quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sobre guerra e xadrez

15/4/2015, [*] Rostislav Ishchenko – The Vineyard of the Saker
Traduzido do russo p/ inglês: Evgenia
Traduzido do inglês pelo pessoal da Vila Vudu


The Saker
Xadrez é jogo muito antigo, que reproduz ações militares com acuidade invejável. O desenvolvimento da tecnologia da computação permitiu que se criassem coloridos jogos de estratégia, de computador, nos melhores dos quais se alcança a vitória equilibrando vários parâmetros (incluindo economia, recursos naturais e outros). Mas nenhum desses jogos chega sequer perto de reproduzir a situação estratégica real, no nível em que é reproduzida num um simples jogo de xadrez.

Até o desenvolvimento da teoria do xadrez é idêntico ao desenvolvimento do pensamento militar. As partidas jogadas há 200, 300 anos por grandes jogadores de xadrez e campeões afamados impressionam muitas vezes pela simplicidade; o que eles descobriram é hoje já muito bem sabido por qualquer enxadrista principiante. Assim também, as descobertas táticas e estratégicas de Miltiades e Epaminondas; Ciro, O Grande; Alexandre, O Grande; Aníbal e Cesar, que, hoje, são bem conhecidas de qualquer aluno, não só de academia militar, mas também do Colégio Militar Suvorov.

Nem por isso esses conhecimentos resultam em número maior de grandes líderes militares ou de grandes jogadores de xadrez. Já se percebeu há muito tempo, e não fomos nós que descobrimos, que aderência estrita às regras do jogo, seja no xadrez seja nas atividades militares muitas vezes resulta em vitória sobre oponente mais fraco, mas leva apenas ao empate (o famoso impasse posicional da 1ª Guerra, ou as infindáveis manobras sem sentido dos exércitos europeus no século 18) em confronto contra oponente que tenha recursos comparáveis e treinamento teórico assemelhado.

Vitórias realmente grandes, vitórias nas quais forças mais fracas ou iguais esmagam o inimigo, só são possíveis se se quebram regras. Nesse sentido, o xadrez e a teoria militar podem ser descritos numa mesma e única frase: “Quem não assume riscos não bebe Champanhe”. Maior o risco, mais completa a vitória; mas se acontece de o inimigo ser mais talentoso (ou ter, simplesmente, mais sorte), nesse caso a derrota do ousado-temerário será devastadora.

Para vencer, é indispensável abrir a posição no momento certo e então se manter sempre à frente do oponente, tomando mais rapidamente decisões mais consistentes. Um grande jogador de xadrez, como um grande comandante militar, pode encontrar o momento certo quando o empate posicional previsto à frente tem de ser convertido num não-sabido que não pode ser calculado com precisão. Confiança nos primeiros três passos, rapidez e intuição trazem a vitória. Contudo, para fazer esse jogo, o(a) jogador(a) tem de estar perfeitamente seguro(a) de si mesmo(a) e dos próprios recursos.

Diz-se que guerra é uma extensão da política por outros meios. Na verdade, guerra é política em sua forma mais pura, concentrada e não mascarada por convenções diplomáticas nem desinformações ‘jornalísticas’. Estados não são gente. Gente pode ser amiga sincera de gente. Estados, até quando amistosos, mesmo assim são destinados a lutar por poder e domínio (ou por melhores condições para seus cidadãos). O aliado de hoje é o concorrente de amanhã (ou vice-versa).

Significa que o básico da estratégia militar (ou do xadrez) é aplicável para descrever todas as rotinas globais diárias. É importante ter em mente, contudo, que um jogador de xadrez tem de operar com um número limitado de peças que podem compor número limitado de combinações possíveis. Um comandante militar em campanha lida com número muito maior de fatores que tem de levar em consideração e calcular, afora os fatores não sabidos e imprevisíveis. Há também dezenas e centenas de milhares, talvez milhões, de opiniões subjetivas e desejos individuais dos seus subordinados, além de ocorrências inesperadas como súbitas mudanças de temperatura ou de traços da paisagem não registrados nos mapas, etc. Apesar disso tudo, em geral o comandante militar também lida com número finito de combinações, que podem ser calculadas mais ou menos acuradamente (por mais que a sorte, nesse caso, tenha papel muito significativo).

Na política, só se podem calcular tendências. Os resultados das ações planejadas e executadas por você ou por seu adversário só podem ser apreciados em termos de probabilidades, porque bilhões de livres desejos da humanidade, além de qualidades individuais imprevisíveis e possíveis reações a esse ou outro estímulo de dezenas de milhares de políticos e funcionários públicos, que determinam a implementação de cada ação, levam os resultados de suas decisões para o reino das coisas desejadas, não das coisas garantidas. Isso exige correções continuadas nos planos e ações, de acordo com circunstâncias sempre em mudança.

Guerra e xadrez
Eis por que em política, diferente do jogo de xadrez e da ação militar, super exigir os recursos do oponente e distrair a atenção dele dos objetivos estratégicos críticos têm papel muito mais importante. Além disso, em política até o ponto mais insignificante pode tornar-se crítico e estratégico.

O que você faz, num jogo de xadrez, se você se descobre numa situação difícil, quando a posição do seu oponente é claramente mais forte? Você tenta encontrar um movimento que resulte em ameaça contra ele em outro ponto do tabuleiro, que possa crescer mais depressa do que o adversário consiga capitalizar a favor da posição vantajosa em que ele está. Mas suas posições podem ser calculadas e em muitos casos é possível dizer quem está ganhando e quem está perdendo, assumindo basicamente os movimentos certos.

Um comandante militar que se vê com uma crise nas mãos e sem recursos para responder a ela, age de modo bem semelhante. Tenta criar para seu oponente uma dificuldade noutra área, e pode até chegar à vitória, se consegue passar à frente do inimigo ou se força o oponente a parar sua operação bem-sucedida porque tem de usar os recursos para enfrentar o problema recém surgido. Na maioria dos casos desse tipo, é impossível prever quem vencerá. Quando os recursos são mais ou menos comparáveis, há excesso de fatores não conhecidos que influenciam o resultado final. Por isso é que, numa guerra, não se assumem riscos que não sejam absolutamente inevitáveis, e a primeira coisa a fazer sempre é estabilizar a situação antes de pensar com dar andamento à operação ou preparar-se para operação nova.

Na política dão-se passos semelhantes. Mas nesse caso praticamente não há fatores conhecidos. Como já ficou dito acima, tudo o que se conhece são tendências e dinâmicas do processo. Sabe-se claramente quem está caindo, quem está subindo e onde está o ponto em que se cruzarão, se os vetores e as dinâmicas permanecerem estáveis. O resto é desconhecido. Essa é a razão pela qual políticos sábios, no governo de estados, tentam não provocar outros estados, uma vez que em algum momento os eventos podem escapar de qualquer controle, e engolir os políticos que iniciaram os eventos.

Além disso, não só a possibilidade de desenvolvimento incontrolável da situação é alarmante, mas também é alarmante a impossibilidade de prever-se o momento exato em que ocorrerá a perda de controle. Assim, em qualquer momento durante uma crise política, é impossível dizer se os líderes políticos ainda têm controle sobre os eventos ou se o ‘controle’ não passa de delírio-ilusão (dos próprios líderes, como também de qualquer outra pessoa).

Por isso, quanto maior o número de pontos críticos em que podem colidir os interesses dos atores chaves, mais ativas as tentativas que fazem para super exigir dos recursos do inimigo; mais perigosa fica a situação; e menores são as chances de manter controle adequado sobre os eventos. Nesse caso, além disso, o direito de tomar decisões estratégicas progressivamente cai para planos hierarquicamente inferiores (frequentemente sem notificação aos líderes nominais). Essa é a condição em que encontramos o mundo hoje.

Perdendo consistentemente em cada crise, os EUA criaram crise após crise, para distrair a atenção e tentar super exigir dos recursos de seus oponentes.

Compreendo que muitos digam que os EUA venceram na maioria das crises. Até dão exemplos: Hussein foi deposto no Iraque; Gaddafi, na Líbia; na Ucrânia, o regime nazista que chegou ao poder com a ajuda dos EUA controla grande parte do território. Mais exemplos há, e tudo parece muito bem parado. Mas há um problema: cada ação tinha um objetivo, que não é necessariamente o mesmo que hoje se vê no resultado.

Bank of BRICS
Os EUA com certeza não depuseram Hussein e Gaddafi para entregar o poder daqueles territórios ricos em jazidas de petróleo a islamistas extremistas. Tampouco levaram nazistas ao poder na Ucrânia porque estivessem preocupados com o bem-estar dos nazistas. Essas ações foram empreendidas com um e único objetivo em mente: alterar as tendências geopolíticas mundiais de enfraquecimento dos EUA e da União Europeia – com Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul (os países BRICS e outros menos visíveis, mas também economias em desenvolvimento) cada dia mais fortes.

O fim da dominação econômica pelo ocidente era processo visível e podia ser facilmente calculado no quadro do modelo global contemporâneo. Mas os EUA ainda conservaram uma gigantesca vantagem política e militar.

Usando esse seu trunfo, os EUA tentaram criar uma situação na qual os recursos de seus atuais e potenciais oponentes geopolíticos fossem consumidos mais depressa que os recursos dos EUA. Idealmente, os recursos dos EUA poderiam até aumentar à custa dos recursos dos seus oponentes. Em tal cenário, todos os problemas dos EUA estariam resolvidos.

Mas em praticamente nenhuma das áreas de crise, os EUA conseguiram induzir seus oponentes a super expor e super desgastar os próprios recursos, enquanto os próprios EUA, esses sim, comprometeram-se em novos gastos para apoiar os regimes que eles levaram ao poder. Implica dizer que os golpes vão muito-bem-muito-bom na superfície, por fora, tudo parece ótimo. Mas o objetivo estratégico não foi alcançado. Além disso, quanto mais espetacular parece o sucesso, pior é a situação real (despesas cada vez mais altas) e mais se aproxima a derrota final.

É muito similar ao que aconteceu a Napoleão em 1812 [havia um erro no original, nessa data, aqui já corrigido (NTs)]. Ele está avançando, os russos estão em retirada, mas não só não há vitória como, também, o Grande Exército está avançando rumo às entranhas da Rússia, e quanto mais avança, pior fica sua posição estratégica. Até que Napoleão entra em Moscou. Segundo todas as aparências, era a vitória. Imediatamente Napoleão mandou Lauriston para negociar com Kutuzov e Alexander I, com instruções para concluir a paz a qualquer custo (palavras chave: “a qualquer custo”). Tinha razão para a pressa: em outubro foi forçado a sair de Moscou; e em dezembro o Grande Exército já não existia.

A Ucrânia é a única região em que os EUA tiveram sucesso, embora apenas relativo. Por efeito da guerra civil, a Rússia está forçada a consumir alguns recursos para prover ajuda humanitária e dar apoio político e diplomático ao Donbass, além de ter de preparar-se para agravamento da situação política e militar em sua fronteira de sudoeste. Essa prontidão também consome recursos.

Apesar disso tudo, até mesmo na Ucrânia, os EUA estão gastando mais para manter no poder o regime de Kiev, do que a Rússia, para ajudar as repúblicas do Donbass. Adicionalmente, os EUA fracassaram no esforço para arrastar para o conflito a União Europeia. E ainda mais: nos últimos meses, a Europa só fez tentar afastar-se gradualmente dos EUA.

Assim sendo, considerados todos os vários conflitos caríssimos em que está metida, a posição de Washington nada tem de invejável. E absolutamente ninguém pode dizer que a situação geopolítica geral dê motivos para otimismo.

As guerras dos EUA
Primeiro, o fato de que os EUA promoveram guerras civis na Líbia, na Síria e no Iraque mostra que os norte-americanos optaram por queimar até as raízes a terra que não tem meios para conservar como sua. Washington concluiu que o fogo custa praticamente nada e ainda pode dar lucro, se manobrado corretamente. Até aqui as regiões que estão sendo queimadas ainda exigem que os EUA gastem dinheiro, mas é muito menos dinheiro do que seria necessário para manter regimes condicionalmente estáveis (palavra chave: “condicionalmente”) pró-EUA.

Segundo, ao promover a criação do estado nazista na Ucrânia, os EUA entraram em confronto direto com a Rússia. Independente do que digam os funcionários do governo em Moscou, é guerra. Guerra muito real de destruição, até aqui ainda sem contato direto entre os exércitos das superpotências (palavras chaves: “até aqui”).

É como se, no México, a Rússia instalasse no poder (mediante golpe armado) e passasse a apoiar ativamente, forças que declarassem que o principal objetivo delas era a devolução de todos os territórios que o México perdeu como resultado da guerra EUA-México de 1846-1848, e também das possessões espanholas na Flórida. Pode-se esperar que essa guerra permaneça como um tipo novo de guerra, mas as ações dos EUA estão empurrando a situação para um ponto em que ficará completamente fora de controle (fora do controle dos EUA). E não importa quem viva na Casa Branca ou o que pense sobre isso, essa guerra terá de ser guerreada, e os EUA terão de iniciar o Armagedon).

O terceiro ponto comprova isso. Tendo perdido tudo na Ucrânia (lembremo-nos de que os EUA consomem mais dos seus recursos em Kiev, do que a Rússia em Donetsk, quando o plano era conseguir o oposto disso), os EUA começaram a preparar-se para novo movimento no jogo, para desviar a atenção dos russos dos pontos em que os EUA são vulneráveis; para isso, tentaram atrair as atenções para novos perigos em novas direções.

Dado que já é óbvio que os gastos nas zonas de conflito que os EUA criaram impedirão que os EUA acumulem recursos para vencer a guerra (por recursos), o único movimento vencedor (e o empate é impossível nessa situação) seria destruir a Rússia. Quer dizer: para que os EUA conservem por mais algum tempo o domínio global, a Rússia tem de desaparecer (tem de desaparecer, no mínimo, a forma de Rússia que existe hoje).

Destruição mútua?
O único meio para conseguir esse resultado (exceto a mútua destruição garantida) é explodir o país de dentro para fora. Já se veem vários passos que são dados, obviamente, para alcançar esse objetivo. Especificados:

1. Continuam as tentativas para desacreditar os governantes russos.

2. São promovidas atividades de rua de todos os tipos (não necessariamente de tipo “cidadãos pela paz”) que possam gerar tumultos que levem a total ou parcial perda de controle sobre os eventos, pelas autoridades locais e em várias regiões (mas para começar basta que haja tumultos numa única grande cidade, a partir da qual os eventos desenvolvem-se exponencialmente).

3. Está em testes a viabilidade de os EUA desestabilizarem aliados da Rússia na União Econômica Eurasiana (os primeiros alvos são Armênia, Bielorrússia e Cazaquistão).

4. Estão em curso tentativas para criar áreas de conflito nas fronteiras da Rússia (estados do Báltico) ou nas regiões com presença russa (Transnistria).

5. E não se devem excluir provocações militares diretas (inclusive atos terroristas) contra territórios russos (Crimeia, região Krasnodar, regiões em torno da Ucrânia, região de Kaliningrado), conduzidas a partir de territórios de países vizinhos, com participação direta ou indireta (instrutores) de pessoal militar dos EUA e de alguns outros países da OTAN.

A Rússia está em posição que lhe permite superar essas ameaças. Mas os EUA sabem disso. Portanto, para que o jogo seja bem-sucedido, tem de ser jogado em “área de falta”. Significa que Moscou será posta em situações nas quais não conseguirá fazer o cálculo estratégico para definir se medidas tomadas para defender a própria soberania levarão ou não levarão a resposta militar dos EUA... ou se os EUA estão blefando. O mais perigoso de tudo é que Washington também nunca saberá se blefa, se fala sério.

Primeiro, porque em política o blefe só dá certo se você mesmo não tem muita certeza de que esteja blefando e mantém-se sempre pronto para a qualquer momento saltar da banda, para fora do contexto do blefe.

Segundo, na luta política, políticos que blefam sempre estão pressionados pelas tentativas dos oponentes para obrigá-los a admitir o blefe, admissão que pode roubar votos nas eleições seguintes.

Tudo isso significa exclusivamente o seguinte: os EUA estão condenados a continuar subindo as apostas do jogo. Não só por interesses econômicos ou de política exterior, mas também por causa da natureza da luta interna pelo poder dentro dos EUA.

Luta interna pelo poder
A situação política atingiu o ponto quando nenhum político individualmente, não importa o quanto seja poderoso e influente, pode dizer que controla os eventos. Os processos desenvolvem-se seguindo lógica própria deles mesmos.

Ainda é possível repor os eventos sob controle, mediante esforço coordenado da maioria das partes interessadas. Mas para que isso aconteça, é preciso que a Europa, pelo menos (e mesmo sem a Grã-Bretanha), una-se aos esforços de China e Rússia.

É importante compreender que a noção enxadrística de “aperto de tempo” (Zeitnot, quando o jogador é pressionado pelo tempo) não se aplica só ao jogo de xadrez. Interfere muito mais dramaticamente na atividade militar ou política. E nós estamos à beira desse “aperto de tempo”. Esperemos que o “aperto de tempo” não se some, agora, à situação de  Zugzwang (jogada obrigatória, que piora a situação do jogador).

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[*] Rostislav Shchenko é Presidente do Centro de Análise Sistemática e Previsões políticas da Ucrânia.

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