Domingo, 12 Setembro 2010 02:00
Diário Liberdade - [Narciso Isa Conde - Tradução do Diário Liberdade] O autor quase não precisa de apresentação. É Narciso Isa Conde, dirigente histórico da esquerda da República Dominicana e caribenha. Amigo solidário de Cuba, conhecedor como poucos do processo revolucionário cubano.
Ensaísta e autor de uns 20 livros. Combatente contra o tirano Trujillo e os invasores estadunidenses em 1965. Foi membro do governo em armas que presidiu Francisco Caamaño Deñó. Sofreu cárcere, perseguições e exílio por suas ideias. Nas notas que se seguem analisa, criticamente, a realidade do "modelo socialista" a propósito da entrevista de Fidel Castro em The Atlantic. (Redação)
Introdução
As transições de uma formação econômica-social para outra e os modelos econômicos e sistemas políticos dentro dessas formações são muito variados.
A história do capitalismo registra muitos modelos econômicos e um grande número de sistemas políticos e formas institucionais, bem como múltiplas combinações deles por fases e períodos: capitalismo de livre concorrência, capitalismo monopólico e oligopólico com predomínio da propriedade privada, capitalismo monopolista de Estado, capitalismo de Estado de desenvolvimento médio, capitalismo dependente, modelo liberal, modelo neoliberal, democracia representativa liberal, fascismo, ditaduras militares, tiranias, democracias burguesas monárquicas, democracias restringidas, semi-ditaduras?
Em termos históricos, o socialismo ainda não trespassou a primeira idade e seria absurdo pretender uma evolução ou desenvolvimento linear do mesmo; isto é, com um só modelo de transição, com um sistema político único, com uma institucionalidade uniforme e inalterável.
Os processos anti-imperialistas e anticapitalista de orientação socialista foram e terão de ser muito variados, com transições diferentes, com combinações diferentes, com modelos diferentes, com diferentes graus de democracia e formas de participação, com modelos institucionais, com evoluções contraditórias e projetos de maior ou menor profundidade; submetidos permanentemente à prova do acerto e do erro.
É verdade que a enorme gravitação da URSS e do estatismo-burocrático em que lamentavelmente derivou seu inicialmente formidável processo de transição para o socialismo, mais tarde influiu negativamente nos outros países que puderam sair da corrente capitalista, restando diversidade, impondo fórmulas, reduzindo a necessária socialização e negando a democracia como poder do povo.
Cuba, ainda em permanente luta contra a dogmatização, não foi a exceção e progressivamente cedeu até finalmente sucumbir ao decalque de não poucas de estruturas econômicas, formas institucionais e componentes do sistema político próprios do modelo estatista euro-oriental.
Que esse modelo não funcione não significa que o socialismo não sirva
Nestes dias difundiu-se em grande escala que Fidel afirmou que o modelo econômico cubano "já não funciona", mas posteriormente assinalou que foi mal interpretado.
Entendo que afirmar que "o modelo cubano já não funciona" não equivale a dizer que o socialismo não serve, como com má intenção se apressaram a difundir inimigos da revolução cubana e partidários do capitalismo para semear confusão e fomentar a chantagem mediática.
Na verdade não é preciso o desmentido de Fidel em relação ao modelo cubano tal e como foi plasmado nestes parágrafos, ainda que sim esteja clara sua negação do capitalismo:
"Em outro momento da conversa, Goldberg conta: "perguntei-lhe se ele achava que o modelo cubano era qualquer coisa que ainda valia a pena exportar." É evidente que essa pergunta levava implícita a teoria de que Cuba exportava a Revolução. Respondo-lhe "O modelo cubano já não funciona nem sequer para nós." Expressei-lho sem amargura nem preocupação. Divirto-me agora ao ver como ele o interpretou ao pé da letra, e consultou, pelo que diz, com Julia Sweig, analista do CFR que o acompanhou, e elaborou a teoria que expôs. Mas o real é que minha resposta significava exatamente o contrário do que ambos jornalistas norte-americanos interpretaram sobre o modelo cubano.
"Minha ideia, como todo mundo conhece, é que o sistema capitalista já não serve nem para os Estados Unidos nem para o mundo, conduzindo-os de crise em crise, que são a cada vez mais graves, globais e repetidas, das quais não podem escapar. Como poderia servir semelhante sistema para um país socialista como Cuba." (FIDEL CASTRO.-Mensagem na apresentação do livro "A contra-ofensiva Estratégica", Havana 10-09-2010)
De qualquer jeito, acho -independentemente do dito e/ou reformulado pelo respeitado e admirado líder histórico dessa revolução e do que pensem os meritórios dirigentes cubanos- que o modelo estatista-burocrático que tem predominado desde faz algumas décadas em Cuba está esgotado e precisa ser substituído preferivelmente por um socialismo participativo com democracia integral.
Por que?
Porque isso é o que pode evitar tanto o acontecido na URSS e Europa do Leste como o que está passando na China.
Porque nas transições socialistas do século XX predominou -repito- o modelo estadista-burocrático, mal chamado "socialismo real" ou "socialismo de Estado", e sua crise na Europa Oriental deveio em restauração capitalista ocidental e na China num capitalismo de Estado "sui generis".
Mudar o modelo ratificando a via socialista
O tema do estancamento, a crise do estatismo e a necessidade da mudança de modelo em Cuba vem propondo-se desde faz tempo por não poucos militantes marxistas, socialistas, comunistas; sem que isto signifique renegar do socialismo, mas todo o contrário. De minha parte proponho-o desde faz décadas -e em muitas ocasiões- de uma óptica socialista-revolucionária.
Agora quero transcreer aqui alguns parágrafos do artigo que escrevi a raiz de 50 aniversários da Revolução Cubana:
"A opção desejável do ponto de vista revolucionário, a que resta por tratar, é a socialização progressiva do estatal, através da autogestión e cogestión dos trabalhadores, através da cooperativização e/ou colectivização das pequenas e médias empresas productivas e de serviços, da combinação de variadas formas de propriedade e gestão social, e de diversas formas de usufructo social da propriedade pública e da conversión progressiva da economia de mercado em economia de equivalencia (na que reja o valor das mercadorias e não seus preços)
?A opção deseable desde uma óptica revolucionária é avançar para uma autentica democracia socialista, separando as funções do partido e do Estado, e das organizações sociais e do Estado, dando-lhe vida real ao poder popular, à participação, aos princípios de revocabilidad, ao controle de cidadãos sobre as instituições, à liderança social e político separado ou não dos cargos governamentais, ao relevo generacional.
"Trata-se de acelerar o trânsito para um socialismo autogestionário, participativo, rejuvenescido; para uma democracia integral. E Cuba conta com grandes reservas culturais e políticas para consegui-lo, o que além do mais desarmaria politicamente a hipócrita campanha de seus adversários a favor da democracia.
"Trata-se também de retomar a partir da sociedade política e civil as linhas de solidariedade em favor da nova independência e a revolução continental, separando com clareza a diplomacia estatal do internacionalismo revolucionário necessário, do antilhanismo e o latino-americanismo consequentes. E isto ajudaria a acelerar e aprofundar o processo transformador que tem lugar hoje na nossa América, em direção ao trânsito para uma democracia participativa e um novo socialismo. (CUBA, Cinquenta anos de revolução: velhas heresias reclamam outras novas.-30 de dezembro 2008)
A essas ideia gerais agreguei em outros trabalhos a necessidade de assumir a maior profundidade a erradicação da cultura machista patriarcal, o adulto-centro (concepção que exclui, menospreza e subordina as jovens gerações), a homofobia e o racismo em todas suas expressões; bem como a necessidade de assumir o tema ambiental em sua real dimensão emancipadora e de criar um sistema de meios de comunicação geradores de democracia socialista. Todas metas inseparáveis de um autêntico projeto socialista.
É claro também que esses eixos de socialização podem assumir diferentes modalidades, graus, velocidades, combinações e formas institucionais, dando lugar a modelos específicos em constante mutação.
Superar o atraso e descartar as opções pró-capitalistas
Lamentavelmente o estancamento prolongou-se demasiado e só agora se fazem mornas tentativas de reformas e readequações, sem que estas apontem para a socialização do estatal e a democratização a fundo da sociedade cubana.
Em Cuba não se esgotou o socialismo, mas sim a falta de socialismo no caminho para ele, determinada pelo fato de que a expropriação do capital privado e multinacional e o poder de decisão passou mãos de um súper Estado proprietário ineficiente e burocratizado, e não ao povoo trabalhador e da sociedade organizada. Isto sem negar seu destacado papel em matéria de redução das desigualdades, saúde pública, educação, desportos... ainda dentro de significativas precariedades e sem obviar que é bem mais fácil transitar da estatização para a socialização que da privatização para o socialismo.
Não se deve perder de vista que a vigência prolongada desse modelo deu lugar à aguda crise estrutural do mesmo, aproveitável pelos inimigos abertos e ocultos do socialismo que aspiram a restaurar o capitalismo em qualquer de suas variantes.
Por isso, junto às propostas e esforços em favor da superação do modelo existente, é preciso se dispor a barrar a passagem a todas as variantes de capitalismo, privado ou de Estado, burdo ou maquilhado, "verme" ou "achinesado".
No meio dessa crise do modelo há quem aposte na substituição do estatismo por um modelo capitalista de tipo Ocidental, dando rédia solta à privatização em todas as vertentes; e também há quem proponha reformas econômicas pró-capitalistas ao "estilo chinês": um modelo em que o estatismo modernizado se combine com as privatizações e o alargamento das concessões ao capital multinacional.
Estas duas opções -reitero- são sumamente negativas:
-A primeira porque é entreguista, recolonizadoras, drasticamente contrarrevolucionária e altamente traumática.
-A segunda porque ainda que menos traumática, mais nacional e desenvolvimentista, é afinal de contas capitalista e, em consequência, promotora da exploração, as desigualdades e as injustiças sociais.
As duas conduzem em termos relativos -e com vulnerabilidades maiores em Cuba- a situações indesejáveis (ainda que diferentes em muitos aspectos), presentes hoje na Europa do Leste e na China.
Socialismo ou barbárie
Como dissemos muitas vezes dantes: essa disjuntiva não é fatal. Existe uma outra opção, uma terceira opção, para superar o status quo em crise.
Sim, há outra via que pode se resumir assim: socializar o estatal com autogestão e cooperativização, promover o contaproprismo e a pequena propriedade estimulando sua associação, incorporar novas formas de propriedade social e de gestão e co-gestão democráticas, impulsionar a economia de equivalências, a descentralização e democratização política para a democracia participativa, cultural e de gênero, para o novo socialismo.
Pode resumir-se assim e se despregar e se desenvolver com criatividade, com constante esforços superador, com formas em mudança, com intensidades e ênfases diferentes.
Entre estas três opções (enunciadas a traço grosso e sem descartar outras que surgirem do talento e a criatividade socialista) é preciso escolher a mas conveniente para a colectividade cubana com determinação e de minha parte não vacilo em favorecer o caminho da nova democracia e o novo socialismo, com as particularidades e modulações de lugar.
Um caminho que parte da análise crítica-construtivo das experiências socialistas frustradas no século XX e do negativo devir dos processos de restauração capitalista na Europa e na Ásia, para revitalizar o ideal socialista, recuperar seu caráter popular-democrático expressado na origem e nas fases iniciais das revoluções proletarias-camponesas e de libertação nacional do século passado, sublinhar as mudanças no capitalismo e o imperialismo em sua fase senil, assumir os contributos teóricos-práticos registrados ao longo das últimas décadas e recrear uma proposta socialista à altura do século XXI.
Assumo esta opção porque estou convencido hoje é mais verdadeiro que nunca que: ou criamos novo socialismo caminho ao comunismo, ou não espera o caos, a destruição e a barbárie.
Fonte: Kaos en la Red.
extraído do Diário da Liberdade