4/4/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving
Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar |
Não
seria delírio imaginar que o Anjo da História de Walter Benjamin rende-se e
sucumbe à tentação de declarar que raiou afinal o dia do Sul Global.
Ah, sim, sim. Será estrada longa e
sinuosa.
[1] Mas se
a geração Google/Facebook precisar só de um manual que explique a coisa dos
sonhos, tentativas, atribulações do mundo em desenvolvimento no início do século
21, o manual será o recém-publicado The Poorer Nations [As nações mais
pobres], [2] de
Vijay Prashad. Podem considerá-lo sequência digital, pós-moderna, do clássico
Os Condenados da Terra, [3] de
Frantz Fanon.
Frantz Fanon |
É livro absolutamente essencial, a
ser lido simultaneamente, com outra maravilha escrita por um asiático global,
Pankaj Mishra, From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the
Remaking of Ásia [Das ruínas do Império: A revolta contra o Ocidente e a
reconstrução da Ásia], [4] que se
serve de figuras chaves, como Jamal al-Din al-Afghani, Liang Qichao e
Rabindranath Tagore para contar uma história extraordinária.
Os
fundadores do MNA converteram-se em ícones do mundo pós-colonial: Jawaharlal
Nehru, na Índia; Gamal Abdel Nasser, no Egito; Sukarno, na Indonésia; Josip Broz
Tito, na Iugoslávia. Mas todos sabiam que seria combate morro acima. Como
Prashad observa,
...
a ONU fora sequestrada pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial haviam sido capturados
pelas potências atlânticas; e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade
[Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio]), precursor da Organização Mundial do
Comércio (OMC), foi constituído para minar qualquer esforço que as novas nações
tentassem na direção de revisar a ordem econômica
internacional.
Henry Kissinger |
Quanto
ao Projeto Atlântico, basta citar uma frase de Henry Kissinger, de 1969.
Kissinger – codestruidor do Camboja; agente que capacitou o líder chileno
Augusto Pinochet; aliado, embora contra-vontade, dos sauditas (“os mais
incompetentes, preguiçosos e covardes dos árabes”) e elogiador-em-chefe do Xá
iraniano (“sujeito durão, que sabe o que quer”):
Nada
de importante pode vir do sul. O eixo da história começa em Moscou, vai a Bonn,
salta por cima de Washington e vai a Tóquio. O que acontece no sul não tem
importância.
Os
atlanticistas empenharam-se ferozmente contra o (“sem importância”) Projeto
Terceiro Mundo, mas também contra a democracia social e o comunismo. O Santo
Graal deles era mergulhar fundo em quaisquer lucros de brotassem de uma nova
geografia de produção, “mudanças tecnológicas que capacitaram as empresas a
extrair vantagem máxima de diferentes padrões salariais” – sobretudo dos
salários muito baixos pagos em todo o leste da Ásia.
Vijay Prashad |
Estava
pronto, pois, o cenário para a emergência do neoliberalismo. Aqui, Prashad
acompanha o indispensável David Harvey, detalhando o modo como o Sul Global
chegou ao ponto de ser plenamente (re)explorado: bye bye libertação
nacional e ideias de bem coletivo.
Manter
os bárbaros à distância
Com
o FMI sendo parte, hoje, da troika que dita austeridade à maior parte da
Europa Ocidental (junto com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu), é
fácil esquecer que, em 1944, as coisas já estavam bem amarradas. O mundo em
desenvolvimento não falou em Bretton Woods, muito menos deu palpite nos vários
tipos de controle impostos ao Conselho de Segurança. Foi o silêncio dos
cordeiros. Os lobos disseram o que quiseram, e a desigualdade virou cláusula
pétrea.
Prashad
oferece os detalhes indispensáveis de como o dólar norte-americano tornou-se
moeda mundial efetiva, com os EUA fazendo dançar o preço do dólar, por todo o
planeta, sem medir consequências: formou-se o Grupo dos Sete, como mecanismo
mundial essencialmente antidesenvolvimentista (e não anti-Soviético); e, claro a
muito temida Comissão Trilateral, criada por David Rockfeller do Chase Manhattan
para impor a vontade do norte, contra o sul.
Zbigniew Brzezinski |
E
adivinhem quem foi o arquiteto intelectual da Comissão Trilateral? O inefável
Zbigniew Brzezinski, adiante consigliere do presidente Jimmy Carter. O
Dr. Zbig queria “conter” a “ameaça contagiosa da anarquia global”. Dividir para
governar, mais uma vez. A periferia tinha de ser posta no seu lugar.
Deve-se
lembrar, quanto a isso, que em seu épico de 1997, The Grand Chessboard [O Grande
Tabuleiro de Xadrez], o Dr. Zbig, que seria feito conselheiro para política
externa de Barack Obama em 2008, escreveu:
Os
três grandes imperativos da geoestratégia imperial são impedir a colusão e
manter a dependência em segurança entre os vassalos; manter os tributários
dóceis e protegidos; e impedir que os bárbaros se unam.
David Harvey |
Por
muito tempo os “vassalos” foram facilmente contidos; mas o Dr. Zbig, um passo à
frente de Kissinger, já planejava um modo para conter os dois “bárbaros” chaves,
as duas potências euroasiáticas ascendentes: Rússia e China.
O
Grupo dos Sete, seja como for, foi estrondoso sucesso, levando sua “teoria da
governança” para todo canto, implementada pela máfia de Bretton Woods – e quem
mais seria? Prashad define claramente:
O
que recebeu o nome de “neoliberalismo” foi menos uma doutrina econômica
coerente, que uma campanha muito direta, posta em andamento pelas classes
proprietárias, para manter ou restaurar sua posição de dominação” – mediante a
“acumulação por despossessão” (termo cunhado por David Harvey), também bem
conhecida de milhões de europeus sob o codinome de
“austeridade.
Os
números contam a história. Em 1981, o fluxo líquido de capitais para o Terceiro
Mundo foi de $35,2 bilhões. Em 1987, $30,7 bilhões deixaram o Terceiro Mundo,
para bancos ocidentais. Por graça de Deus e sua lei escrita em pedra, também
chamada “Ajuste Estrutural”, baseada em “condicionalidades” (privatização
selvagem, desregulação, destruição dos serviços sociais, “liberalização” das
finanças).
Bob Dylan |
Parafraseando
(Bob) Dylan, quando você tem nada, você ainda tem esse nada, a perder. Jamais
houve qualquer estratégia política, do norte, para negociar a crise da dívida
dos anos 1980s. Os cordeiros do Sul Global só foram autorizados a desfilar, em
triste procissão, para receber o ajuste estrutural consagrado, um a um.
Mas
nem tudo isso bastaria. Com o fim da URSS, Washington ficou livre para
desenvolver a Dominação de Pleno Espectro. Os que não se submeteram
completamente foram rotulados “estados delinquentes” – como Cuba, Irã, Iraque,
Líbia, República Popular Democrática da Coreia e até, por certo tempo, a Malásia
(porque resistia ao FMI).
Mas
então lenta, mas firmemente, o Sul Global começou a erguer-se. Prashad detalha
as razões – o boom de commodities puxado pela China; lucros
advindos da venda de commodities que fizeram renascer as finanças
latino-americanas; mais investimentos estrangeiros diretos correndo mundo. O Sul
Global começou a negociar mais dentro do próprio Sul Global.
Celso Amorim |
Então,
em junho de 2003, à margem da reunião do Grupo dos Oito em Evian, França ,
emergiu algo chamado IBSA (“Diálogo Índia-Brasil-África do Sul). O IBSA estava
apto a “maximizar os benefícios da globalização” e a promover crescimento
econômico sustentado. O Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim,
definiu-o naquele momento como “uma ideologia no melhor sentido da palavra:
ideologia de democracia, diversidade, tolerância e busca de cooperação”.
Paralelamente,
a China estava – como teria de estar – crescendo. É essencial lembrar aqui, a
viagem, crucialmente decisiva, que Deng Xiaoping fez a Cingapura, em novembro de
1978, quando foi recebido por Lee Kuan Yew. Sobre essa visita, Prashad poderia
ter escrito um capítulo inteiro. Foi o “gancho” de suspense, para o capítulo
seguinte. Deng entendeu que podia mobilizar as guanxi (“conexões”) da
diáspora chinesa, com todo o seu potencial. Nunca esquecerei minha primeiríssima
viagem a Shenzhen, apenas um mês depois do famosíssimo tour de Deng pelo
sul, em janeiro de 1992. Foi quando o boom realmente começou. Naquele
momento, senti que estava mergulhado, até o pescoço, na China maoísta.
Donald Kaberuka |
Façam
avançar a fita até hoje, com a China ajudando a desenvolver a África. Vastas
porções do mundo em desenvolvimento jamais sequer considerariam a possibilidade
de abraçar cegamente o azhongguo moshi – o Modelo Chinês. A coisa se
passa mais como Prashad faz, começando com essa maravilhosamente clara frase de
Donald Kaberuka, um ex-ministro das finanças de Rwanda e atual presidente do
Banco Africano de Desenvolvimento:
Podemos
aprender [dos chineses] como organizar nossa política comercial, como sair do
status de baixa renda, para um status de renda média, como educar nossas
crianças em setores e habilidades que, em poucos anos, pagarão o próprio
custo.
BRIC a BRIC [*]
O
que nos traz aos BRICS, criados como grupo em 2009, da união BRIC-IBSA e que são
hoje a principal locomotiva do Sul Global.
Àquela altura, “Culpem a China” já
se tornara uma das Belas Artes, em Washington; era absolutamente imperativo que
todos os chineses se convertessem em consumidores. Eles são e serão – mas ao
ritmo deles e seguindo o seu próprio modelo político. [6]
Até o
FMI já admite que, por volta de 2016, os EUA já terão deixado de ser a maior
economia do mundo. Tinha razão portanto o grande Fernand Braudel, quando
escreveu Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII
[7] (Le
temps du monde [1979, 3 volumes]); (ing.) The Perspective of the World:
Civilization and Capitalism, Fifteenth- Eighteenth Century, em que diz que
esse seria o “sinal do outono” para a hegemonia atlântica.
Claro
que os BRICS enfrentam problemas imensos, como Prashad detalha. As respectivas
políticas domésticas podem, sim, ser interpretadas como uma espécie de
“neoliberalismo com características do Sul Global”. Estão ainda longe de ter
construído ou de ser alternativa ideológica para o neoliberalismo. Não têm nem
qualquer mínima condição de defesa contra a arrasadora hegemonia militar dos EUA
e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN (basta ver o fiasco na
Líbia). E não são o embrião de mudança revolucionária na ordem mundial.
Mas,
pelo menos, trazem “uma lufada de ar fresco para oxigenar o mundo estagnado do
imperialismo neoliberal”.
O ar fresco circulará sob a forma
de um novo banco de desenvolvimento, um Banco BRICS do Sul, versão do Banco del Sur sulamericano fundado em
2009 (para conhecer a leitura de Prashad, veja “Os grandes BRICS: a
China afinal encontra
seu nicho” [8]. China
e Brasil já definiram uma conta de $30 bilhões em moeda própria para pagar
contas comerciais, deixando de lado o dólar norte-americano. Pequim e Moscou
aprofundam a parceria estratégica (ver “BRICS conseguem furar o cerco”
[9]).
Os
BRICS como são hoje – três grandes consumidores de commodities e dois
grandes produtores de commodities tentando abrir uma picada que os
salve do desastre para o qual o ocidente dirige o mundo – são só um começo. Já
começam a movimentar-se como poderoso ator geopolítico, o que destaca a
multipolaridade. Logo haverá novos BRICS – os países MIST (México, Indonésia,
[South] Coreia (do Sul) e Turquia). E não esqueçam o Irã. Será hora, já, para os
BRICS MIIST?
Peter Sellers Dr. Fantástico |
O
que se vê, como que desenhadamente claro, é que o Sul Global já sofreu demais
–dos saques que sofre do turbo-capitalismo de cassino, à OTAN fazendo-se de
Robocop, do norte da África ao sudeste da Ásia, para nem falar da Eurásia, que
vai sendo cercada por aquela quimera de Dr. Fantástico – um escudo de mísseis.
O
Sul Global ainda padece sob muitos absurdos. Basta pensar nas
petro-gás-monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo – aqueles exemplares de
“democracia” – já configurados como anexo da OTAN. Poucos eventos recentes foram
tão espantosamente assustadores, quanto a Liga Árabe, a lamber as botas de seus
senhores na OTAN e desrespeitando todas as leis internacionais, para pôr os
tresloucados “rebeldes” sírios na cadeira que, por direito, cabe à Síria, estado
soberano e membro fundador da própria Liga.
Prabhat Patnaik |
A
queda do neoliberalismo será sangrenta – e demorada. Prashad tenta uma análise
objetiva da unidade do Sul Global, seguindo a trilha do pensamento de um
marxista indiano, Prabhat Patnaik.
Patnaik
é pensador consistente. Ele sabe que “não se vê no horizonte qualquer
resistência coordenada global”. Mas considera “a centralidade de construir a
resistência dentro do estado-nação, e sua análise pode ser facilmente estendida
a regiões (escreve prioritariamente sobre a Índia, mas produz análise aplicável
aos experimentos bolivarianos na América Latina)”.
Assim
sendo, o mapa do caminho sugere que se enfrente a “questão camponesa” – que
envolve, essencialmente, terra e direitos; e que nos concentremos em lutas
imediatas para melhorar as condições de vida e de trabalho das pessoas.
Inevitavelmente, Prashad teria de fazer, e faz, referência ao vice-presidente da
Bolívia, Alvaro
Garcia Linera, um dos mais importantes intelectuais
latino-americanos contemporâneos.
Sob
vários aspectos, é em partes da América
Latina que o processo de emancipação está mais avançado. Fiquei
imensamente impressionado quando visitei a Bolívia, no início de 2008. Prashad
praticamente resume as análises de Linera, de como se desenvolve o processo.
Tudo
começa com uma crise do estado, que permite que “um bloco social dissidente”
mobilize o povo para um projeto político. Desenvolve-se um “embate catastrófico”
entre o bloco do poder e o bloco do povo, o qual, no caso da América Latina,
pôde resolver-se, pelo menos por hora, a favor do povo.
O
novo governo tem, então, de “converter o que foram demandas da oposição,
em atos de
Estado ” e construir hegemonia mais profunda e mais ampla,
“combinando as ideias da sociedade mobilizada e recursos materiais oferecidos ou
pelo Estado, ou através do Estado”. O ponto de virada (“ponto de bifurcação”),
para Garcia Linera, vem mediante “séries de confrontações” entre os blocos, que
se resolvem de modos inesperados, ou com a consolidação da nova situação, ou com
a reconstituição da situação velha.
Estamos
no ponto de bifurcação, ou bem próximos. O que virá não é
previsível.
O
que as melhores cabeças na Ásia, África e América Latina já sabem, até agora, é
que nunca houve qualquer fim da história, como papagueavam patéticos órfãos de
Hegel; e tampouco houve algum fim da geografia, como papagueavam os panacas
dançantes da globalização, para os quais “a Terra é plana”. Está finalmente em
curso a libertação do pensamento do Sul Global, que se vai livrando do
pensamento do Norte. Esse é processo sem volta, irreversível. Não há retorno
possível à velha ordem. Se fosse um filme, seria 1968, repetido sempre, sempre,
sempre, em tempo integral, sem parar. Sejamos realistas: exijamos e
implementemos o impossível.
Notas de tradução
[*]
Há
aqui um trocadilho intraduzível. A palavra brick (ing.) significa
“tijolo”. Com mínima diferença de grafia e nenhuma de pronúncia, quem diga “BRIC
by BRIC” (ing.) diz também “brick by brick” (ing.), “tijolo a tijolo”. Tentamos
“BRIC a BRIC”, como tradução possível, para salvar pelo menos uma parte da
metáfora. Há outras possibilidades [NTs].
[1] Orig. ...a long, arduous and winding road. De
verso dos Beatles em “The Long And Winding
Road”. Assiste-se/ouve-se
a seguir:
[2] PRASHAD, Vijay. The
Poorer Nations: A Possible History of the Global South, 2013, New
York: Verso, 300 p.
[3]
FANON, Franz. Os
Condenados da Terra [1961, pref. Jean-Paul Sartre], Juiz de Fora:
Ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006
[4] MISHRA, Pankaj. From
the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of
Asia, Amazon.
[5] PRASHAD, Vijay.
The
darker nations: a people's history of the Third - World Perseus
Distribution Services, Abril,1, 2008 - 364 pg.
[6] Primavera, 2013, Europe’s world, Zhang WeiWei em: Why China prefers its own political
model [Por que a China prefere seu próprio modelo
político].
[7] BRAUDEL, Fernand
e COSTA, Telma. Civilização material, economia e
capitalismo, séculos XV-XVIII – Livraria do GOOGLE.
[8]
27/3/2013,
redecastorphoto, Visay Prashad em: “Os
grandes BRICS: a China afinal encontra seu nicho”,
[em port.]
[9]
26/3/2013, redecastorphoto, Pepe
Escobar: “BRICS conseguem furar o cerco”, [em port.]
[10]
É
subtítulo de um livro: BOXALL, Fiona Vivien, The New
Age of Corporate Management: Weird Scenes Inside the Goldmine [A
nova era da gestão corporativa: cenas estranhas na mina de ouro], Ed.
Macquarie University (Division of Society, Culture, Media &
Philosophy, Department of Anthropology), 2003, 742 p..
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