sábado, 6 de agosto de 2011

Há 30 anos, nos EUA: “O dia em que o homem comum foi assassinado”


Michael Moore 

5/8/2011, Michel Moore
(Dica do Eliseu, amigo do pessoal da Vila Vudu que nos acompanha da Itália) 
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


Amigos,

Volta e meia, alguém, com menos de 30 anos, me pergunta: ”Quando começou tudo isso, os EUA despencando ladeira abaixo?”

Dizem que ouviram falar de um tempo em que os trabalhadores norte-americanos podiam sustentar a família e mandar os filhos à escola, só com o salário do pai (nos estados da Califórnia e de New York, por exemplo, o ensino era quase gratuito). Que quem quisesse salário decente, encontrava. Que as pessoas só trabalhavam cinco dias por semana, oito horas por dia, descansavam nos fins de semana e, no verão, tinham férias pagas. Que muitos empregos eram protegidos por sindicatos, de empacotadores nas lojas ao sujeito que pintava sua casa, o que significava que, por menos ‘elevado’ que fosse o seu trabalho, você tinha garantia de aposentadoria, aumentos de salário vez ou outra, seguro-saúde, e alguém que o defendia, se você fosse desrespeitado ou tratado de modo injusto.

Os mais jovens ouviram falar desse tempo mítico – mas não é mito: esse tempo existiu. E quando perguntam “Quando isso acabará?”, sempre respondo: “O que acabou, acabou há exatos 30 anos, dia 5/8/1981”.

Naquele dia, há 30 anos, a Grande Finança e a direita norte-americana decidiram “ir p’rás cabeças” de uma vez por todas e destruir os homens comuns, toda a classe média. E enriquecerem eles mesmos, só eles, a valer. 

E conseguiram.

Dia 5/8/1981, o presidente Ronald Reagan demitiu todos os empregados sindicalizados do Sindicato dos Controladores de Tráfego Aéreo [orig. Air Traffic Controllers Union, PATCO] que desobedeceram sua ordem para que voltassem ao trabalho e declarou ilegal o sindicato deles. Estavam em greve há apenas dois dias.

Foi gesto violento. Ninguém antes jamais se atrevera a tanto. E foi ainda mais violento, porque o PATCO foi um dos três únicos sindicatos que haviam apoiado a candidatura de Reagan à presidência! A decisão de Reagan disparou uma onda de choque que atingiu todos os trabalhadores nos EUA. Se fez o que fez contra sindicato que o apoiara, o que mais faria contra nós? 

Reagan tivera o apoio de Wall Street nas eleições à Casa Branca e eles, aliados aos cristãos de direita, queriam “reestruturar” os EUA e fazer recuar a maré que aumentava desde o primeiro governo do presidente Franklin D. Roosevelt – maré que visava a garantir melhores condições de vida aos trabalhadores norte-americanos da classe média, as pessoas comuns. Os ricos detestaram ser obrigados a pagar melhores salários e a garantir benefícios. Mais ainda, odiavam ter de pagar impostos. E desprezavam os sindicatos. Os cristãos de direita odiavam tudo que cheirasse a socialismo ou desse qualquer sinal de estender a mão às minorias ou às mulheres.

Reagan prometeu pôr fim a tudo aquilo. Então, quando os controladores de tráfego aéreo declararam-se em greve, ele aproveitou a ocasião. Ao demitir todos e ao tornar ilegal seu sindicato, enviou mensagem clara e violenta: acabava ali o tempo da vida decente e confortável para as pessoas comuns. Os EUA, daquele dia em diante, passavam a ser governados do seguinte modo:

* Os super-ricos ganharão mais, mais, mais, cada vez mais dinheiro, e o resto de vocês terão de satisfazer-se com as migalhas que sobrarem das mesas deles.

* Todo mundo terá de trabalhar! Mãe, pai, adolescentes, todos! O pai, que consiga um segundo emprego! Crianças, não percam a chave sobressalente! De agora em diante, pai e mãe só chegarão em casa para metê-los na cama! 

* 50 milhões de norte-americanos terão de viver sem seguro-saúde! Empresas serviços de saúde: encarreguem-se, vocês mesmas, de decidir quem querem atender e os que não serão atendidos.

* Sindicatos são a casa do demônio! Ninguém será sindicalizado! Gente comum não precisa de advogado nem de defesa! Trabalhador tem de trabalhar. Calem o bico e voltem à fábrica. Não, ninguém pode sair. O trabalho não está feito. As crianças, em casa, que preparem o próprio jantar.

* Quer estudar? Na universidade? OK. Basta assinar as promissórias, e você estará endividado pelos próximos 20 anos, preso a um banco, até ficar velho!

* Aumento? Que aumento? Volte ao trabalho e cale o bico! 

E assim foi. Mas Reagan não conseguiria, sozinho, fazer tudo que fez em 1981. Contou com uma grande ajuda:

Da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (orig. American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations – AFL-CIO [1]) 

A maior organização de sindicatos dos EUA disse aos trabalhadores que furassem os piquetes da greve dos controladores de tráfego aéreo e voltassem ao trabalho. E foi o que os empregados sindicalizados fizeram. Pilotos, comissários de bordo, encarregados de bagagens, motoristas de empilhadeiras, carregadores – todos furaram os piquetes e ajudaram a pôr fim àquela greve. E todos os sindicalizados furaram todas as greves e continuaram a encher os aviões de carreira.

Reagan e Wall Street quase nem acreditaram no que viram! Centenas de milhares de trabalhadores, apoiando a demissão de outros trabalhadores, sindicalizados como eles. Foi um Papai Noel em agosto, para as grandes empresas dos EUA.

E foi o começo do fim. Reagan e os Republicanos sabiam que se safariam – e safaram-se. Cortaram impostos dos ricos. Tornaram impossível organizar sindicatos nos locais de trabalho. Eliminaram leis de segurança no trabalho. Ignoraram leis antimonopólios e permitiram milhares de fusões entre empresas, com muitas empresas vendidas para serem fechadas. As empresas congelaram salários e ameaçaram os trabalhadores com a chantagem da transferência de empresas e empregos para o exterior, caso não aceitassem trabalhar por salários menores e sem garantias nem benefícios. E os trabalhadores aceitaram trabalhar por menores salários... E mesmo assim as empresas mudaram-se para o exterior, levando com elas os nossos empregos.

E em cada passo desse processo, a maioria dos norte-americanos também se deixou levar. Praticamente não houve nem oposição nem resistência. As “massas” não se levantaram nem defenderam seus empregos, suas casas, a escola dos filhos (consideradas das melhores do mundo). Apenas aceitaram o destino e curvaram-se.

Muitas vezes me pergunto o que teria acontecido se todos, simplesmente, tivéssemos deixado de viajar de avião, ponto final, em 1981. E se todos os sindicatos tivessem dito a Reagan “Devolva os empregos dos controladores, ou fechamos o país: ninguém entra e ninguém sai.” Sabem o que teria acontecido? A elite corporativa e Reagan, seu moleque de recado, teriam afinado.

Mas não fizemos nada disso. E assim, pedaço a pedaço, peça a peça, ao longo dos 30 anos seguintes, os que passaram pelo poder destruíram as pessoas comuns nos EUA e, em troca, desgraçaram o futuro de, no mínimo, uma geração de jovens norte-americanos. Os salários permaneceram estagnados durante 30 anos. Basta olhar as estatísticas e vê-se que todas as perdas de tudo que hoje tanta falta nos faz começaram no início de 1981 (assista: cenas de meu último filme, que ilustram isso).

Tudo começou no dia 5 de agosto, há 30 anos. Foi dos dias mais terríveis em toda a história dos EUA. E deixamos que acontecesse. Sim, eles tinham o dinheiro, a imprensa e os policiais. Mas nós éramos 200 milhões! Quem duvida de que teríamos vencido, se nós, todos os 200 milhões de enganados, ficássemos realmente furiosos e decidíssemos recuperar para nós o nosso país, nossa vida, nosso trabalho, nossos fins de semana, nosso tempo para educar e ver crescer nossos filhos?

Será que já desistimos, mesmo? O que estamos esperando? Esqueçam aqueles 20% que apóiam o Tea Party – ainda temos os outros 80%! Esse declínio, nossa queda ladeira abaixo só parará quando exigirmos que pare. E não por “abaixo-assinado” ou gorjeios pelo Twitter.

Temos de desligar a televisão e o computador e os videogames e sair às ruas (como fez o pessoal de Wisconsin). Alguns de nós têm de candidatar-se às prefeituras, ano que vem. Temos de exigir que os Democratas, ou criem vergonha e parem de viver sustentados pelo dinheiro dos bancos e grandes empresas – ou pulem fora e devolvam os postos para os quais foram eleitos para fazer o que não estão fazendo.

Quando chega, chega, ok? O sonho comum da vida das pessoas comuns nos EUA não renascerá por mágica ou milagre. O plano de Wall Street é claro e está aí à vista de todos: os EUA serão nação dividida entre os Que-têm e os Que-não-têm. Está bom, assim, prá vocês?

Vamos usar esse fim de semana para parar e pensar sobre os pequenos passos que podemos dar para virar esse jogo, com os vizinhos, no trabalho, na escola. Que melhor dia para começar que hoje, 30 anos depois?!

Fraternalmente,
[assina] Michael Moore

PS. Aqui vão alguns endereços onde todos podem se encontrar e começar:

How to Join a Union, from the AFL-CIO (O pessoal lá aprendeu a lição e afinal elegeu um bom presidente) ou UE
High School Newspaper (Você ter menos de 18 anos não significa que você nada possa fazer. Acorde!)




Nota de tradução
[1] AFL-CIO é a maior central operária dos EUA e Canadá. Formada em 1955 pela fusão da AFL (1886) com a CIO (1935). É composta de 54 federações nacionais e internacionais de sindicatos dos EUA e Canadá que juntos representam mais de 10 milhões de trabalhadores. É membro da Confederação Internacional das Organizacões Sindicais Livres. Até 2005, operou na prática como central sindical unitária, mas devido a discrepâncias internas, várias das maiores agremiações que a formavam se separaram da organização.

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