30/8/2011, M. K. Bhadrakumar, Voltaire.net
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Se a semelhança entre os cenários da devastadora mudança de regime no Iraque e na Líbia significa alguma coisa, o futuro da soberania de Bashar al-Assad na Síria pode estar por um fio. O xis da questão – lembro eu – é que mudar o regime na Síria é providência absolutamente central para todos os objetivos dos EUA no Oriente Médio. As coisas estão de tal modo interligadas, que vários objetivos estratégicos podem ser obtidos numa só cajadada, dentre os quais, e importante, diminuir muito a influência de Rússia e China na região. Não é oportunidade que Washington deixe passar.
As imagens que chegavam de Trípoli ontem eram fantasmas estranhamente semelhantes a outros, já vistos. Buzinas soando, Kalashnikovs disparadas para o ar, jovens e crianças andando sem rumo pelas ruas de casas e prédios em ruínas, fotógrafos e cinegrafistas ocidentais vorazmente recolhendo fragmentos de frases em inglês de pé quebrado, da boca de qualquer personagem local disposto a divulgar os imorredouros ideais da Revolução Francesa de 1789 e da Magna Carta. Outro espaço, outro tempo, as imagens eram as mesmas, mas não se consegue localizá-las exatamente. Poderiam ser fiapo de lembrança, que se esgueira dos porões da mente, ou esquecido ou expulso da consciência? Agora, dia seguinte, já não há dúvida: os canais de televisão reprisaram cenas de Bagdá em 2003.
A narrativa que chegava de Trípoli é extraordinariamente semelhante a que recebemos de Bagdá: um ditador brutal e megalômano, que parecia onipotente, é derrubado pelo povo, e uma onda de euforia varre uma terra exaurida. Com as celebrações, o benefactor-cum-liberator ocidental avança para o centro do palco, assumindo seu posto no “lado certo da história”. No século 19, teria dito – no Quênia ou na Índia – que carregava sobre os ombros “a carga que cabe ao homem branco”. Hoje, diz que traz avanços ocidentais a quem clama por eles.
Mas é só questão de tempo, antes que a narrativa esvaia-se, e realidades aterrorizantes se imponham. No Iraque, vimos como uma nação que há apenas 20 anos começava a avançar rumo a padrões de desenvolvimento da OECD foi empurrada de volta à miséria e à anarquia.
Golpe de estado
A oposição democrática líbia é mito fabricado pelos países ocidentais e por governos árabes “pró-Ocidente”. Há fissuras profundas dentro da oposição líbia, e facções de todos os tipos, de liberais genuínos a islamistas e ao mais claro lumpenproletariat. E há as divisões entre tribos. As disputas internas entre as várias facções parecem receita para outra rodada de guerra civil, enquanto facções que não têm nem legitimidade nem autoridade disputam o poder.
A dimensão dessas fissuras apareceu muito clara, mês passado, quando o comandante-em-chefe Abdul Fattah Younes foi arrancado do front sob falso pretexto, afastado de seus guarda-costas e brutalmente torturado e morto pelos “rebeldes” militantes de uma facção islamista.
A imprensa ocidental começou a discutir abertamente o papel da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que arquitetou a intervenção e novamente interveio para desequilibrar o poder bélico contra Muammar Gaddafi. A “revolução” mais parece golpe de estado instigado por Grã-Bretanha e França. Mesmo assim, a aliança ocidental precisou de terríveis longos seis meses para levar seus ‘rapazes’ até Trípoli. Gaddafi ainda os mantém ocupados, depois de sua saída em grande estilo. A espantosa verdade é que cabe a Gaddafi decidir quanto parar de lutar, apesar de ter homens e equipamento para prolongar por bom tempo o atual desafio.
O que Gaddafi decida fazer nas próximas horas terá grande influência sobre o acontecerá depois. Se haverá pesado derramamento de sangue, provavelmente haverá vingança dos vitoriosos sobre os vencidos.
Em termos políticos, a queda iminente de Gaddafi não implica vitória da oposição. Sem o apoio tático da OTAN, a oposição teria sido derrotada. A grande questão, portanto, é que papel terá a OTAN, na Líbia, no futuro. E há também a questão de se, agora, a OTAN dirigirá suas atenções à Síria.
A OTAN cerca (e ocupa) o mundo árabe
Cumprida com sucesso a missão de derrubar o governo Gaddafi na Líbia, seria de esperar que OTAN deixasse o teatro líbio. A Resolução n. 1.973 da ONU foi violentada. Mas que ninguém espere a retirada da OTAN. O leitmotif da intervenção ocidental na Líbia foi o petróleo líbio.
Movimento recente de Gaddafi, de aproximar-se dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) e trazê-los para o setor líbio de petróleo, obviamente ameaçou os interesses ocidentais.
A retórica pró-democracia que emana de Londres e Paris sempre soou como toada oca. A intervenção da OTAN na Líbia extrapolou os limites da legislação internacional e da Carta das Nações Unidas. A OTAN está hoje na ridícula posição de ter de extrair a legitimidade necessária para permanecer na Líbia, dos mesmos sinistros elementos que subiram ao palco como forças “democráticas”, mas não têm apoio popular – sob o pretexto de que ainda há trabalho a fazer.
Há, sim, ainda, trabalho a fazer. Pode ser, outra vez, do começo ao fim, o Iraque e o Afeganistão. Mais cedo do que se supõe, aparecerá resistência contra a ocupação estrangeira. As tribos líbias têm fama na história e no folclore da resistência. Por outro lado, um grande paradoxo da geopolítica é que quanto mais se aprofunde a anarquia, mas a ocupação encontra pretexto ideal. A história da Líbia não será diferente da de Iraque e Afeganistão.
A intervenção ocidental na Líbia introduz novos padrões na geopolítica do Oriente Médio e África. Levou a OTAN até o leste do Mediterrâneo e para dentro da África. É parte essencial da estratégia dos EUA pós-Guerra Fria, para converter a aliança transatlântica em organização global com capacidade para atuar nos “pontos quentes” globais, com ou sem autorização da ONU. Não há dúvida alguma de que, no ‘novo Oriente Médio’, a OTAN terá papel de pivô.
É o que já se ouve, com ecos de horripilar, na fala do vice-primeiro ministro britânico Nick Clegg, à primeira vista, sobre a Líbia: “Quero deixar bem claro que a Grã-Bretanha não dará as costas aos milhões de cidadãos dos estados árabes que tentam abrir suas sociedades em busca de vida melhor.” Mas... e se estivesse falando da Síria? Com certeza absoluta, Clegg não estava oferecendo serviços de “abertura” aos cidadãos árabes das sociedades de Arábia Saudita, Bahrain ou Iêmen, para dar às tribos que lá vivem condições de vida europeia moderna.
Com a operação líbia aproximando-se do término, todos os olhos voltam-se para a Síria. O Wall Street Journal especula: “O sucesso dos líbios afeta a rebelião potencialmente mais importante na Síria (...) Já há sinais de que a Líbia inspira os rebeldes que tentam depor [Bashar al] Assad.”[1] Mas acrescenta o detalhe, sem o qual a ideia propagandística não estaria devidamente proposta: “Há diferenças cruciais entre Líbia e Síria, e será difícil replicar em Damasco o modelo da revolução líbia.”
Apostas altas na Síria
Sim, mas a mente ocidental é famosa pela capacidade de inovação. Não há dúvidas de que a Síria está no coração do Oriente Médio e conflitos que irrompam ali quase com certeza engolfarão toda a região – inclusive Israel e, possivelmente, também o Irã e a Turquia.
Por outro lado, os movimentos coordenados do ocidente nas últimas semanas ampliando sanções contra a Síria, são muito semelhantes ao que se viram no prelúdio da intervenção na Líbia. Estão em andamento esforços sustentados para criar uma oposição síria unificada. Semana passada, encontro na Turquia – o terceiro em sequência – finalmente elegeu um “conselho” que ostensivamente representaria a voz do povo sírio. Evidentemente, está em construção, cuidadosamente, um ponto focal, que, em momento conveniente, poderá ser cooptado como do interventor ocidental democrático que representaria a Síria. O apoio da Liga Árabe, para funções de folha de parreira, também está disponível. Os regimes árabes “pró-ocidente” – autocracias – reapareceram à frente da campanha ocidental, como portadores do estandarte da representatividade na Síria.
Pode-se argumentar que a parte mais difícil seria obter mandado da ONU para intervenção ocidental na Síria. Mas a experiência líbia mostra que sempre é possível conseguir um álibi. Para isso, pode-se confiar na Turquia: quando há envolvimento da Turquia, é possível invocar o Estatuto 5 da OTAN.
O xis da questão é que é imperativo derrubar o governo da Síria, para que a estratégia dos EUA no Oriente Médio possa avançar, e Washington não aceitará obstáculos que algum dos BRICS crie, porque o que está em jogo é importante demais. Estão em jogo a expulsão, de Damasco, da liderança do Hamás; o rompimento do eixo sírios-iranianos; o isolamento do Irã, com o correspondente estímulo para derrubar o governo iraniano; enfraquecer e degradar o Hezbollah no Líbano; e reconquistar a dominação estratégica de Israel sobre todo o mundo árabe.
Claro que, na raiz disso tudo, está o controle sobre o petróleo, o qual, como disse George Kennan há 60 anos “é recurso nosso, não deles [dos árabes]”, considerado crucial para manter qualquer esperança de prosperidade sustentada do mundo ocidental. E ria de quem disser que governos ocidentais e seus cidadãos empobrecidos já não teriam apetite para guerras.
Finalmente, tudo isso implica, em termos geopolíticos, a reversão de qualquer influência que russos e chineses tenham obtido no Oriente Médio.
Já está em operação uma sutil propaganda ocidental que pinta Rússia e China como obstáculos à derrubada de governos na região –, porque estariam “do lado errado da história”. É esperta virada ideológica na muito bem-sucedida jogada-padrão da Guerra Fria, que jogou o comunismo contra o Islã.
A linguagem corporal nas capitais ocidentais não deixa dúvidas: de modo algum os EUA deixarão escapar a oportunidade que veem hoje, para eles, na Síria.
Nota dos tradutores
[1] 23/8/2011, Wall Street Journal, “Lybia and the Arab Spring”
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