por Ben Hillier [*]
Martin Wolf descreveu como "um banho de sangue" . O editorial do Financial Times considerou que era uma "leitura gélida" . O orçamento da Grã-Bretanha é de austeridade, tal como nunca se vira ao longo de gerações. Um corte de 25 por cento na despesa pública, 250 mil ou mais empregos no sector público a serem eliminados. Isso é só o começo.
Já há apelos para que o próximo orçamento vá ainda mais longe. Num país em que – mesmo antes de a crise o atingir – mais de um quarto da população era considerada "pobre para a fila do pão" , o establishment está a gritar: "toda a gente tem demasiado do bom!" É um apelo que ecoa nos corredores do poder do mundo todo.
Irlanda, Grécia, Grã-Bretanha, Itália, França e Alemanha, para não mencionar a Europa do Leste, estão no comboio neoliberal – em grande estilo. Mas a Irlanda e a Grécia estão a mostrar que é improvável que a austeridade resolva os problemas. Quando falha o crescimento económico, as receitas do estado falham também; se a deflação principiar – uma possibilidade muito real – o fardo da dívida aumentará. Um ou dois incumprimentos parece certo que ocorram.
Mas as classes dominantes não estão perturbadas. O seu objectivo principal não é simplesmente administrar as consequências da crise financeira. Elas têm um plano a longo prazo para esmagar totalmente a classe trabalhadora, deitar abaixo o consumo e remodelar as expectativas de como o ser humano tem direito de viver. Como mencionou um responsável do Tesouro Britânico ao Financial Times ainda antes de o orçamento confirmar:
Qualquer pessoa que pense que a revisão da despesa é apenas para poupar dinheiro está a errar o alvo... Isto é uma oportunidade que só ocorre uma vez numa geração de transformar o modo como o governo funciona.
Ou seja, o governo não deveria funcionar. Não para os pobres, pelo menos. Outrora dizia-se que o capitalismo podia sobreviver a qualquer crise desde que os trabalhadores pudessem arcar com o peso da mesma. Talvez. O problema para os ricos e poderosos, contudo, é que esta crise é estrutural. Os trabalhadores e os pobres não a provocaram. Atacá-los – mesmo que isto signifique remover todos os ganhos social-democratas dos últimos 60 anos – não a resolverá. Os ricos também precisam empurrar o fardo dos pagamentos para os ombros uns dos outros.
Este é o contexto no qual foi efectuada a cimeira do G20 em Toronto. Há um fosso aparente revelado na reunião; é difícil dizer quão profundo é ele, mas é significativo. De um lado estão os europeus e o Japão, que estão a aplicar austeridade; do outro estão os Estados Unidos, os quais estão a advertir que neste ponto a política de contracção podia ser desastrosa.
Paul Krugman queixou-se de que a viragem para o endurecimento fiscal na Europa representa "a vitória de uma ortodoxia que tem pouco a ver com a análise racional..."
Se se tratasse simplesmente de ideologia então isto seria verdade (e pareceria representar uma mutação histórica – os americanos a argumentarem por mais despesa do estado e os europeus a apelarem por cortes de benefícios). Mas os ricos e poderosos são um grupo pragmático e não estão de todo interessados em teoria. A sua viragem para a austeridade faz parte de uma estratégia calculada de "empobrece o teu vizinho". Colectivamente ela pode ser auto-destrutiva, mas a um nível de país individual ela não é nem ligeiramente irracional.
Para entender o que está a acontecer precisamos primeiro reconhecer que as únicas coisas que importam no pretenso "consenso G20" mundial são o que fazem as grandes economias. Como com todas as coisas internacionais, os acordos são mantidos de pé pelo poder, não pelo consenso. Isto é verdadeiro tanto para a "coligação de vontades" no Iraque como para os comunicados do G20.
A cimeira de Toronto foi acerca da Alemanha, dos EUA e da China. Em menor medida foi acerca do Japão, da França e da Grã-Bretanha. Estavam todos ali para compor os números, dar apoio político – ou terem os seus rabos chutados.
A declaração da cimeira contém duas propostas significativas a que as economias avançadas estão a seguir. Primeiramente há um compromisso para activar "planos fiscais para reduzir em 2013 reduzir défices pelo menos à metade e estabilizar ou reduzir rácios dívida-PIB em 2016". Esta é a austeridade que está a ser desencadeada de modo tão gélido na Europa. Ela representa o maior ataque à classe trabalhadora no período do pós-guerra.
A segunda directiva do G20 é que "as economias excedentárias empreenderão reformas para reduzirem a sua dependência da procura externa e centrarem-se mais em fontes internas de crescimento". Isto é destinado directamente à Alemanha e à China. Durante a última década, os EUA desempenharam o papel de "consumidor de último recurso"; a contracção de empréstimos que efectuaram durante a última década foi para impulsionar o crescimento global e agora consideram que é tempo de os alemães e os chineses pagarem o favor.
O pacote de austeridade alemão mostra que o capital germânico não está a fazer nada disto. Nem o de qualquer país da Europa. E a China está a mover-se para o crescimento moderado. De facto, quase todos os outros governos decidiram começar, ou continuar, a poupar. Isto significará despesas de consumo mais baixas e, muito possivelmente, menos crescimento do investimento. As importações são muito mais prováveis que sejam mais baixas do que o seriam de outra forma.
Quanto a isto, os desejos europeus de divisas desvalorizadas, cortes nas despesas internas, cortes salariais e exportações relançadas estão em conflito com os planos da classe dominante dos EUA. (Note-se no entanto que a Europa está longe de unificada – a Grécia e a Irlanda, por exemplo, foram postas na linha pelo establishment alemão.)
Os chineses estão a fazer movimentos para "reequilibrar" – a antever acontecimentos fatais quanto à sua capacidade para continuar exportações em massa para uma eurozona que está a esmagar o consumo, e uns EUA cuja perspectiva futura parece nada segura – mas eles não têm a capacidade para absorverem exportações europeias e estado-unidenses.
Com a sua economia ainda em crescimento, continuarão a importar equipamento industrial pesado e maquinaria da Alemanha, Japão e EUA. Mas com os seus próprios mercados de exportação deprimidos, lutarão a médio prazo: é improvável que sejam capazes de absorver a sua própria produção, muito menos compensar a lacuna do resto do mundo.
Com toda a gente a poupar, os EUA ficam sob pressão para fazer o mesmo. Os conservadores nos EUA a bloquearem a oferta a governos estaduais e locais não são ideologicamente dogmáticos a este respeito. Isto é capital a tentar "manter-se real". Mas por enquanto a administração não pode ir para a austeridade completa. A economia dos EUA está a crescer mais depressa do que a da eurozona, mas os dados do emprego e da habitação indicam que a recuperação é frágil. O governo está hesitante em privar-se das despesas.
Quando finalmente o fizer, a realidade de que não podem ser todos exportadores e incidirem em excedentes comerciais pesará sobre o mundo. Alguém tem de ser um comprador e tomador de empréstimos. A tornar as coisas piores para o capital americano, a divisa dos EUA tem-se apreciado contra o Euro e está super-valorizada contra o Yuan, apesar da recente apreciação deste último. Tudo isto torna a exportação muito mais difícil.
Além disso, os problemas a mais longo prazo nas economias avançadas – tendência a declínio das taxas de crescimento e de investimento, com base em retornos estagnantes em relação ao investimento – que foram mascaradas pela acumulação de dívida ficaram expostos.
A partir da década de 1980 uma proporção apreciável dos lucros totais na economia foi alimentar o sector financeiro em busca de taxas de lucro mais elevadas. O resultado foi a expansão significativa do sector financeiro global e a transmutação das corporações produtivas e industriais em alguma coisa a assemelhar-se a "dispositivos financeiros".
Ao longo da última década e meia, em particular, o consumo pessoal foi mantido artificialmente alto para compensar o consumo produtivo mais baixo. As companhias, uma atrás das outras, estavam a cozinhar os livros contabilísticos a fim de impelir mais para o alto os preços das acções.
Em 2005, a cada quatro dias os mercados financeiros estavam a comerciar o equivalente ao valor total anual das exportações globais. Mas apesar de os retornos serem muito bons nesta esfera, eles foram conseguidos ao custo de uma série de bolhas especulativas e crises de dívida: as crises de dívida do Terceiro Mundo da década de 1980; o colapso do mercado de acções dos EUA de 1987; o colapso parcial da indústria de caixas económicas nos EUA de 1989; o crash dos preços da propriedade imobiliária e das acções de 1990 no Japão; a crise financeira do Extremo Oriente; o colapso do mercado de acções das dot.com; e o recente colapso imobiliário nos EUA e na Europa Ocidental.
A guerra do capital contra o trabalho travada através da política governamental já se intensificou na Europa num grau nunca visto desde a depressão da década de 1930. Os EUA começaram a seguir o exemplo. Despedimentos em massa e salários deitados abaixo não têm sido suficientes para ressuscitar economias. A austeridade tão pouco fará isso; ela provavelmente tornará todas as coisas piores
Dizer que tudo agora está pendurado por fio pode ser exagerado. Mas quando a actual recuperação parar – como é quase certo acontecer – as divisões entre as classes dominantes dos diferentes países serão expostas mais uma vez. Elas pressionarão mais duramente umas contra as outras para comutar o fardo da responsabilidade.
As queixas quanto a divisas e desacordos fiscais de hoje estão destinadas a ficarem muito mais desagradáveis; os ataques governamentais a ficarem muito piores.
O artigo original, em inglês, encontra-se em: United against Us, Divided among Themselves: Toronto and European Assault on Living Standards
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