25/6/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online – Traduzido por
“Mistah Kurtz - he dead.”
Joseph Conrad, Heart of Darkness
No que tenha a ver com guerras norte-americanas, a história tem o estranho hábito de repetir-se e repetir-se, sempre como farsa. Agora é o Pentágono, em polvorosa, porque o general Stanley McChrystal, ex-comandante dos EUA e da OTAN no Afeganistão, foi mostrado, destrambelhando, em entrevista à revista Rolling Stone.
Foram-se os dias
O que nos leva a Francis Ford Coppola que usou The Doors na abertura de Apocalypse Now – e à vitória dos EUA na guerra do Vietnã (mas só no cinema). McChrystal pode ser mostrado como cruza de Capitão Willard e Siô Kurtz original da obra prima de Conrad, modelo literário para o Coronel Kurtz de Marlon Brando. Ambos guerreiros-intelectuais – um à beira de cruzar o portal do coração das trevas, o outro já instalado lá dentro.
Embora saudado como herói por uma mídia caluniadora sicofântica selvagem, McChrystal, como Willard, é essencialmente um assassino treinado, cabeça de um esquadrão da morte ativo no Iraque antes do “surge”, o mesmo “surge” esculpido
Mais cedo ou mais tarde, um personagem kurtz-mcchrystaliano aparecerá em filme detona-quarteirão de Hollywood. Os EUA perderam a guerra no Vietnã; mas nas telas, ganharam. Os EUA estão perdendo a guerra no Iraque, mas estão ganhando, nas telas. E os EUA perderão a guerra no “Af-Pak” e ganharão, nas telas.
TS Eliot usou “Mistah Kurtz - he dead”,
Nossas vozes dessecadas / Quando juntos sussurramos /
São [...] como [...] pés de ratos sobre cacos /
Não surpreende que o presidente Barack Obama se mostrasse “desconfortável e intimidado” numa sala repleta de medalhados do Pentágono ao receber McChrystal. Obama é intelectual urbano progressista. Evidentemente e figadalmente, é homem que desconfia de McChrystal, daquele band of brothers, de fato, a maioria deles matadores e funcionários que povoam o sempre crescente complexo industrial militar. Ironia é que, ao mesmo tempo, aqueles funcionários do império também, fatalmente, desconfiam da falange de conselheiros de Obama, os quais não têm nem qualquer mínima ideia sobre “a missão”.
Mas... e qual seria “a missão” no “Af-Pak”? Para a equipe de Obama, trata-se de usar o Afeganistão à guisa de cunha para expandir a fissura já abismal que separa EUA e Irã, até que o Irã xiita e a Arábia Saudita Wahhabi sunita pulem diretamente um(a) na jugular do(a) outro(a).
Mas o complexo industrial militar quer mais, muito mais. Trata-se do novo grande jogo na Eurásia. É a “doutrina da total dominação do espectro” do Pentágono, que pressupõe a instalação de bases estratégicas no Afeganistão para vigiar e controlar os dois concorrentes estratégicos, Rússia e China, lá, junto àquelas fronteiras. Outra vez, trata-se do final dos anos 1990s; ou isolar ou esmagar ou subornar os Talibã, para que o sonho-delírio cachimbado – o Gasoduto Trans-afegão [ing. Trans-Afghan Pipeline (TAP)] – possa ser concretizado e leve o gás do Turcomenistão até os mercados ocidentais; esse gasoduto, não o gasoduto rival, anátema, gasoduto IP (Iran-Paquistão! Não!). Em duas palavras, trata-se de fazer a guerra infinita.
É fácil esquecer – como faz a mídia corporativa dos EUA – que, no frenesi noticiaresco sobre o “general desembestado”, a estratégia de contraguerrilha de McChrystal no Afeganistão, já está reduzida, conforme neologia que o próprio general cunhou, a um “Caos-istão”, e já faz tempo. Porque aplicar contraguerrilha em massa contra irmãos e primos pashtuns é receita alucinada para fracasso garantido. Washington sequer sabe quem é “o inimigo”; e os afegãos, por sua vez, só veem uma guerra de cristãos invasores contra a nação pashtun.
Essa receita foi “concebida” originalmente pelo novo comandante geral do “Af-Pak”, recem nomeado, patrão de McChrystal e comandante geral David [“Estou sempre me posicionando para as eleições de 2012”] Petraeus, herói conceitual do tal de “surge” no Iraque. O novo general é (quase) igual ao velho general. Digamos que Petraeus é versão mais engomada do Capitão Willard, sem o baixo-profundo Kurtzeano de McChrystal. O estribilho é o poderoso “Não seremos enganados outra vez!” de Peter Townshend. Ou seremos?
O evento “McChrystal cai
Já faz muito tempo que a imensa, absurdamente cara, infinita, doentia obsessão norte-americana com guerra e guerras não mantém qualquer relação nem com a política nem com a realidade. Inscreve-se no campo da ficção – e o vai-da-valsa da troca de generais prossegue, como diria Eliot, “nesse vale oco”. Esses passos ficcionais acertam e continuarão a acertar, com mira mortal, ainda por muitos e muitos anos, “esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos”.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Mistah McChrystal - he dead
Notas de Tradução
[1] Hunter Stockton Thompson (1937-2005). Jornalista e escritor, autor de Medo e Delírio em Las Vegas (port. Conrad, 2007, L&PM POCKET, 2010). Thompson criou um estilo, chamado “Jornalismo Gonzo”, caracterizado por não separar autor e sujeito, ficção e não-ficção (mais em )
[2]
[3] Referência a “South Park”, série de televisão.