27/3/2015, [*] Tony Cartalucci – New Eastern Outlook, NEO
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Guerreiros houthis do Iêmen |
O modelo de “guerra à distância” ou “guerra por procuração” que os EUA estão usando em todo o Oriente Médio e no leste da Europa, e também, até, em partes da Ásia, parece ter fracassado mais uma vez, agora no Iêmen, estado do Golfo Pérsico.
Ao derrubarem o regime apoiado por EUA-sauditas no Iêmen e uma coalizão de extremistas sectários que inclui Al Qaeda e sua nova griffe, o “Estado Islâmico”, milícias iemenitas pró-Irã viraram a maré contra o chamado “poder suave” dos EUA; o movimento exigiu intervenção militar mais direta. O que se diz é que não haveria forças militares dos EUA diretamente envolvidas, mas não há dúvida quanto ao envolvimento de aviões de guerra e de uma possível força em solo, dos sauditas.
Por mais que Arábia Saudita diga que “10 países” já se uniram à sua coalizão para intervir no Iêmen (como a invasão e a ocupação do Iraque, pelos EUA, a coisa agora também vem escondida por trás de uma “coalizão”), é operação quase que exclusiva dos sauditas, com “parceiros de coalizão” acrescentados, como tentativa oca para gerar alguma legitimidade diplomática.
Nem o New York Times, na manchete da matéria que publicou, “Saudi Arabia Begins Air Assault in Yemen” [Arábia Saudita inicia ataque aéreo ao Iêmen], dá sinais de ver por ali algum dos tais “10” outros países. Lá se lê:
A Arábia Saudita anunciou na 4ª-feira (25/3/2015) à noite que lançou uma campanha militar no Iêmen, cujo início, segundo um funcionário saudita, foi um ataque para restaurar um governo iemenita que entrara em colapso depois que forças rebeldes assumiram o controle de grandes partes do país.
A campanha aérea começou em momento em que o conflito interno no Iêmen deu sinais de começar a degenerar em guerra por procuração entre potências regionais. O anúncio dos sauditas ocorreu numa rara conferência de imprensa, em Washington, convocada por Adel al-Jubeir, embaixador do reino nos EUA.
Guerra por procuração contra o Irã
Na verdade, o conflito no Iêmen é guerra por procuração, não entre Irã e Arábia Saudita, mas entre Irã e os EUA, com os EUA tenho designado a Arábia Saudita como seu desgraçado substituto no palco.
Os interesses do Irã no Iêmen servem, como resultado direto da “Primavera Árabe” arquitetada pelos EUA e das tentativas para derrubar a ordem política no Norte da África e Oriente Médio, para criar ali uma frente sectária unificada contra o Irã, em conflito direto com Teerã. A guerra que prossegue na Síria é uma das partes dessa conspiração geopolítica muito mais ampla, que visa a derrubar um dos mais importantes aliados regionais do Irã, queimando a ponte que liga o Irã a outro importante aliado, o Hezbollah no Líbano.
E, apesar de o interesse do Irã no Iêmen estar sendo apresentado como mais um “exemplo” do que seria agressão iraniana, que indicaria a incapacidade do Irã para viver em paz com os vizinhos, até os próprios políticos norte-americanos já reconheceram, há muito tempo, que a influência iraniana na região, inclusive com apoio que dá a grupos armados, tem objetivo exclusivamente defensivo, reconhecendo também que o ocidente e seus aliados regionais só fazem tentar cercar, subverter, agitar, com o objetivo de derrubar a atual ordem política no Irã.
A Corporação RAND, com sede nos EUA, que se apresenta como “instituição sem finalidades de lucro que ajuda a melhorar a política e a tomada de decisões, mediante as pesquisas e análises que oferece”, produziu um relatório em 2009, para a Força Aérea dos EUA, que leva o título de “Perigoso mas não onipotente: sobre o alcance e as limitações do poder iraniano no Oriente Médio” [Dangerous But Not Omnipotent : Exploring the Reach and Limitations of Iranian Power in the Middle East]. Nesse relatório, a RAND examina a estrutura e a posição dos militares iranianos, inclusive do Corpo de Guardas Revolucionários, do futuro deles e do armamento com que contam – e que sempre visam a proteger as fronteiras e os interesses nacionais contra ataques externos.
Mapa do Iêmen e as áreas em litígio |
O relatório admite que:
A estratégia do Irã é largamente defensiva, com apenas alguns elementos ofensivos. A estratégia do Irã, de proteger o regime contra ameaças internas, para deter possível agressão, salvaguardar o país se houver agressão e ampliar sua influência é, em larga medida, estratégia defensiva, que oferece algumas possibilidades agressivas, se combinadas com expressões das aspirações regionais do Irã. É em parte uma resposta aos pronunciamentos e à postura política dos EUA na região, especialmente depois dos ataques terroristas de 11/9/2001. A liderança iraniana leva muito a sério a ameaça de invasão, dados a discussão aberta nos EUA sobre “mudança de regime”, os discursos em que o Irã é definido como parte do “eixo do mal” e os esforços, pelas forças dos EUA, para garantir acesso a bases implantadas em estado localizados em torno do Irã.
Seja qual for o motivo imperativo que a Arábia Saudita tenta associar à sua agressão militar injustificável contra o Iêmen, e seja qual for o apoio retórico, diplomático ou militar que os EUA estão tentando dar ao regime saudita, a legitimidade dessa ação militar cai aos pedaços, ante as palavras dos próprios deputados e senadores dos EUA que abertamente admitem que o Irã e seus aliados simplesmente reagem a uma campanha montada contra eles – campanha de cerco, sanções econômicas, agressão militar clandestina, subversão política e até terrorismo. O objetivo dessa campanha é estabelecer a hegemonia ocidental em toda aquela região, à custa da soberania do Irã.
Os motivos alegados pelos sauditas não têm legitimidade
O que se vê agora é um regime autocrático hereditário, não eleito – que governa a Arábia Saudita, país conhecido pelos incontáveis abusos contra direitos humanos, e terra onde jamais se viu qualquer coisa sequer assemelhada a “direitos humanos” – que aí aparece, hoje, posando como árbitro que decidirá quais governos no Iêmen, país vizinho, seriam “legítimos” e “não legítimos”. E a ponto de usar força militar saudita, para restaurar, no Iêmen, um ou outro governo derrubado, mas que os sauditas considerem legítimo.
Houthis capturaram tanques do exército iemanita |
O apoio que os EUA garantem ao regime saudita visa a dar legitimidade a uma narrativa de violência bruta, que, sem a “cobertura” norte-americana, seria ainda mais difícil de impingir à opinião pública mundial. Problema, aí, é que os EUA também já padecem de grave falta de legitimidade e de autoridade moral.
Ainda mais irônico, é que extremistas apoiados por EUA e Arábia Saudita, inclusive a Al-Qaeda no Iêmen, serviram como forças avançadas para manter sob controle as milícias houthis, de modo a que não viesse a ser necessária alguma intervenção militar direta como a que agora se vê! Significa que a Arábia Saudita e os EUA só estão atacando o Iêmen depois do colapso do regime comandado pelos terroristas que EUA e sauditas apoiavam.
Na realidade, pondo-se de lado a retórica de Arábia Saudita e EUA, havia no Iêmen um regime regional brutal, que tentou tomar o estado e perdeu. E agora o aspirante a hegemon global, que patrocinava aquele regime brutal está obrigado a intervir diretamente para tentar limpar a própria imundície.
O perigoso jogo da Arábia Saudita
O ataque aéreo contra o Iêmen tem o objetivo de impressionar o público, com a ostentação, pelos sauditas, de força militar. Será indispensável um exército de coturnos em solo, para atacar e meter medo nos combatentes houthis e forçá-los a se renderem. Para tentar obter vitória rápida sobre os combatentes houthis, conhecidos pela autoconfiança quase invencível, a Arábia Saudita arrisca-se e envolver-se num conflito que poderá escapar facilmente do contexto para o qual a máquina militar dos EUA foi construída.
Abdrabbuh Mansour Hadi, Presidente do Iêmen, fugiu da capital Sanaa para Aden, resistindo ao ataque dos Houthis |
Ainda é cedo para dizer como se sairão sauditas e seus patrocinadores norte-americanos na atual operação militar e até que ponto conseguirão firmar pé no Iêmen.
Mas a evidência de que os houthis já enfrentaram de igual para igual e derrotaram forças dos EUA–sauditas que combatiam por procuração bem às portas de Riad, indica que os houthis tenham capacidade operacional para sobreviver ao atual assalto de EUA–sauditas e, mais, que poderão sair fortalecidos dos atuais confrontos.
Relatos de que os combatentes houthis empregaram aviões iemenitas capturados reforçam ainda mais essa noção – mostrando sofisticação tática, operacional e estratégica que poderá perfeitamente dar conta do que os sauditas tenham para lançar contra os houthis, tornando-os cada vez mais fortes.
Daí pode resultar um conflito que respingará por cima das fronteiras do Iêmen, sobre a própria Arábia Saudita. Sejam quais forem os segredos obscuros ocultados por décadas de autocensura da empresa–mídia ocidental sobre a verdadeira natureza sociopolítica da Arábia Saudita (vídeo no fim do parágrafo mostrando a vida houthis segundo o NYTimes em inglês), tudo acabará por vir à tona, quando o povo da península arábica for forçado a escolher entre arriscar a própria vida lutando a favor de um regime-vassalo do ocidente ou tomar, para eles mesmos, um pedaço da península.
Além disso, uma transferência de recursos e de milicianos sob a bandeira do chamado “Estado Islâmico” e Al-Qaeda, da Síria para a Península Arábica, demonstrará ainda mais claramente que os EUA e seus aliados regionais sempre estiveram por trás do caos e das atrocidades que se veem na Síria, já há quatro anos. Tais revelações solaparão o que restar da autoridade moral do ocidente e de seus aliados regionais; e isso corroerá ainda mais rapidamente os esforços do ocidente & parceiros para arregimentar esforços que os salvem de uma batalha que eles mesmos conspiraram para fazer começar.
Esvai-se a legitimidade norte-americana
Ainda no começo do mês em curso, mais uma vez os EUA cuidaram de fazer o mundo “relembrar” uma tal “invasão” russa na Crimeia (vídeo no fim do parágrafo, em inglês). Depois de ter desestabilizado a Ucrânia com uma insurreição armada, violenta, em Kiev, com o objetivo de expandir a OTAN cada vez mais para dentro da Europa Oriental e mais próxima de Rússia, o ocidente ainda insiste que a Rússia não teria mandato para intervir na vizinha Ucrânia. Os negócios da Ucrânia devem ser resolvidos pelos ucranianos – dizem os EUA. Evidentemente, os EUA querem dizer que, sim, assuntos ucranianos devem ser resolvidos pelos ucranianos, se e somente se os ucranianos resolverem as coisas na direção que mais interessa aos EUA.
Esse modo de proceder é ainda mais claro agora, no Iêmen, onde o povo iemenita não tem “licença” para resolver o que quer que seja. Tudo, inclusive, até, uma invasão militar, foi decidido e executado especificamente para assegurar que o povo do Iêmen não consiga decidir coisa alguma – e é assim, bem claramente, porque as decisões dos iemenitas não dão sinal algum de estar tomando o rumo que mais interessa aos EUA.
Essa descarada e nua hipocrisia será claramente percebida pela opinião pública global e nos círculos diplomáticos. A impotência do ocidente, que já não consegue implantar e manter sequer uma narrativa que faça algum sentido e convença – como, antes, o ocidente sempre conseguiu fazer, por mentirosas que fossem as velhas narrativas – é sinal crescente de fraqueza.
Parceiros na empreitada global na qual o ocidente está engajado logo perceberão que essa fraqueza é causa para eles desinvestirem – ou, no mínimo, que é causa para que diversifiquem seus investimentos, na direção de outros países e empresas. A diversificação poderá facilmente incluir o mundo multipolar de Rússia e China. A evanescente hegemonia ocidental global terá chegado ao fim, num conflito destrutivo, movido por despeito e desespero.
Hoje, todo esse despeito e todo esse desespero abatem-se sobre o Iêmen.
[*] Tony Cartalucci é pesquisador de geopolítica e escritor sediado em Bangkok, Tailândia. Seu trabalho visa cobrir os eventos mundiais a partir de uma perspectiva do Sudeste Asiático, bem como promover a auto-suficiência como uma das chaves para a verdadeira liberdade; é colaborador, dentre outras publicações, da revista online “New Eastern Outlook”.
A verdade sobre os fatos é que não existe fatos, existe história. As versões ocidentais pecam pelo unilateralismo tosco a ponto de deixá-la aleijada.
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