domingo, 19 de abril de 2015

Um Iêmen Revolucionário


Quatro anos depois da Revolução Iemenita, quais
as chances de outro movimento democrático?


16/4/2015, [*] Bilal Zenab AhmedJacobin Magazine
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Dezembro de 2011, Marcha no Iêmen
(shehabart1 / Flickr)
Semana passada, recebi mensagem perturbadora de um amigo no Iêmen:

A situação é desesperada – disse ele. – Os bombardeios continuarão por, no mínimo, outros seis meses. Vão faltar itens básicos. Meus filhos estão assustados e eu ainda não sei o que fazer.

Mensagens como essa têm sido frequentes, assim como a correspondente ira. Como é possível que, em apenas cinco anos, tenhamos ido de um impressionante movimento revolucionário com base ampla na sociedade iemenita, para os jatos sauditas a bombardearem grandes áreas do país, enquanto os houthis (“houthis” é o modo como os sauditas chamam o movimento Ansarullah” [1]) consolidam-se no poder?

Por causa da posição marginal do Iêmen – é o país mais pobre de todo o mundo árabe –, há agora poucos especialistas confiáveis, que falem inglês, no país. Depois do declínio dos governos revolucionários durante a Guerra Fria, já praticamente não havia qualquer interesse geoestratégico que justificasse a tensão ocidental.

Resultado disso, há hoje poucos especialistas não militares com suficiente conhecimento sobre o Iêmen para que se possa levar a sério o que dizem.

A maioria deles mal têm tempo para escrever, poucas linhas que sejam, sobre o que está acontecendo. Contatos com editores e jornalistas no Iêmen acontecem, quase sempre, nos seguintes termos:

PERGUNTA: O que você pode nos dizer sobre os houthis/ Ansarullah?

RESPOSTA: Os houthis/Ansarullah são uma aliança de militantes tribais com base em Sa’ada, um governorado no norte do Iêmen. Os analistas nos veículos dominantes só fazem repetir que não passam de agentes do Irã. Mas a história é mais complicada.

Muita gente acredita que o deposto presidente Ali Abdullah Saleh sentiu-se ameaçado pelo vasto apoio religioso e tribal dado a Hussein Badreddin al-Houthi, o líder da organização “Juventude Crente” (JC), que havia antes dos houthis/Ansarullah e da qual o movimento dos houthis/Ansarullah brotou, a JC começou a operar no início dos anos 1990s, preocupada, sobretudo, com projetos educacionais e culturais para fazer reviver o xiismo zaidista.

Mas Saleh temia que os houthis/Ansarullah viessem a declarar al-Houthi um novo Imã xiita zaidista e que ele passasse a comandar uma revolução tribal que começaria no norte do Iêmen. Dia 18/6/2004, a organização “Jovens na Grande Mesquita de Sana’a” organizaram manifestações, em repúdio à invasão do Iraque pelos EUA e à repressão, por Israel, contra a Intifada de Al-Aqsa. Aquelas manifestações foram parte de uma onda muito maior de protesto dos iemenitas.

Em resposta, as forças de Saleh atacaram. Mataram grande número de seguidores de al-Houthi, ofereceram um prêmio a quem o capturasse e deflagraram amplas operações de combate no norte do Iêmen.

Mas a estratégia saiu-lhes pela culatra. Al-Houthi foi assassinado em setembro de 2004, e seus seguidores organizaram-se em torno dos irmãos dele. O movimento rapidamente se tornou uma insurgência armada, ativa num prolongado conflito, que o Departamento de Estado dos EUA, em 2010, chamou de A Guerra de Sa’ada. Adiante, participaria no que se tornou conhecido como a Revolução Iemenita de 2011 – que aconteceu e cresceu no bojo do que se chama “Primavera Árabe”.

Abdrabbuh Mansour Hadi
“Os houthis” tomaram o poder como um dos resultados do fracasso do governo pós-insurreição que EUA e Arábia Saudita organizaram em torno do ex-vice-presidente, Abdrabbuh Mansour Hadi. O governo de Hadi arrastava com ele vários problemas: não tinha qualquer legitimidade democrática e não dava sinal de qualquer interesse em atender as demandas do levante. Foi convocada uma Conferência para Diálogo Nacional [orig. National Dialogue Conference   (NDC)],  para construir um adequado contexto de democracia. Os houthis / Ansarullah afirmam que o que fazem hoje visa a pôr em prática o que ficou decidido naquela NDC, com o objetivo de constituir um novo governo.

PERGUNTA: Mas o Irã apoia os houthis/ Ansarullah?

RESPOSTA: Não é assim tão simples. Parece que os houthis/ Ansarullah expandiram seus laços com o Irã. Mas tudo sugere que isso só tenha acontecido muito recentemente. Esses laços absolutamente nada têm a ver com o sucesso dos houthis/ Ansarullah no processo de conquistar o controle sobre grande parte do país, que é resultado de uma bizarra aliança com Saleh, que deu aos houthis/ Ansarullah acesso aos recursos militares e de aliados do antigo presidente. Circula também [do New York Times para o Haaretz] o mito de que os houthis/ Ansarullah seriam um “Hezbollah iemenita”. É “notícia” inventada; é simplesmente mentira.

O que se sabe é que há muito tempo Saleh dizia aos EUA que o Irã estaria ajudando os houthis/ Ansarullah, mas os diplomatas jamais acreditaram nele. Telegramas diplomáticos distribuídos por WikiLeaks provam isso. Um dos telegramas, da Embaixada de EUA-Canadá em Sana’a, com data de 9/12/2009, diz:

Ao contrário do que diz o Governo da República do Iêmen (GRI), que o Irã estaria armando os houthis, a maioria dos analistas informam que os houthis obtêm suas armas no mercado negro iemenita e, até, dos militares do próprio Governo da República do Iêmen.

Até hoje os houthis/Ansarullah obtêm muitas de suas armas dessas fontes, independente de qualquer possível apoio que recebam do Irã. A mais brutal ironia é que praticamente todas as armas que estão hoje em mãos dos houthis/Ansarullah foram fabricadas na Europa e nos EUA.

Nada impede que o Irã esteja realmente apoiando os houthis/Ansarullah. Talvez esteja. Mas os fatores que realmente permitiram que se constituísse o impressionante arsenal com que eles hoje contam foi a proliferação de armas, veículos, munição e equipamentos militares de todo tipo, de fabricação euro-norte-americana, em todos os mercados negros de todo o Oriente Médio; além, também, claro, de vendas oficiais dos mesmos equipamentos, feitas ao exército iemenita. De fato, ainda que o Irã esteja ajudando o grupo, o que não é fato confirmado, o mais provável é que, para fazê-lo, os “ajudadores” explorem as mesmas vias e redes de contrabando pré-existentes.

PERGUNTA: E quais os interesses dos EUA no país?

RESPOSTA: Os EUA têm algum interesse “de grupo” em mostrar que combatem a al-Qaeda na Península Árabe [orig. al-Qaida in the Arabian Peninsula (AQAP), principalmente porque o grupo opera em áreas próximas à Arábia Saudita. A AQAP foi formada no Iêmen em janeiro de 2009, depois que a al-Qaeda na Arábia Saudita [orig. al-Qaida in the Saudi Arabia (AQAS)] foi efetivamente expulsa para o outro lado da fronteira depois de vários ataques.

AQAS fundiu-se com a al-Qaeda no Iêmen. Desde o nascimento da AQAP, e especialmente depois da prisão de um de seus principais especialistas em explosivos Ibrahim Hassan Tali al-Asiri, agentes norte-americanos e britânicos de contraterrorismo focaram-se em destruir o grupo, servindo-se de vários recursos, inclusive drones armados. Para isso, deixaram de lado qualquer atenção a outros terríveis problemas relacionados à segurança humana no Iêmen, como a desesperadora falta de água.

O Iêmen enfrenta catastrófica falta d'água
A única verdade indiscutível é que o Iêmen está sob ataque. Sem qualquer visão por trás desses ataques, parece óbvio que o país continuará a deteriorar-se. Quanto às potências estrangeiras, ou mudam sua abordagem ou acabarão expulsas de lá por algum movimento de libertação nacional. A expulsão seria muito prejudicial aos interesses dos EUA, no longo prazo. Diz-se que se emprega hoje a mais terrível violência, porque se trataria de impedir um arranjo revolucionário que se pode espalhar para todas as monarquias do Golfo e destruir toda a ordem regional.

Os especialistas não saem da mídia, e nos intervalos só trocam de terno, para a próxima entrevista. As perguntas, também sempre repetidas, só dizem respeito, infalivelmente, a supostas “rixas” entre sunitas e xiitas. Ninguém fala de disputa mais ampla entre Arábia Saudita e Irã. Os especialistas mal conseguem disfarçar o mal-estar e lá ficam, sempre repetindo variações sobre o seguinte:

Temos de lembrar que o Iêmen é país onde, historicamente, nenhum dos grupos religiosos jamais mostrou antagonismo declarado contra o outro. Verdade é que a Arábia Saudita apoiou um Imanato xiita zaidista durante a Guerra Civil no Norte do Iêmen. Saleh ajudou a disseminar o wahabismo sunita.

O sectarismo é fenômeno recente, resultado de três fatores:

1) é uma das consequências regionais das ações dos EUA no Iraque;

2) é um dos efeitos das doutrinas, disseminadas pelos sauditas, de uma suposta supremacia do sunismo; e

3) é efeito da tendência, que se constata no neoliberalismo, de aprofundar as identificações sectárias e todas as linhas de divisão. O sectarismo é uma combinação de intervenção militar com intensos processos de interferências culturais mútuas, não só no Iêmen, mas em toda a região mais amplamente.

Não significa que o Iêmen fosse, antes, um paraíso sem sectarismos. Significa, só, que a tensão sectária no país, como se a vê hoje, é efeito de fatores bem tangíveis.

O Iêmen nunca foi um paraíso sem sectarismos
A identificação sectária acabou por implicar acesso garantido à segurança, a bens e serviços, nos períodos de instabilidade doméstica e escassez de recursos. As tensões também sofreram a influência da violência em curso em outras regiões (na Síria, por exemplo).

Nada disso foi alguma espécie de fatalidade ou seria inevitável. O que se vê hoje no Iêmen é o resultado de decisões políticas tomadas pelos muitos atores presentes no Oriente Médio.

E vai e vem, entrevista após entrevista, especialista após especialista, o nonsense continua, e ninguém jamais expõe o nonsense de todo aquele palavreado. A maior dificuldade de ser especialista em Iêmen é que se vive sob pressão constante, obrigado(a) a reprimir o desejo de berrar palavrões e mais palavrões, pela TV e na universidade, ao vivo.

Aí está a razão pela qual a empresa-mídia ocidental só trata, quase exclusivamente, de sectarismos e guerras à distância, como se bastassem para explicar todo o conflito. O sectarismo, bem claramente, é apresentado como resultado “natural” da “natural” selvageria que reina em todo o Oriente Médio. Falar sempre sobre o sectarismo permite que nenhum especialista jamais precise falar diretamente sobre os resultados das políticas de EUA–Arábia Saudita. Esse é movimento–truque intencional: os fracassos dessas políticas, se fossem adequadamente expostos e discutidos, serviriam como útil ferramenta a favor do movimento antiguerra nos EUA.

A ideia de fazer “guerra à distância”, ou “guerra por procuração”, também contribui para esvaziar ainda mais qualquer potencial oposição interna, nos EUA: afinal, a Arábia Saudita está(ria) respondendo à agressão iraniana. A ninguém, portanto, ocorrerá a ideia de que os EUA estão fazendo guerra não provocada contra país soberano, para alcançar objetivos essencial e profundamente reacionários. O mesmo discurso também apaga o fato de que, em todos os sentidos e para as mais sórdidas finalidades, trata-se de uma invasão saudita–norte-americana: a Arábia Saudita defende os próprios interesses, ao mesmo tempo em que oferece o próprio exército e os próprios aviões e armas como projeção do poder dos EUA.

Abdel Fattah al-Sisi, ditador do Egito e Rei Salman da Arabia Saudita em guerra de agressão contra o Iêmen
Já é óbvio que autocratas regionais relativamente novos, como o rei Salman da Arábia Saudita e o general Abdel Fattah al-Sisi do Egito estão usando a guerra no Iêmen para legitimar os respectivos governos. Defender o “governo legítimo do Iêmen” faz esses ditadores parecerem heróis da Primavera Árabe, não os responsáveis pelo massacre de movimentos democráticos. Sisi e Salman viraram “líderes” de vários outros governantes em situação como a deles. Assim surgiu uma coalizão regional de sete monarquias e duas ditaduras militares, todas empenhadas em defender Hadi, cuja principal credencial é ter sido eleito em 2012 numa eleição em que foi o único candidato.

O silêncio histórico da esquerda ocidental sobre a situação claramente de opressão em que vive o povo do Iêmen é, para começar, inadmissível. Afinal, o absurdo total da “ordem” no Oriente Médio aparece perfeitamente à vista no Iêmen, e já faz tempo. Faltam olhares críticos já há anos, que tentem dar conta da total irracionalidade do que se passa naquele país.

Além de questões que surgiram depois de iniciados os ataques, há também questões que já vêm de antes. Por que os países que compõem o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) foram autorizados a assumir papel tão importante na mediação de uma situação revolucionária que claramente os ameaçava diretamente? Por que o mundo sabe tão pouco sobre a República Popular Democrática do Iêmen, que pode ter sido apenas superficialmente marxista, mas com certeza nunca foi mais que a Coreia do Norte? E por aí vai.

O silêncio e a falta de conhecimento especializado confiável tornam-se mais fáceis de compreender, se reconhecemos um dos traços da questão: bem pouca gente sabe sobre o Iêmen ou, que fosse, procura aprender sobre o país. Interessa a países como a Arábia Saudita que assim seja e assim permaneça, o que é um dos motivos pelos quais houve muito menos noticiário sobre a Revolução Iemenita, que sobre os levantes no Egito ou na Tunísia.

E isso apesar de a coalizão revolucionária ser mais forte no Iêmen, como se viu na organização notável da Conferência para Diálogo Nacional, onde se reuniram Saleh, Hadi, os houthis/Ansarullah, a coalizão dos separatistas do sul conhecida como al-Hirak, o grupo islamista de oposição al-Islah, vários líderes da sociedade civil e outras pessoas. Historicamente, o país sempre foi vítima de um isolamento “midiático” e discursivo forçado, o que explica em parte a relativa marginalização do Iêmen nos estudos do Oriente Médio.

John Earnest
John Earnest, secretário de imprensa da Casa Branca defendeu recentemente a política dos EUA no Iêmen, no programa Morning Joe da rede MSNBC, nos seguintes termos:

Não de deve aferir a política dos EUA pelo sucesso ou estabilidade do governo do Iêmen; essa é empreitada à parte. O objetivo da política dos EUA para o Iêmen nunca foi construir lá uma democracia jeffersoniana. O objetivo da política dos EUA para o Iêmen é assegurar que o Iêmen não venha a ser paraíso seguro que extremistas possam usar para atacar o ocidente e atacar os EUA.

Como se responde a tal declaração? Pode-se denunciar a irracionalidade dos juízos, mas é impossível não reconhecer que Earnest não mente, ao descrever nesses termos a política dos EUA. Washington só presta atenção ao Iêmen por causa da Al-Qaeda na Península Arábica,AQAP. Pouco importa aos EUA o que aconteça por lá, desde que os EUA e seus aliados tenham carta branca para matar “terroristas” e impedir que uma instabilidade revolucionária espalhe-se até a Arábia Saudita e o resto das monarquias do Golfo.

A deprimente realidade é que Earnest e Obama enfrentam tão pouca oposição doméstica pelo fato de absolutamente não darem nenhuma importância ao destino dos iemenitas, que podem dizer coisas como “nunca pensamos em construir lá uma democracia jeffersoniana” e o Iêmen nunca foi “uma ilha de estabilidade”.

Aí está o resultado direto do fato de que os norte-americanos não se sentem no dever de pensar no povo do Iêmen. Por isso é tão fácil para os militares expandir pelo mundo a violência nua do poderio militar. Resta esperar que o movimento antiguerra nos EUA consiga enfrentar e derrotar essa narrativa, e obter apoio para o direito de os iemenitas decidirem sobre o próprio destino, seja nas instituições do Estado seja na vida pública.

Parece que, com a intervenção estrangeira cada dia mais violenta, e a situação política doméstica cada dia mais deteriorada, os iemenitas talvez sejam forçados a formar uma nova coalizão revolucionária com a missão, em primeiro lugar, de expulsar os exércitos invasores e ocupantes. Isso feito, o Iêmen precisará de um governo de reconciliação nacional, que implemente os protocolos da Conferência para Diálogo Nacional, com o objetivo de atender as demandas éticas e materiais do levante de 2011.

Khaled Bahah, Presidente do Iêmen
É difícil predizer o que acontece a seguir e como os houthis/Ansarullah agirão como força revolucionária no Iêmen ao longo da próxima década.

Desde que deixou o país, Saleh buscou refúgio no CCG, o que pode não passar de mais um artifício noutra luta pelo poder. É possível que, no final das contas, Khaled Bahah, ex-embaixador e recentemente indicado Primeiro-Ministro, consiga romper o impasse. A melhor coisa sobre o Iêmen é que o país parece ter capacidade infinita para surpreender observadores. Em outras palavras, temos de fazer o que pudermos pela paz, nos agarrar à esperança de paz e esperar para ver o que acontece.

______________________________________________________________

Nota dos tradutores
[1] Ver sobre isso, 10/4/2015, Sua Eminência Sayyed Hassan Nasrallah, Secretário-Geral do Hezbollah (Líbano) – Discurso de 27/3/2015, vídeo legendado em francês e transcrição traduzida.
_______________________________________________________________

[*] Bilal Zenab Ahmed é estudante de graduação na SOAS (School of Oriental and African Studies), University of London. É editor associado da Revista Souciant e articulista frequente da revista eletrônica Jacobin.

Um comentário:

  1. Mas existe um outro movimento no Iemen, o Mártires do Sul, Resistencia Iemenita sulista, que pretendem que volte a ser como antes da unificação.República do Iemen do Sul,que era com tendencias socialistas e alinhado com a URSS e China.Mas você não os menciona no seu artigo.Por que? Essa resistencia Martires do Sul luta contra os Houthis e também contra a Al Qaeda que está dominando na região de Aden,sul do Iemen.

    ResponderExcluir

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.