domingo, 7 de agosto de 2011

Políticas de “austeridade” ameaçam democracias na Europa

A União Europeia é uma “bolha política”

Robert Johnson


3/8/2011, Robert Johnson [1] (entrevista a Paul Jay, 
editor-chefe de The Real News Network, TRNN)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu






PAUL JAY: A crise na Europa continua. Há várias formas de “resgate”. Mas em todas se vê uma constante: tudo parece convergir para a questão de definir se os bancos serão ressarcidos, ou não. Apesar de milhares, em alguns casos centenas de milhares, de pessoas saírem às ruas em manifestações contra as políticas de “austeridade”, essas políticas continuam implantadas e há mais "austeridade" à vista. Para discutir tudo isso, entrevistamos hoje o professor Rob Johnson. (...)

Para começar, gostaria que o senhor nos dissesse de que modo o que está acontecendo na Europa atinge os norte-americanos.

JOHNSON: Atinge, por duas razões. Primeiro, por causa da turbulência do sistema financeiro nos EUA, que se pode propagar diretamente contra a frágil recuperação dos EUA e pode nos derrubar outra vez. Mais ou menos como no caso do Banco Lehman: começou como “bolha” no mercado das moradias, atingiu a Europa, a América Latina e a Ásia. Assim como crise que comece aqui chega até lá, o que aconteça lá também chega até aqui.

A segunda razão é que a Europa é reunião complexa de muitos países e culturas, alguns deles já internamente compostos de várias culturas. Essa estrutura é frágil, o próprio, como se diz, “sistema democrático” é frágil na Europa em geral. E essa complexidade continua a aumentar. Tentar empurrar a complexidade contra limites muito estritos de “austeridade” em locais como Irlanda, Portugal, Espanha, Itália, Grécia, pode levar a aumentar as, digamos, hostilidades, locais. A Europa é constituída não só de países diferentes, mas, sobretudo, de culturas diferentes.

JAY: De fato, até há pouco tempo, em termos históricos, os países europeus viviam em guerra, matando-se entre si. Essa é uma história, pode-se dizer, de séculos.

JOHNSON: Os economistas raramente analisam períodos históricos tão longos, mas os historiadores já começam a dizer que essas diferenças podem despertar novamente no médio prazo, interrompendo não só os fluxos comerciais, mas também e, sobretudo o equilíbrio do poder em todo o planeta.

JAY: Em entrevista anterior, conversamos sobre como os investidores, Wall Street e os muito ricos em geral estão usando e mais usarão no futuro as crises locais e as crises dos orçamentos nacionais, para iniciar grandes campanhas de privatização. Já se vê praticamente isso na Europa, particularmente na Grécia. De fato, é parte da “receita” que está sendo proposta para o fim da crise. O senhor acredita que acontecerá também nos EUA? 

JOHNSON: Prefiro começar com o que está acontecendo na Europa em geral. Construiu-se na Europa um sistema que se pode definir como “uma bolha política”. “Bolha política”, para mim, significa que todos negociam sob o pressuposto de que a Alemanha garante todos os negócios. A ideia dominante é que a Alemanha está mandando. Que está sólida. Que garante tudo. Todos os preços são feitos a partir da qualidade do crédito da Alemanha. E a Alemanha, porque joga dentro do sistema europeu, está fazendo como se assinasse um contrato de seguro, como empresa seguradora. Todos sabemos como são as empresas seguradoras. Enquanto só recebem pagamento pelas apólices que vendem, está tudo bem. Mas, quando os acidentes acontecem e chega a hora de pagar, elas fazem de tudo para não pagar. 

Desde o início de 2009, o que está acontecendo é que Angela Merkel já disse que não garantirá todos os pagamentos a todos os bancos da Europa. Cada empresa, cada país, que se defenda. Assim, Angela Merkel dividiu a Europa. Enquanto a Irlanda foi vista como parte do sistema europeu, assumiram riscos bancários descomunais relativamente ao seu Produto Interno Bruto. Agora, foram deixados sozinhos, obrigados a responder sozinhos pelas próprias dívidas. Como se dizia, a Irlanda seria “grande demais para falir”. De repente, passou a ser “grande demais para ser salva”. 

As garantias que se trocam na Europa não são confiáveis. E agora, de repente, surgem outra vez, visíveis, todas as linhas pontilhadas nacionais e políticas que dividem a Europa. 

Desde o final de 2009, início de 2010, sabia-se que Grécia e Portugal mais, e potencialmente também Espanha e Irlanda, estavam, todos, por um fio. Naquele momento, qualquer mínima ação de prevenção valeria uma tonelada, em matéria de cura. Mas só se toda a União Europeia trabalhasse unida, e se os alemães realmente honrassem as garantias que deram a todos; isso foi o que a Alemanha não fez.

JAY: Parte dessas garantias não dependiam só do bom coração dos alemães. As exportações alemãs estavam ganhando muitíssimo antes, graças ao modo como a Europa estava estruturada.

JOHNSON: Em termos gerais, a Europa está muito satisfatoriamente em equilíbrio, na balança comercial, com a Alemanha como país com excedentes e o resto da Europa, a periferia, como se fosse país com déficit comercial. Agora, a Alemanha, dadas as atuais circunstâncias, está reorientando seu comércio na direção da Europa Oriental e para o Extremo Oriente. E a Alemanha está crescendo muito e pode sair muito fortalecida dessa crise. Mas o sul da Europa está tendo muito trabalho, está lutando muito; a Alemanha está resistindo. 

Não se trata de lógica. Por exemplo, Wolfgang Schauble, ministro alemão das Finanças, sabe muito bem disso tudo e quer cumprir o compromisso e garantir o que prometeu garantir. Mas a política interna da Alemanha, entre os “Livre Democratas” do partido SPD e a “Democracia Cristã”, é uma luta eterna. Agora, parece até que já nem existe uma coalizão que governa o país, interessada em conservar o que reste e reconstruir aquela comunidade europeia na qual embarcaram há poucos anos. A situação mudou e, agora, pode-se dizer, em termos pouco precisos, mas claros, que eles estão mais interessados em receber o pagamento pelas garantias que deram. Mas a Alemanha não fala como quem está com a faca e o queijo na mão. Por isso tenho dito que a Europa é hoje uma “bolha política”. 

Porque a Alemanha está em condições de receber o que ganhou na aposta que fez. Não precisa “comprovar” se é ou não é parte da Europa. Isso já foi comprovado há anos. Agora se trata ou de pagar o preço ou de não pagar o preço. E a Alemanha está tentando “tirar o corpo fora”, como se não fosse parte da União Europeia.

JAY: Então, se você se coloca no lugar da Alemanha e olha à volta, para os países que os alemães estão chamando de “periferia”, e estão tentando incluir a Itália nessa periferia, pode-se dizer que as tais políticas de “austeridade” levarão a uma década, ou mais, de recessão ainda mais profunda. Mas... isso também atingirá a Alemanha, porque os países em recessão foram importantes mercados para os produtos alemães.

JOHNSON: Bem... Poderá atingir os bancos alemães, porque estenderam seus créditos a lugares que, agora, entrarão em deflação e serão arrastados ao “calote”. E poderá atingir o comércio alemão, porque foi fonte de demanda, como você sugere. Mas por outro lado, se esses países forem arrastados para “austeridade” muito forte, os bancos poderão comprar muitas empresas na bacia das almas. Em outras palavras, terão meios para comprar ilhas, empresas, o que quiserem comprar.

JAY: Queria saber, então, quem se beneficia por esses programas de “austeridade”? 

JOHNSON: Só se beneficia quem tenha dinheiro para aquisições futuras. 

JAY: Esses vão recolher os ossos que sobrarem daqueles países.

JOHNSON: Muita gente anda discutindo a causa de haver hoje um grande boom de construções na Espanha. Antigamente, você comprava uma casa de veraneio na costa da Espanha, era bom negócio. Você sabia que, em 15 anos, ganharia dinheiro, porque a peseta espanhola se desvalorizaria. Mas se você tivesse uma casa contabilizada em euros e dentro do sistema europeu, aquela casa se valorizaria; então, você não temia a depreciação. Então, houve um boom de construções. E muita gente do norte da Europa comprou casas na Espanha, certos de que todos eram, agora, parte do sistema da moeda comum. Não se compram casas na Califórnia, porque se teme a depreciação. Digo a Califórnia, porque está na zona do dólar. Essa mudança gerou um boom de propriedade imobiliária na Espanha e em outras áreas litorâneas.

JAY: Você quer dizer que houve um boom na Espanha e agora temos um crash.

JOHNSON: Agora temos um crash na Espanha. O boom das construções acabou, e as pessoas outra vez temem que, se Grécia e Portugal e Irlanda tiverem problemas, a coisa pode propagar-se. Se a Alemanha não entrar no jogo, e os franceses e os holandeses, para oferecer garantias... Todo o sistema do euro corre o risco de ruir e Itália e Espanha, como países, com moedas próprias, voltam a ser apostas de alto risco. Mas é terrivelmente complicado tomar uma moeda comum e dividi-la outra vez, desfazer o que foi feito. Por isso ainda acho que as probabilidades pendam na direção de que isso não aconteça.

JAY: Assim sendo, se se pensa em quem se beneficia com políticas muito severas de “austeridade”, são os que criam essas crises, que são oportunidade para privatizar tudo.

JOHNSON: Quando as pessoas se assustam, vendem patrimônio por preços também “assustados”, digamos assim.

JAY: E por outro lado estão os bancos, obcecados pela ideia de que têm de ser pagos... E – depois de mim, o dilúvio! – dizem: Paguem o que nos devem, que daremos algum jeito para arrancar algum dinheiro do desastre que virá amanhã. É isso? 

JOHNSON: É mais ou menos isso. Mas há outro medo, que me preocupa muito. Num plano, nos dizem que devemos considerar as agências de risco e os bancos como se fossem sábios, prudentes, como gente que entende a necessidade da disciplina etc. Por que ainda acreditamos nisso depois de 2008, é fenômeno que ultrapassa minha capacidade de entender, mas o ritual é esse. 

Ao mesmo tempo, noutro plano, nos dizem que não podemos reestruturar as dívidas. Você entende: quando uma empresa quebra, uma empresa de aviação, qualquer empresa, você reestrutura as dívidas e os antigos avais desaparecem. Na prática, é uma engenharia, é quase mecânico. Mas o que se ouve é que isso não pode ser feito no caso da Grécia, porque geraria contágio, e de dois modos.

Por um lado, porque se criaria um precedente: se se fizer para a Grécia, terá de ser feito para Portugal, Espanha, Itália e a coisa vira bola de neve, cada vez maior. 

Além disso, eles têm esses derivativos – seguros para papéis podres, os credit default swaps, são os mais conhecidos. E essas trocas de papéis podres por papéis ainda mais podres estão hoje entretecidas em todo o sistema. E ninguém sabe dizer quantos são os derivativos, porque não há lei ou regra que diga que esses seguros não podem ser maiores que o risco segurado, quer dizer, no caso da Grécia, que teriam de ser, no máximo, do tamanho da dívida da Grécia.

Por tudo isso, gente como Jean-Claude Trichet [presidente do Banco Central Europeu] não têm ideia do que acontecerá se reestruturarem a dívida da Grécia; o que estarão gerando, não só dentro da Europa, mas em todo o sistema financeiro mundial. Assim, vivemos uma situação em que o mundo é refém de algo que pode ser pequeno como Rhode Island ou grande como Nevada. Não se sabe o tamanho da “coisa”. 

O que está acontecendo é que, numa situação em que alguns bancos têm o mundo como refém, estamos dizendo: não podemos reestruturar a dívida, não há meios para reestruturar financeiramente as dívidas... Mas... OK. Se não podemos reestruturar financeiramente as dívidas da Grécia, nesse caso... temos de apertar ainda mais o garrote vil no pescoço, digamos, de Portugal!

É quando surge a questão: será que essas democracias europeias aguentarão tamanha quantidade de ‘austeridade’? Ou o tecido político dessas democracias se romperá? E se se romper? E se aquelas democracias chegarem, como se diz na engenharia, ao limite da elasticidade do material? Você puxa uma vez, o material vai e volta ao estado inicial. Se você forçar além de um limite, o material deforma-se e não volta ao estado inicial. A verdade é que as democracias de Portugal, Grécia e Espanha, e potencialmente também a Irlanda, já foram deformadas, porque foram excessivamente forçadas pelas dificuldades econômicas.

Sempre, quando se acumularam dívidas demais, foi possível reestruturar as dívidas. As reestruturações sempre levaram a muitas quebras. A literatura religiosa tem o conceito de “jubileu”, um ano, a cada cinco, para corrigir erros, purgar pecados, acertar contas e voltar a merecer o perdão de Deus.

JAY: E a Grécia deixou de ser ditadura há pouco tempo [2].

JOHNSON: Exatamente.

JAY: E em termos de deformar a democracia, se, no sentido mais estrito, a Alemanha tiver interesse em rompeu a parceria europeia, há, como motivo de preocupação, claro, as raízes históricas do nacionalismo alemão extremado. O senhor acha que esses excessos das políticas de "austeridade"... O senhor vê algum risco de estarmos assistindo ao recomeço do que o mundo já viu acontecer no início do século 20? 

JOHNSON: Bem... Na crise bancária de 1931, que começou na Áustria e na Alemanha, havia muitas coisas que qualquer especialista em finanças de bom senso saberia fazer para impedir consequências mais graves. Em termos financeiros sistêmicos, haveria o que fazer... Mas a política falhou. A política não produziu o resultado que se esperava que produzisse. 

O resultado que a política produziu enfureceu as pessoas a ponto de elas deixarem de acreditar no governo. O governo tornou-se disfuncional. A confiança continuou a diminuir. Você sabe: o sistema degenerou; e o resultado foi uma guerra mundial. O risco hoje tem essa magnitude. As apostas são altíssimas. Há risco real de, no longo prazo, alguma coisa que poderia ter sido resolvida em 2010 tornar-se gravemente disfuncional. 

Naquele momento, quando digo que alguma coisa poderia ter sido resolvida, quero dizer que alguém teria de pagar alguma coisa no esquema geral mundial. Mas seria então muito menos do que teremos de pagar mesmo hoje. Contudo, em 2010, a política não teve meios para obrigar quem tivesse de pagar, a pagar. Os bancos já eram desproporcionalmente poderosos e disseram: mesmo que as perdas apareçam nos nossos balanços, nós não pagaremos.

JAY: Hoje, em vez de os EUA imporem seu peso para empurrar para outra direção, o governo Obama e todo o Congresso que temos continuam a insistir nesse mesmo caminho.

JOHNSON: É. Somos hoje estruturalmente reverentes ao setor financeiro. Como diz Dick Durbin, senador de Illinois, “os bancos ocuparam nosso lugar”. [Fim da entrevista]
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Notas dos tradutores

[1] Robert Johnson é diretor executivo do Institute for New Economic Thinking (INET) e pesquisador sênior e diretor do Projeto Finança Global do Franklin and Eleanor Roosevelt Institute, em NY. Johnson é investidor e consultor de investimentos para assuntos de estratégia de portfólio. Trabalhou recentemente com a Comissão de Especialistas em Reforma Monetária Internacional da ONU, na equipe de Joseph Stiglitz. Johnson foi Diretor Gerente do Soros Fund Management, onde gerenciou um portfólio de moeda, bônus e igualdade global, especializado em mercados emergentes. Antes, serviu como Economista Chefe da Comissão de Bancos e Economista Chefe da Comissão de Orçamento do Senado dos EUA. Foi produtor executivo do documentário Taxi to the Dark Side, dirigido por Alex Gibney (Oscar de documentário de 2008).

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