segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Rússia, EUA e a “invasão” humanitária

24/8/2014, [*] Ray McGovernInformation Clearing House
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A Máquina de GuerraHisteria Oficial de Washington está novamente correndo a toda velocidade depois que a Rússia unilateralmente enviou um comboio de caminhões que transportam suprimentos humanitários para a cidade bloqueada de Lugansk, na Ucrânia − escreve o analista ex-CIA Ray McGovern.


Chega a Lugansk o 1° Caminhão russo
Antes de raiar o dia em Washington, no sábado, “separatistas ucranianos pró-Rússia” – os quais, corretamente apresentados, são federalistas do sudeste da Ucrânia que se opõem ao golpe de fevereiro passado em Kiev, descarregaram em Lugansk, Ucrânia, cerca de 280 caminhões russos. O ocidente acusou os caminhões de terem “invadido” a Ucrânia na 6ª-feira (22/8/2014). Mas, se foi invasão, foi a invasão mais curta do mundo; os caminhões chegaram, descarregaram os suprimentos que traziam e imediatamente retornaram à Rússia.

Sei muito bem o que é uma invasão russa, porque vi acontecer. – Por isso, sei que essa não foi invasão russa. A invasão russa à qual assisti aconteceu há 46 anos. Eu estava a 15 quilômetros da fronteira da Tchecoslováquia quando os tanques russos surgiram como tempestade, para esmagar o experimento de democracia que ficou conhecido como “Primavera de Praga”. Foi ataque brutal.

De volta a Munique, Alemanha Ocidental, onde meus deveres profissionais [na CIA] envolviam contatos substantivos com a Rádio Europa Livre [orig. Radio Free Europe], vivi um dos momentos mais tristes da minha vida, ouvindo todas as estações de rádio do lado tcheco, tocando “Ma vlast” [Minha terra] de Smetana, antes de se calarem; e caladas permaneceram por mais de vinte anos.

O comboio russo já próximo de Lugansk
Na 6ª-feira passada (22/8/2014) eu não estava próximo da fronteira entre a Rússia e o sudeste da Ucrânia, quando o comboio de cerca de 280 caminhões carregados de itens de ajuda humanitária começaram a atravessar a fronteira na direção da cidade de Lugansk, controlada pelos federalistas. Mas o comboio absolutamente não me pareceu agressivo; pareceu-me, isso sim, movimento para romper um cerco, método brutal de guerra que atinge indiscriminadamente todos, inclusive civis – o que viola o princípio da imunidade de populações não combatentes.

Michael Walzer, em seu War Against Civilians [Guerra contra Civis], observa que:

(...) mais pessoas morreram no cerco de Leningrado, que durou 900 dias, durante a IIª Guerra Mundial, que nos infernos de Hamburg, Dresden, Tóquio, Hiroshima e Nagasaki somados .

Os russos, portanto, são excepcionalmente mobilizáveis contra cercos que matem civis.

Há também um lado pessoal no presidente Vladimir Putin, nascido em Leningrado, hoje São Petersburgo, oito anos depois do fim do longo cerco pelo exército alemão. Não há dúvidas de que essa história é parte potente da consciência do presidente da Rússia. Um irmão do presidente Putin, Viktor, mais velho, morreu de difteria durante o sítio de Leningrado.

Comboio russo no fim da tarde de 23/8/2014
O sítio de Lugansk

Apesar da fúria manifesta por figurões dos EUA e da OTAN sobre o movimento unilateral dos russos para entregar suprimentos depois de semanas de negociações frustrantes com autoridades ucranianas, é claro que havia absoluta necessidade humanitária. Uma equipe da Cruz Vermelha Internacional que visitara Lugansk dia 21/8/2014 para concluir arranjos para a entrada do comboio de ajuda, descobriu que o fornecimento de água e de energia estava interrompido, por efeito de bombardeio contra infraestrutura essencial.

O exército ucraniano estava atacando diretamente a cidade com fogo de artilharia, num esforço para desalojar federalistas russos étnicos, muitos dos quais apoiadores da eleição do presidente Viktor Yanukovych, deposto pelo golpe de 22/2/2014.

A equipe da Cruz Vermelha relatou que as pessoas em Lugansk temiam deixar as próprias casas e serem mortas nas ruas, por causa do bombardeio intermitente contra áreas residenciais, que punham em risco a população civil. Laurent Corbaz, presidente da Cruz Vermelha Internacional para Europa e Ásia Central relatou:  

(...) necessidade urgente de itens essenciais, como comida e medicamentos

A Cruz Vermelha Internacional declarou que havia tomado

(...) todas as medidas administrativas necessárias para a passagem do comboio russo” e que, “dependendo apenas de vistorias nos postos de alfândega, a organização estava, portanto, pronta para entregar a ajuda humanitária em Lugansk (...) desde que respeitadas as garantias de livre passagem.

280 caminhões aguardando na fronteira
(21/8/2014)
Aí, porém, na “livre passagem” é que estava o Ardil-22. O regime de Kiev e seus apoiadores ocidentais resistiram contra qualquer tipo de cessar-fogo ou de acordo político, a menos que os federalistas – que Kiev chama de “terroristas” – depusessem armas e se rendessem.

Acusando o ocidente de bloquear repetidas vezes um “armistício humanitário”, declaração do Ministério de Relações Exteriores da Rússia denunciava a diplomacia obstrucionista de Kiev e “bombardeio ainda mais intenso de Lugansk” dia 21/8/2014, um dia depois de se terem obtido avanços na questão da livre passagem pelos postos de fronteira:

(...) as autoridades ucranianas bombardeiam cada vez mais violentamente os pontos de destino da ajuda humanitária, e usam o bombardeio como pretexto para impedir a chegada de ajuda humanitária.

“Os russos decidimos agir”

Referindo-se a esses adiamentos “intoleráveis” e “pretextos e demandas artificiais sem fim”, disse o Ministério russo, “Os russos decidimos agir.” E a declaração termina em tom que já nada tem de lamentação ou denuncismo, e é clara ameaça de ação militar:

Alertamos contra quaisquer tentativas para desvirtuar essa missão puramente humanitária, que exigiu muito tempo para ser preparada em condições de completa transparência e cooperação com o lado ucraniano e a Cruz Vermelha. Os que só se interessam por continuar a sacrificar vidas humanas às suas próprias ambições e objetivos geopolíticos e que estão agredindo violentamente as normas e princípios da lei humanitária internacional que assumam total responsabilidade pelas consequências de opor tais e tantas provocações contra o comboio de ajuda humanitária.

Ajuda humanitária recebida com bandeiras
(23/8/2014)
Apesar de todos os acordos e combinados que Moscou declara ter construído com autoridades ucranianas, Kiev insiste que não autorizou a entrada do comboio russo em território ucraniano e que os russos simplesmente violaram a soberania ucraniana – não importa em que circunstâncias isso tenha acontecido.

Ainda mais alarmante, o “alerta” russo pode incluir decisão, no Kremlin, de usar força militar dentro da própria Ucrânia para proteger os seus esforços para distribuir a ajuda humanitária às populações carentes – e também ao longo da estrada, para também proteger os federalistas antigolpe.

O risco de escalada, portanto, crescerá, porque não só forças armadas ucranianas, mas também suas milícias neofascistas foram despachadas por Kiev como tropas de choque no leste da Ucrânia.

Embora muitos cidadãos russos tenham cruzado a fronteira para apoiar outros russos no leste da Ucrânia, Moscou negou que tenha responsabilidade ou controle sobre a ação desses cidadãos. Mas há russos, ali, que declaram abertamente que foram enviados por Moscou para a Ucrânia – mesmo que sejam só “motoristas” de “veículos militares russos pintados de branco para parecerem veículos civis” – como disse a Casa Branca, sobre a missão humanitária russa.

O movimento de Moscou é difícil de descartar, exceto para quem – e há muitos, tanto em Kiev como Moscou, que querem ver a situação cada vez mais agravada, convertida em amplo confronto armado entre leste e oeste. Pode-se, no máximo, esperar que, agora, o presidente Barack Obama, o Secretário de Estado John Kerry e a União Europeia deem-se conta rapidamente de que estão tentando controlar o tigre puxando pelo rabo.

Distribuição da ajuda humanitária russa
(23/8/2014)
O regime golpista em Kiev sabe de que lado do pão deles está a manteiga, por assim dizer, e nada fará que desagrade EUA e UE, se receber instruções bem claras. O mesmo não se pode dizer do Partido Svoboda de extrema direita e da “milícia” armada do Setor Direita (Pravy Sektor). E há influentes funcionários neofascistas nos ministérios em Kiev que muito apreciariam “limpar” o leste da Ucrânia, matando o maior número possível de russos étnicos.

Por tudo isso, o potencial para confronto e escalada cresceu consideravelmente. Mesmo que o presidente Petro Poroshenko da Ucrânia tenha interesse em conter os linha-mais-dura, pode ser pressionado a andar na direção oposta. E o governo dos EUA pode ver-se na posição nada invejável de ser acusado pelas provocações – sejam ataques militares russos ou avanços de caminhões e motoristas russos desarmados – sobre as quais não tem controle algum, ou só controle mínimo.

Hipocrisia, teu nome é [palavrão]

O segundo time das “relações públicas” da Casa branca foi chamado do banco na 6ª-feira (22/8/2014), em plenas férias, e não foi cena bonita de ver. Mesmo que se deixem de lado os erros gramaticais, a declaração que rabiscaram, todos juntos, muito deixou a desejar.

Começa assim:

Hoje, violando compromissos previamente assumidos e a lei internacional, veículos militares russos pintados para parecerem caminhões forçaram entrada em território da Ucrânia. (...)

A hipocrisia da Casa Branca é RIDÍCULA! 
O governo ucraniano e a comunidade internacional repetidamente esclareceram que esse comboio só constituiria missão humanitária se expressamente autorizado a tal pelo governo ucraniano e só se a ajuda fosse inspecionada, escoltada e distribuída pela Cruz Vermelha. Podemos confirmar que a Cruz Vermelha não está escoltando os veículos e não tem atribuições no gerenciamento da missão (...). Veículos militares russos pilotados por motoristas russos entraram unilateralmente em território controlado pelas forças separatistas.

A Casa Branca diz que Kiev não concordou “expressamente” com a entrada do comboio sem escolta da Cruz Vermelha. Mais uma vez, é puro Ardil-22, óbvio. Washington protegia os desmandos de Kiev, enquanto os caminhões esperavam ordeiramente na fronteira durante uma semana, enquanto Kiev evitava por todos os meios o cessar-fogo que a Cruz Vermelha exigia para pôr pessoal seu na escolta do comboio.

A outra questão de que a declaração da Casa Branca enfatiza tem a ver com a inspeção dos caminhões:

Apenas um pequeno número de veículos foram inspecionados por funcionários da alfândega ucraniana; a maioria dos veículos não passaram por inspeção alguma, se não pela própria Rússia.

Em conferência com a imprensa na ONU, na 6ª-feira (21/8/2014), o Embaixador da Rússia às Nações Unidas, Vitaly Churkin reagiu enfaticamente a essa acusação. Disse que, não só 59 inspetores ucranianos haviam examinado os caminhões, mas, além disso, a imprensa pôde selecionar, por sua conta, quais e quantos caminhões inspecionar.

Vitaly Churkin, Embaixador da Rússia na ONU
Independente do resultado desse vai-e-vem geopolítico, é claro que a decisão de Moscou de mandar os caminhões para a Ucrânia assinala novo estágio na guerra civil naquela região. O Presidente Putin prepara-se para reunião com o presidente Poroshenko, da Ucrânia, semana que vem, em Minsk – e os líderes da OTAN vão reunir-se dias 4 e 5/9/2014, em Gales. Fato é que, nesse quadro, o Kremlin impôs sua linha vermelha: há limites à quantidade de sofrimento que a Rússia deixará que Kiev inflija aos federalistas anti-Junta golpista em Kiev e aos civis russos étnicos do outro lado da fronteira.

A atitude dos russos parece ser de que, se o comboio de ajuda humanitária for descrito como invasão de território soberano, que seja. Não estão sós, nessa posição, no tribunal da opinião pública.

Na 6ª-feira (22/8/2014), o Embaixador Churkin, objetou com firmeza a comentários de que, agindo como agiu, a Rússia estaria isolada. Churkin lembrou que vários membros do Conselho de Segurança são “sensíveis à posição dos russos, dentre os quais a China e os países latino-americanos” (Argentina e Chile participam atualmente do Conselho de Segurança, na posição de membros não permanentes).

Fogh, polêmico e falso

Michael R. Gordon
(mentiroso patológico)
Membros sempre ativos da imprensa-empresa de adulação já estão trabalhando, inclusive o decano dos aduladores midiáticos,  Michael R. Gordon, do The New York Times, que já publicou matéria intitulada Rússia invadiu a Ucrânia com unidades de artilharia – informa a OTAN. O grande “furo” de Gordon foi repetido em todos os noticiários de rádio e televisão; foi citado pela NPR e outros suspeitos de sempre, que só fizeram distribuir e redistribuir boatos & agitação sem qualquer fundamento.

Gordon é o “jornalista” que jamais conseguiu encontrar aquelas armas de destruição em massa que só ele “sabia” que havia no Iraque. Agora, escreve:

Os militares russos moveram unidades de artilharia conduzidas por pessoal russo para dentro de território ucraniano em dias recentes e as usam agora para bombardear forças ucranianas − disseram oficiais da OTAN na 6ª-feira (22/8/2014).

Anders Fogh
Rasmussen
A fonte de Gordon parece ser o chefe da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, inesquecível desde que, em 2003, “informou”:

(...) o Iraque tem armas de destruição em massa. Não é coisa de que desconfiemos: é coisa que sabemos com certeza.

Telegramas que depois foram distribuídos por WikiLeaks comprovaram que o ex-primeiro-ministro holandês sempre foi instrumento de Washington.

Mas Gordon não alerta os leitores do NYTimes para o triste currículo de Rasmussen como mentiroso histórico. Nem o NYTimes alerta seus consumidores para o triste currículo de Gordon, que sempre publica notícias falsas, sobre a segurança nacional dos EUA.

Com certeza, a guerra de propaganda será afetada pelo que ocorreu na 6ª-feira (22/8/2014). O risco fica por conta de quem compre tais “notícias”.



[*] Ray McGovern nasceu no Bronx em Nova York em 25/8/1939 e lá cresceu. Formou-se com honras pela Universidade Fordham e  serviu no Exército dos EUA de 1962-1964. Está casado com Rita Kennedy por 50 anos. Juntos têm cinco filhos e oito netos.
Aposentado como analista da CIA onde trabalhou no período 1963-1990. Trabalhou inicialmente como oficial da CIA responsável pela análise da política soviética no Vietnã.
No início da década de 1980, já como analista sênior, montou e dirigiu o grupo de National Intelligence Estimates que preparava o President's Daily Brief. Rotineiramente apresentava essesbriefings matinais de inteligência na Casa Branca. Em meados da década de 1980 era o analista que conduzia briefings matinais one-on-one com o Vice-Presidente, os Secretários de Estado e da Defesa, o Comandante do Estado Maior Conjunto e do Assistente do Presidente para a Segurança Nacional. Sua carreira CIA começou no governo do presidente John F. Kennedy, e durou até a Presidência da George Bush (pai).
Após aposentar-se fundou a organização Veteran Intelligence Professionals for Sanity (VIPS)[Profissionais Veteranos de Inteligência, pela Sanidade] onde atua até hoje

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