sábado, 6 de agosto de 2011

Um roubo de 16 trilhões de dólares (US)

Atílio A. Borón

por Atilio A. Borón

A atenção da opinião pública internacional está centrada no acordo pírrico firmado entre Barack Obama e o Congresso pelo qual o presidente compromete-se a aplicar um duro programa de ajuste fiscal, centrado no corte de gastos sociais (saúde. educação. alimentação) e infraestrutura de 2,5 trilhões de dólares, mas preservando, como exige o Tea Party, o nível atual de despesa militar e sua eventual expansão. Em troca disto a Casa Branca recebeu a autorização de elevar o endividamento dos Estados Unidos até 16.4 trilhões de dólares, número superior nuns dois  trilhões de dólares o PIB desse país. Com isto espera-se – confiando na “mágica dos mercados” – superar a crise da dívida pública e reativar a languidescente economia norte-americana.

Esta receita já foi implementada a ferro e fogo na América Latina e não funcionou, nem tão pouco na convulsionada Europa destes dias. Com este acordo a única coisa certa será o agravamento da crise e, por isso, o agravamento da belicosidade norte-americana no cenário mundial.

“Socialismo para os ricos, mercado para os pobres”

O debate da possível inadimplência dos EUA eclipsou completamente um escândalo financeiro de proporções inéditas.

Em 21 de Julho próximo passado soube-se do resultado da auditoria integral realizada pelo Gabinete Governamental de Prestação de Contas (Government Accountability Office. GAO) à Reserva Federal (Fed), o banco central dos EUA. A primeira que se pratica à referida instituição desde que foi criada em 1913.

Os resultados são espantosos: num prazo de pouco mais de dois anos e meio, entre 1 de Dezembro de 2007 e 21 de Julho de 2010, o Fed concedeu empréstimos secretos grandes corporações e empresas do setor financeiro no valor de 16 trilhões (16 x 10 12 ) de dólares, um número maior que o PIB dos Estados Unidos, o qual no ano de 2010 foi de US$14,5 trilhões e mais elevado que a soma dos orçamentos do governo federal durante os últimos quatro anos.

Não só isto: a auditoria revelou também que 659 milhões de dólares foram entregues a algumas das instituições financeiras beneficiadas arbitrariamente por este programa para que administrassem o multimilionário salvamento de bancos e corporações disposto como mecanismo de “saída” da nova crise geral do capitalismo.

Desse gigantesco total cerca de 3 trilhões foram destinados a socorrer grandes empresas e entidades financeiras na Europa e na Ásia. O resto foi destinado ao resgate de corporações estadunidenses, encabeçadas pelo Citibank, o Morgan Stanley, o Merrill Lynch e o Bank of America, dentre as mais importantes. Tudo isso enquanto a crise aprofundava até níveis desconhecidos a desigualdade econômica dentro da população estadunidense ao mesmo tempo em que afundava setores sociais crescentes na pobreza e na vulnerabilidade social.

Naturalmente. esta informação apenas mereceu um espaço completamente marginal na imprensa financeira. tanto na internacional como na norte-americana. ou nos grandes meios de comunicação dos Estados Unidos. São notícias que, como recorda Noam Chomksy, não têm porque ser conhecidas do grande público.

As assombrosas revelações deste relatório deveriam dar lugar a uma discussão, sobre vários temas de grande importância.

1. A extremamente desigual distribuição dos esforços requeridos para enfrentar a crise. Até agora aqueles foram trazidos pelos trabalhadores. ao passo que as grandes fortunas pessoais ou corporativas, assim como os rendimentos fenomenais dos mais ricos, foram beneficiados com reduções de impostos e resgates multimilionários dispostos por George W. Bush e ratificados por Barack Obama no acordo recente.

2. Sobre os inexistentes – ou extremamente fracos e ineficazes – mecanismos de auditoria e controle democrático sobre as políticas e decisões de uma instituição crucial para a economia norte-americana e o bem-estar da sua população como o Fed.

3. Sobre a duvidosa compatibilidade existente entre uma ordem que se autoproclama democrática e o estatuto jurídico e institucional do Fed como entidade autônoma que não tem a obrigação de prestar contas perante nenhuma instância de controle democrático.

Em relação a este último o Fed manifestou sua predisposição para “considerar muito seriamente” as recomendações do GAO, mas por não ser uma instituição governamental não pode ser forçado a aceitá-las. Apesar do seu caráter privado o Governador (Chairman) do Fed e os sete membros da sua direção são designados pelo Presidente dos Estados Unidos e sujeitos à sua confirmação posterior pelo Senado. Mas ao contrário do que pensa a esmagadora maioria da população norte-americana, o Fed não é uma agência do governo federal e sim uma corporação privada.

Em termos políticos o Fed é o partido do capital financeiro.

Sua autonomia é tão grande que não se sairia um milímetro da legalidade se as suas autoridades decidissem ignorar as recomendações do GAO ou rebelar-se abertamente contra elas. Para o Fed. não existe a prestação democrática de contas perante a comunidade e por ser uma entidade de direito privado não tem porque acatar nem sequer o estabelecido na Lei de Liberdade Informação, cuja jurisdição se estende só às instituições públicas.

Situações aberrantes existem sim: um número equivalente ao total da dívida pública estadunidense que pôs os EUA à beira da inadimplência foi desembolsado em resgates fraudulentos, secretos e muito benéficos para os beneficiados e lesivos para o contribuinte, com cujo dinheiro um banco central “independente” como o Fed financiou toda esta operação.

Cabe perguntar: independente de quem?

Conspiração de silêncio?

O escândalo revelado pela auditoria quase não teve nenhuma repercussão nos Estados Unidos.

O governador do Fed, Ben Bernanke, fez-se de desentendido e disse que no momento em que se temia uma inadimplência desse país o importante era resguardar a credibilidade do Fed e do sistema monetário estadunidense.

Apesar de o GAO ser um organismo de apoio aos trabalhos do Congresso as reações de deputados e senadores perante a divulgação do relatório foram o mais absoluto e imoral silêncio.

Até onde pudemos saber, uma das pouquíssimas vozes dissonantes foi a do senador Bernie Sanders. do estado de Vermont. Sanders é uma avis rara não só no Congresso como na política estadunidense: é um político que se declara socialista e que foi eleito como candidato independente em aliança com o Partido Democrata. única maneira de ultrapassar o asfixiante bipartidarismo imperante nos Estados Unidos. Eleito senador em 2007 com 65% dos votos, um aluvião eleitoral muito pouco frequente na política desse país, foi apoiado por diversos movimentos sociais e pequenas organizações políticas de Vermont. Sanders reagiu duramente quando o relatório foi conhecido.
Transcrevemos alguns dos parágrafos, mas destacados da declaração emitida pelo seu gabinete de imprensa, que foi praticamente ignorado por quase todos os media dos Estados Unidos. Diz o seguinte:

21 de Julho de 2011.

“A primeira auditoria integral da Reserva Federal descobriu novos pormenores assombrosos acerca de como os Estados Unidos forneceram a bagatela de 16 trilhões de dólares (US$16.000.000.000.000,00) em empréstimos secretos para resgatar bancos e empresas estadunidenses e estrangeiras durante a pior crise econômica desde a Grande Depressão”.

Uma emenda proposta pelo senador Bernie Sanders à lei de reforma da Wall Street – aprovada há exatamente um ano atrás esta semana – havia ordenado ao Gabinete Governamental de Prestação de Contas (Government Accountability Office) efetuar esse exame.

“Como resultado desta auditoria agora sabemos que a Reserva Federal forneceu mais de 16 trilhões de dólares em assistência financeira total a algumas das maiores corporações e instituições financeiras nos Estados Unidos e no resto do mundo”, disse Sanders.

“Isto é um caso claríssimo de socialismo para os ricos e individualismo nu tipo 'salve-se quem puder' para os demais”.

Esclarecimento: o Government Accountability Office (GAO) é uma agência independente e não partidária que trabalha para o Congresso dos Estados Unidos. A missão do GAO é investigar a forma com que o governo federal dispõe os dólares dos contribuintes. O chefe do GAO é Controlador Geral dos Estados Unidos e é nomeado por um período de 15 anos pelo presidente a partir de uma lista de candidatos elaborada pelo Congresso. O chefe atual do GAO é Gene L. Dodaro. o qual fora nomeado pelo presidente Barack Obama em Setembro de 2010 e confirmado no seu cargo em Dezembro desse mesmo ano ao ser aprovado no seu posto pelo Senado. (Nota de A. Boron)

Dentre outras coisas a auditoria estabeleceu que a Reserva Federal “carece de um sistema suficientemente exaustivo para tratar casos de conflitos de interesse. apesar de que existem sérios riscos de abusos neste sentido”. De fato, segundo esta auditoria, “a Reserva Federal emitiu dispensas de conflito de interesse em favor de empregados e empreiteiros privados a fim de que pudessem manter seus investimentos nas mesmas corporações e instituições financeiras que recebiam empréstimos de emergência”.

“Por exemplo; o administrador-executivo do JP Morgan Chase exercia funções na Direção da Reserva Federal de Nova York enquanto o seu banco recebia mais de 390 bilhões de dólares de ajuda financeira da parte da Reserva Federal. Além disso, o JP Morgan Chase atuava como um dos bancos de compensação para os programas de empréstimos de emergência do Fed”.

“Outra descoberta perturbadora do GAO é a que menciona que em 19 de Setembro de 2008 o senhor William Dudley, Presidente da Reserva Federal de Nova York, recebeu uma dispensa que lhe permitia conservar seus investimentos na AIG (American International Group. líder mundial no campo dos seguros) e GE (General Electric) enquanto estas companhias recebiam fundos de resgate. Uma razão pela qual o Fed não obrigou Dudley a vender as suas ações. Segundo a auditoria, foi porque tal ação poderia haver criado a aparência de um conflito de interesses”.

“A investigação também revelou que o Fed terceirizava a empreiteiros privados como JP Morgan Chase. Morgan Stanley e Wells Fargo a maioria dos seus programas de empréstimos de emergência. Estas mesmas firmas também recebiam bilhões de dólares do Fed por empréstimos concedidos a taxas de juro próximas do zero”.

Os principais beneficiários destes empréstimos – concedidos entre 1 de Dezembro de 2007 e 21 de Julho de 2010 – são os seguintes:

Citigroup: $2.5 milhões de milhões ($2.500.000.000.000)
Morgan Stanley: $2.04 milhões de milhões ($2.040.000.000.000)
Merrill Lynch: $1.949 milhões de milhões ($1.949.000.000.000)
Bank of America: $1.344 milhões de milhões ($1.344.000.000.000)
Barclays PLC (Reino Unidos): $868 mil milhões ($868.000.000.000)
Bear Sterns: $853 mil milhões ($853.000.000.000)
Goldman Sachs: $814 mil milhões ($814.000.000.000)
Royal Bank of Scotland (UK): $541 mil milhões ($541.000.000.000)
JP Morgan Chase: $391 mil milhões ($391.000.000.000)
Deutsche Bank (Germany): $354 mil milhões ($354.000.000.000)
UBS (Suíça): $287 mil milhões ($287.000.000.000)
Credit Suisse (Suíça): $262 mil milhões ($262.000.000.000)
Lehman Brothers: $183 mil milhões ($183.000.000.000)
Bank of Scotland (Reino Unido): $181 mil milhões ($181.000.000.000)
BNP Paribas (França): $175 mil milhões ($175.000.000.000)
Wells Fargo & Co. $159 mil milhões ($159.000.000.000)
Dexia SA (Bélgica) $159 mil milhões ($159.000.000.000)
Wachovia Corporation $142 mil milhões ($142.000.000.000)
Dresdner Bank AG (Alemanha) $135 mil milhões ($135.000.000.000)
Societé Generale SA (França) $124 mil milhões ($124.000.000.000)
Todos os demais: $2,6 milhões de milhões ($ 2.639.000.000.000)

Total: $16,115 trilhões ($ 16.115.000.000.000)

Nota da redecastorphoto: em português, o numeral “trilhôes” é a tradução correta de “billones” em espanhol.

O artigo original, em espanhol, encontra-se em: Uma estafa de 16 billones de dólares 

Esta tradução foi extraída de: Resistir

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