terça-feira, 5 de agosto de 2014

Robert Fisk: “ISIS” leva sua guerra até o Líbano − ação pode ser chave para estratégia mais ampla

4/8/2014, [*] Robert Fisk, The Independent, Londres
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Fronteira Líbano-Síria atacada pelo ISIS
(clique na imagem para aumentar)
Depois de todos os alertas e todos os clichês sobre uma guerra que “respingaria” através da fronteira síria, os selvagens do “califado” muçulmano sunita de Abu Bakr al-Baghdadi afinal chegaram ao Líbano.

Até aqui, o exército libanês já perdeu 13 soldados, em dura batalha com os rebeldes para retomar a cidade sunita de Arsal no nordeste do país – junto à fronteira síria e até agora uma base para reabastecimento dos islamistas que tentam derrubar o presidente Bashar al-Assad – com o conflito já tendo gerado os mesmos eventos horrendos que se viram em vitórias dos islamistas no Iraque e na Síria: relatos de execuções de civis, soldados do exército oficial tomados como reféns, pelo menos 12 mortes de civis já confirmadas, inclusive cinco crianças, e a perspectiva de luta longa e sangrenta pela frente.

A atenção do mundo, é claro, está concentrada no massacre em Gaza. No Oriente Médio, tragédia deve vir uma por dia; então, a guerra civil síria e a tomada pelo ISIS do oeste do Iraque continuaram à sombra do conflito palestinos-Israel. Mas a chegada dos islamistas ao Líbano e a prospectiva de uma mini guerra civil na disputa por Arsal – que talvez chegue até Trípoli – podem ter repercussões muitas vezes mais graves que a guerra de Gaza. Com os islamistas controlando o lago Mosul e outros distritos dos curdos no norte do Iraque e pressionando com mais força contra os soldados do governo sírio, a entrada deles em território do Líbano marca os progressos que estão fazendo, do rio Tigre na direção do Mediterrâneo.

Em Arsal, os combatentes – oficialmente, da Frente al-Nusra, cujos membros já se uniram ao califato de Abu Bakr al-Baghdadi – adotaram sua prática usual de tomar grandes prédios no centro da cidade (nesse caso, a escola técnica, um hospital e uma mesquita) e agarrar-se a eles, na esperança de que seus oponentes desintegrem-se.

O exército libanês, que já por duas vezes derrotou rebeliões islamistas dentro do Líbano nos últimos 15 anos, declarou ter retomado a escola, mas as declarações de ambos, do comandante libanês e do primeiro-ministro devem ser levadas muito a sério: que a tomada de Arsal foi planejada com grande antecedência e é parte de estratégia muito mais ampla dos rebeldes.

Reforços do Exército libanês chegam a Arsal,
fronteira com a Síria, em 4/8/2014
O exército libanês disse que já matou até aqui 50 combatentes – balanço que se parece muito às prematuras declarações de vitória, do exército sírio, do outro lado da fronteira – mas as forças do governo libanês não dão sinais de pensar em desistir. A maior parte das forças libanesas são constituídas de muçulmanos sunitas, cujas unidades estão entre as mais bem integradas dentre todos os exércitos do Oriente Médio – e isso jamais impediu que atacassem e contivesses rebeldes muçulmanos sunitas no passado, primeiro em Sir el-Diniyeh nas montanhas do norte em 2000, e depois dentro do campo palestino de Nahr el-Bared em 2007, ao custo de quase 500 soldados, combatentes e civis mortos.

Por mais de um ano o exército libanês tentou, em vão, fechar a fronteira leste de Arsal, e uma vitória do exército sírio sobre os rebeldes em Yabroud, do outro lado da fronteira, no início desse ano, sugeria que os insurgentes sunitas pudessem deixar Arsal para não ficarem isolados. Mas o ressurgimento deles mostra que os sírios absolutamente não estão controlando, como têm dito que estariam, as áreas da fronteira. De fato, os homens da Frente al-Nusra não tiveram dificuldade alguma para capturar 15 soldados e quase outros tantos agentes da Força Interna de Segurança, logo no primeiro assalto a Arsal. 

Uma batalha entre aquelas forças sunitas que se opõem ao regime de Assad em Damasco – que são também responsáveis pelo bombardeio contra alvos xiitas no Líbano – e soldados libaneses já era quase inevitável. Há menos de duas semanas, forças especiais libanesas em Trípoli mataram Mounzer el-Hassan, sunita “jihadista” e oficial de logística, acusado de ter dado coletes explosivos aos suicidas-bomba que atacaram os subúrbios xiitas no sul de Beirute e a embaixada iraniana na capital. Os que assistiram à batalha disseram que el-Hassan, ao morrer, ouvia música islâmica num gravador; e uma granada de mão – que possivelmente estava com ele – explodiu junto ao seu rosto.

Houssam Sabbagh clérico salafista
libanês-australiano
Essa morte acontece pouco depois da captura de Houssam Sabbagh, militante salafista que liderou milícias sunitas em batalhas recentes contra xiitas alawitas em Trípoli. Sabbagh, que combateu contra forças dos EUA no Afeganistão, na Chechênia e no Iraque, foi um dos raros líderes em Trípoli que se recusaram a participar de um plano governamental de “segurança” para a cidade.

Mas as batalhas na Síria são mais complexas. Enquanto o ISIS – que ainda usa a sigla do Estado [ou Exército] Islâmico no Iraque e Levante [ou Síria], apesar de ter sido incorporado ao que al-Baghdadi chama de “Estado Islâmico” ou califado – fortaleceu suas posições em Deir el-Zour e vilas vizinhas (sempre com as execuções ferozes e cabeças espetadas em postes), os militares sírios parecem preferir atacar rebeldes nas periferias dos subúrbios de Damasco, especialmente em Douma, distrito localizado bem próximo da principal rodovia ao norte da capital. Se os homens de al-Baghdadi estão lutando pelo controle do leste do país, Assad não os quer tomando o lugar de rebeldes menos espiritualizados em torno de Damasco.

Notícias de grupos de resistência independentes, que se opõem a Assad e ao ISIS – e que, ao que se diz, se autodenominam “Mortalhas Brancas” [orig. “White Shrouds”] – têm de ser vistos com a cautela síria de sempre. Muitos grupos de milicianos, de fé sunita e outras, já subiram ao palco da guerra civil ao longo dos dois últimos anos, para em seguida desaparecerem ou fundirem-se em grupos rebeldes maiores ou nas forças governamentais.

Mas, assim como têm de se reger por regras tribais no Iraque, os islamistas descobriram que é perigoso atacar tribos sírias individuais na bancada Jazeera [1] ao norte de Deir ez-Zour. Podem não amar Assad, mas nem por isso permitirão que milicianos vindos da Argélia ou da Chechênia governem suas terras tribais.

Situação atual do ISIS na Síria e Iraque
e a infraestrutura de petróleo & gás 

(clique na imagem para aumentar)
Mais preocupantes, contudo, são notícias de que pistoleiros do califado podem ter tomado a maior represa do Iraque, Mosul, que até agora estivera sob controle da guerrilha peshmerga curda.

Os curdos ampliaram seu território em cerca de talvez 40%, quando o exército iraquiano desertou daquela região no norte do Iraque, mas a reputação de seu exército peshmerga supostamente invencível está sofrendo duro revés, agora que já admitiram ter perdido o controle de algumas cidades próximas à represa.

Se os islamistas podem capturar todo o complexo da barragem, podem, tecnicamente, impedir o fornecimento de água para Bagdá – ou inundar a capital, cujo governo xiita já demonstrou ser incapaz de governar, ou de recapturar, território sunita no Iraque.
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Nota dos tradutores
[1] Supomos que a metáfora remeta ao que aconteceu num programa de entrevista da rede Al-Jazeera, em que dois deputados discutiram, com o desfecho que se vê (18/6/2014) a seguir:  

Mas a palavra “Jazeera” em árabe significa “a ilha” e, por extensão, também “península árabe”. Comentários e correções são bem-vindos.
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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial. Estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabalhou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times onde trabalhou até 1988 substituindo o correspondente do jornal no Oriente Médio. Mudou para o The Independent em 1989- após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982; a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão.  
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro mais premiado do planeta. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.

Um comentário:

  1. Impressionante a determinação sanguinária sionista no avançar sobre os territórios há décadas considerado sua terra prometida. O triângulo começou a fechar a partir do Rio Eufrates , pelos EUA destruindo o Iraque e daí desarticulando o Oriente ...que horrores ainda estão para acontecer até fincarem bandeira na posse do Rio Nilo?

    Que vergonha sinto desta geração, onde o silêncio dos melhores promove,estimula animalidade...

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