sábado, 16 de agosto de 2014

Modi e Gandhi, em 14/8/2014: de merda e latrinas

15/8/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido na Tenda do Pinico na Vila Vudu: Se há coisa que se vê igualmente distribuída por todos os países BRICS é essa tal MEEEEERDA de “elites” que há por aqui [pano rápido].

Narandra Modi - Primeiro-Ministro da Índia
As elites que vivem em Delhi muito provavelmente viraram o nariz ante o primeiro discurso de Narendra Modi, como primeiro-ministro da Índia, no Dia da Independência, hoje, no Forte Vermelho. Com certeza não gostaram que o líder de uma superpotência emergente aclamado como o Homem de Ferro, se tenha rebaixado ao plano de qualquer “homem comum”, para falar sobre merda e latrinas, em ocasião tão solene.

Lembro do primeiro encontro de Mahatma Gandhi com o Congresso Nacional Indiano na sessão em Calcutá, pouco depois de ele ter retornado da África do Sul, e o problema da merda, naquela ocasião histórica.

Mahatma Ghandi
Havia só umas poucas latrinas, e a lembrança daquele fedor ainda me oprime até hoje – como Ghandi escreveu em sua Autobiografia. E continua: Chamei a atenção dos voluntários. Responderam-me com todas as letras: Não é trabalho nosso. É trabalho para urubuPedi um esfregão. O homem arregalou os olhos. Procurei eu mesmo o esfregão e limpei a latrina. (...)Alguns delegados [ao Congresso] não se acanhavam de usar as varandas do lado de fora dos respectivos dormitórios, para as urgências da natureza durante a noite (...) Ninguém dava sinal de ser capaz de limpar coisa alguma, e não encontrei ninguém com quem partilhar a honra de ter feito aquele trabalho.

Gandhi acrescentou que, se aquela sessão do Congresso durasse um pouco além do que durou, as condições eram propícias à eclosão de uma epidemia.

Não me surpreende que Modi tenha encontrado essa via até o pensamento de Gandhi, noite passada, quando organizava as ideias para o discurso de hoje. Com certeza lhe ocorreu que se Gandhi “conectou-se” às massas indianas, foi, em larga medida, por causa de sua prontidão para fazer trabalho de urubu nas latrinas de Calcutá, ao ponto de ter feito desse serviço uma de suas principais causas.

A multidão de “especialistas” de TV, a “prever” ontem à noite os temas sobre os quais Modi falaria hoje, das muralhas do Forte Vermelho, comprovaram-se horrivelmente erradas. Modi provavelmente decidiu, deliberadamente, pôr as elites de Delhi no devido lugar delas, e trocou-as, da grande cidade que elas tanto amam, pelas vilas do interior da Índia mergulhadas na escuridão.

O discurso foi dirigido à Índia “real”. A questão é que, para um indiano comum, é muitíssimo importante não ter de curvar a cabeça, envergonhado, cada vez que acorda num trem de longa distância que atravessa a Índia de Thiruvananthapuram a Hazrat Nizamuddin em Delhi, para ver centenas de indianos seus compatriotas defecando a céu aberto, alguns com uma garrafa plástica de água, a maioria sem nem isso.

Trens na Índia

Essa emoção de vergonha é desconhecida das elites de Delhi. Assim também, faz enorme diferença que as centenas de milhões de condenados da terra que vivem na Índia tenham qualquer segurança social, mínima que seja, para proteção de suas famílias. Pouco me importa que Modi nada tenha dito em seu discurso sobre o mundo multipolar ou o FDI ou a Comissão de Planejamento. A miséria é a vergonha da Índia. Modi acertou, ao escolher começar pelo mais básico.

Em postado recente, comparei Modi e Recep Erdogan da Turquia. Nenhum dos dois nasceu exatamente em berço de ouro. Ambos foram criados na periferia de grandes cidades. Ambos andaram o caminho mais difícil, com todas as probabilidades pesando contra eles, e são essencialmente self-made men, com integral direito ao orgulho, limítrofe da arrogância, que sempre acompanha esse tipo de gente. Mas hoje, quando chegaram ao pico do poder e do prestígio em suas respectivas capitais, ambos também se mostram agudamente conscientes de que, com poder ou sem, ainda são e sempre serão “marginais”.

Recep Tayyip Erdoğan – Primeiro-Ministro da Turquia
As elites que enchem bares da moda, que bebem uísque, dirigem Porsches e habitam luxuosas villas (‘kotis’) no Bósforo em Istambul não “aceitaram” Erdogan — mesmo depois de uma década em que governou como Sultão da Turquia. E ele sabe que jamais o aceitarão como “um deles”. O mesmo acontece com Modi. Os punhais já estão desembainhados contra ele, não estão?

O que mais me chamou a atenção no discurso de ontem foi Modi admitir claramente para ele próprio, que, sim, é “marginal”; segundo, que tenha tão assumidamente evocado Gandhi — é movimento muito estranho, num “pracharakdo RSS; terceiro, como Erdogan já fez inúmeras vezes e continua a fazer, Modi ignorou a feira de vaidades em Delhi e falou sobre o que preocupa as massas indianas – com atenção dirigida ao “básico”.

Por que fez isso? Político sensível, Modi compreende por que a metáfora do esfregão e das latrinas ainda é, hoje, perfeita síntese da crise da Índia. Há muita merda acumulada depois de tantas sessões do Partido do Congresso [Nacional Indiano] por toda a Índia, e já não temos nem Gandhi para limpar as latrinas.

[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de geopolítica, de energia e de segurança para várias publicações, dentre as quaisThe Hindu e Ásia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House, e muita outras. Anima o blogIndian Punchline no sítio Rediff BLOGS. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala, Índia.

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