informa o estado civil. Explicavam que faziam aquilo porque os combatentes solteiros precisavam de esposas. Sem dúvida haveria reação negativa das comunidades sunitas locais a esse tipo de atividade, mas um movimento preparado e bem organizado para matar qualquer opositor não é coisa fácil de enfrentar.

A ascensão do ISIL e seus sucessos militares levaram a uma euforia de visão curta nos países sunitas. Pessoas se congratulavam entre elas, porque os xiitas deixaram de ser os únicos na ofensiva. Mas na prática, a tomada pelo ISIL de posição de liderança nas comunidades na Síria e no Iraque será, muito provavelmente, desastrosa para eles mesmos. O ISIL está sendo usado como movimento de vanguarda que não se deixará deslocar com facilidade e, como os fascistas na Itália e na Alemanha nos anos 1920s e 1930s, o movimento procurará esmagar qualquer um que tente deslocá-lo da posição em que está.

Os sunitas entregaram a função de comando a um movimento que se vê como inspirado por Deus diretamente e cuja agenda envolve guerras invencíveis e infindáveis contra apóstatas e hereges. Iraque e Síria podem ser divididos, mas não podem ser divididos de forma limpa e pacífica, por causa das muitas minorias, como os cerca de um milhão, ou mais de sunitas em Bagdá, que estejam do lado errado de qualquer linha concebível de divisão. No melhor dos casos, Síria e Iraque enfrentarão anos de guerra civil intermitente; no pior, a divisão desses países será como a partição da Índia em 1947, quando o massacre e o medo estabeleceram novas fronteiras demográficas.

Vista aérea de Mosul
A queda de Mosul e a revolta liderada pelo ISIL marcam o fim de um período distinto na história do Iraque que começou com a derrubada de Saddam Hussein na invasão de março de 2003, por EUA e Grã-Bretanha. Foi tentativa empreendida pela oposição iraquiana ao velho regime e seus aliados estrangeiros para criar um novo Iraque no qual as três comunidades partilhassem o poder em Bagdá. O experimento falhou desastradamente e parece que será impossível ressuscitá-lo, porque as linhas de combate entre curdos, sunitas e xiitas estão hoje aprofundadas e agravadas demais.

O equilíbrio de poder dentro do Iraque está mudando. Há também as fronteiras de facto do estado, com um Curdistão expandido e crescentemente expandido – os curdos usaram oportunistamente a crise, para assegurar para eles territórios que sempre reclamaram – a fronteira Iraque-Síria deixou de existir. O impacto desses eventos está sendo sentido em todo o Oriente Médio, com governos incorporando a ideia de que o ISIL, grupo de tipo al-Qaeda de grande ferocidade e fanatismo religioso, já conseguiu declarar constituído um califato sunita, que engloba grande parte do Iraque e da Síria.

Esse livro trata de vários desenvolvimentos críticos, de curto e de longo prazo, no Oriente Médio que estão afetando ou em breve afetarão o resto do mundo. O mais importante deles é a ressurgência de movimento do tipo da al-Qaeda que hoje governa vasta área no norte e no oeste do Iraque e no leste e norte da Síria. A área sob comando daquele grupo é várias centenas de vezes maior que qualquer território que Osama bin Laden algum dia controlou – Osama, cujo assassinato em 2011 foi considerado grande vitória contra o terrorismo mundial.

Na verdade, foi depois da morte de bin Laden que os grupos afiliados à al-Qaeda ou seus clones obtiveram seus maiores sucessos, incluindo a tomada de Raqqa no leste da Síria, a única capital de província daquele país a cair em mãos dos rebeldes, em março de 2013. Em janeiro de 2014, o ISIL tomou Fallujah (no Iraque), a menos de 30 km da oeste de Bagdá, cidade que se tornou conhecida mundialmente quando foi sitiada e destruída por Marinesnorte-americanos dez anos antes. Em poucos meses, já haviam capturado também Mosul e Tikrit.

Fallujah - Iraque, imagem de satélite
(clique na imagem para aumentar)
As linhas de combate podem continuar a mudar, mas a expansão geral do poder desses grupos parece permanente. Com seu assalto rápido e em várias frentes por todo o norte e o centro do Iraque em junho de 2014, os militantes do ISIL já superaram plenamente a al-Qaeda como o grupo jihadista mais poderoso e efetivo em todo o mundo.

Esses desenvolvimentos foram um choque para muitos no ocidente, inclusive políticos e “especialistas” de televisão, cuja visão do que se passava no mundo real foi amplamente superada pelos fatos em campo. Um dos motivos foi que sempre foi muito perigoso para jornalistas e observadores externos visitar as áreas onde o ISIL operava, pelo alto risco de ser sequestrado ou assassinado. “Os que antes protegiam a imprensa estrangeira hoje já não conseguem proteger nem eles mesmos” – disse-me um sempre muito ousado correspondente, explicando por que não podia retornar às áreas onde ainda há “rebeldes” sírios.

O triunfo do ISIL no Iraque em 2013-14 foi especialmente surpreendente, porque a imprensa-empresa ocidental simplesmente deixou de noticiar os eventos naquele país. A falta de cobertura foi conveniente para os EUA e outros governos ocidentais, porque permitiu que aqueles governos ocultassem, encobrissem, impedissem que se conhecesse a extensão do fracasso catastrófico da “guerra ao terror” iniciada imediatamente depois do 11/9.

Esse fracasso é mascarado por mentiras e meias mentiras de vários governos. Falando em West Point sobre o papel dos EUA no mundo, dia 28/5/2014, o presidente Barack Obama disse que a principal ameaça contra os EUA não vinha mais da central da al-Qaeda, mas de “afiliados e extremistas descentralizados da al-Qaeda, muitos dos quais com agendas focadas nos países nos quais operam”. E acrescentou que “como a guerra civil síria respinga para fora das fronteiras, a capacidade de grupos extremistas experientes em combate, para virem contra nós, só aumenta”.

Obama pediu US$ 500,000,000 ao Congresso para treinar e equipar o... ISIL!
É bem verdade, sim, mas a solução de Obama para o perigo era, nas palavras dele, “aumentar o apoio para quem, na oposição síria, oferece a melhor alternativa aos terroristas”. Em junho, já estava pedindo mais US$ 500 milhões ao Congresso, para treinar e equipar membros da oposição síria “adequadamente selecionados”. É exatamente aqui que mora o mais alucinado autoengano, porque a oposição militar síria é dominada pelo ISIL e pela [Frente] Jabhat al-Nusra (JAN), representante oficial da al-Qaeda, além de outros grupos jihadistas extremistas. Na realidade, não há nenhuma parede divisória entre esses grupos terroristas e os aliados grupos que os EUA supõem que sejam moderados.

Um oficial de inteligência de país do Oriente Médio vizinho da Síria contou-me que os membros do ISIL dizem que “gostam muito quando armamento sofisticado é enviado para grupos anti-Assad, porque sabem que sempre podem pôr as mãos naquele armamento, ou à força de chantagem ou, simplesmente, comprando e pagando em dinheiro”. O apoio ocidental à oposição síria pode não ter conseguido derrubar Assad, mas foi muito efetivo para desestabilizar o Iraque – exatamente como inúmeros políticos iraquianos sempre previram que aconteceria.

A importância da Arábia Saudita no nascimento e retorno da al-Qaeda é frequentemente mal compreendida e subestimada. A Arábia Saudita influencia o processo porque seu petróleo e a imensa riqueza a tornam poderosa no Oriente Médio e longe dele. Mas não são só recursos financeiros que fazem da monarquia sunita ator tão importante. Outro fator é a difusão do wahhabismo, versão fundamentalista do Islã do século XVIII que impõe a lei da Xaria, relega as mulheres à posição de cidadãos de segunda classe e considera os muçulmanos xiitas e sufis como apóstatas, hereges a serem perseguidos, como os cristãos e os judeus.


Essa intolerância religiosa e autoritarismo político, os quais, na prontidão para usar a violência mantêm muitas semelhanças com o fascismo europeu dos anos 1930s, não melhora, só piora. Um saudita que mantinha uma página liberal na Internet, na qual muitos clérigos eram criticados, foi recentemente condenado a mil chicotadas e sete anos de cadeia.

Críticos dessa nova tendência no Islã de outras partes do mundo muçulmano não sobrevivem; são forçados a fugir, ou são assassinados. Em Cabul, em 2003, um editor afegão denunciou os sauditas como “fascistas santos”, que distorcem o Islã para usá-lo como “instrumento para tomar o poder”. Não surpreendentemente, foi acusado de insultar o Islã e teve de deixar o país.

Traço que chama a atenção no mundo islâmico em décadas recentes é o modo como o wahhabismo está impondo-se sobre o Islã sunita dominante. Em um país após o outro, a Arábia Saudita chega com o dinheiro para treinar pregadores religiosos e construir mesquitas. Resultado disso, é a expansão da luta sectária entre sunitas e xiitas. Os xiitas veem-se cada vez mais agredidos com violência sem precedentes, da Tunísia à Indonésia. Esse sectarismo não está confinado a vilarejos nos arredores de Aleppo ou no Punjab, e envenena as relações entre as duas seitas em todos os grupamentos islâmicos. Um amigo muçulmano, em Londres, me disse:

Passe os olhos no livro de endereços de qualquer sunita ou xiita na Grã-Bretanha, e você encontrará bem poucos nomes que não sejam de pessoas de sua própria comunidade mais próxima.

A ressurgência de grupos de tipo al-Qaeda não é ameaça limitada à Síria, Iraque e seus vizinhos. O que está acontecendo naqueles países, combinado com a intolerância cada dia mais dominante e as crenças exclusivistas do wahhabismo dentro da comunidade sunita mundial, implica que todos os 1,6 bilhões de muçulmanos, quase um quarto da população do planeta, serão cada dia mais afetados. Além disso, parece pouco provável que população de não muçulmanos, inclusive muitos no ocidente, permaneçam sem ser tocadas pelo conflito. O jihadismo que vemos ressurgir hoje, que já mudou o terreno político no Iraque e na Síria, já está tendo efeitos de longo alcance sobre a política global, com consequências terríveis para nós todos.


Nota dos tradutores
[1] Esse artigo é um extrato de The Jihadis Return: ISIS and the New Sunni Uprising [A volta dosJihadis: ISIS e o novo levante sunita], de Patrick Cockburn, publicado por OR Books, disponível (em inglês).
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[*] Patrick Cockburn (nasceu 05 de março de 1950) é um jornalista irlandês que tem sido correspondente no Oriente Médio desde 1979 para o Financial Times e, atualmente, The IndependentEstá entre os comentaristas mais experientes no Iraque; escreveu quatro livros sobre a história recente do país. Recebeu o vários prêmios por seu trabalho incluindo o Prêmio Gellhorn Martha em 2005, o Prêmio James Cameron em 2006 e o Prêmio Orwell de Jornalismo em 2009. Cockburn escreveu três livros sobre o Iraque: One, Out of the Ashes: The Resurrection of Saddam Hussein, escrito em parceria com seu irmão Andrew Cockburn, antes da guerra no Iraque. O mesmo livro foi mais tarde re-publicado na Grã-Bretanha com o título: Saddam Hussein: An American Obsession. Mais dois foram escritos por Patrick sozinho após a invasão dos EUA e após a sua reportagem premiada do Iraque. Escreve também para CounterPunch e London Review of Books.

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