Olivier Roy |
23/6/2011, Olivier Roy, New Statesman
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Olivier Roy é professor de Teoria Social e Política no Instituto Universidade Europeia em Florença, Itália.
A leste do rio Jordão, o cisma geopolítico e religioso no Oriente Médio, define o fosso no entendimento entre Arábia Saudita e Irã
Paquistaneses muçulmanos xiitas marcham durante um protesto em Karachi contra o governo Bahrain, em 01 de maio de 2011. Foto: Getty Images |
É tal a força dos movimentos pró-democracia no Oriente Médio que, pela primeira vez no mundo árabe, a revolução não se ligou a alguma grande causa supranacional: panarabismo, panislamismo, socialismo, apoio aos palestinos, anticolonialismo, antissionismo ou anti-imperialismo. Os novos movimentos são patrióticos, em vez de nacionalistas; lançam raízes num contexto doméstico; e confrontam as autoridades, sem acusá-las de agir como fantoches de potência estrangeira.
Isso não implica dizer que as grandes fissuras geoestratégicas sumiram, mas que existem, em primeiro lugar, na mente dos líderes que ainda não caíram, os quais, quando não se contentam com lutar exclusivamente pela própria sobrevivência (como no Iêmen), interpretaram as revoltas em termos de suas implicações regionais mais amplas. Vale também para os israelenses, os quais, como o regime saudita em Riad, só fizeram calcular as prováveis consequências da agitação social reinante. Embora as potências ocidentais se congratulem pela onda de democratização que estimularam, aquelas mesmas potências, simultaneamente, são extremamente sensíveis à dimensão geoestratégica – como o comprova o silêncio das potências ocidentais no caso da repressão aos manifestantes no Bahrain.
O que vemos emergir é uma estranha dicotomia, sem precedentes na história contemporânea. Até agora, todos os movimentos revolucionários trabalharam para favorecer, no plano real ou imaginário, ou uma grande potência, ou uma ideologia. Por muito tempo, foi a União Soviética; depois, foi o islamismo – e não se pode esquecer o papel que o ocidente desempenhou nas manifestações que levaram ao desmanche do Muro de Berlim.
Mas, agora, parecem estar ativadas duas lógicas políticas estanques. Não há ilustração mais eloquente dessa desconexão, que imagens que chegaram da Síria dia 5 de junho: de um lado, sírios que arriscam a própria vida para manifestar-se contra o governo de Bashar al-Assad; de outro, refugiados palestinos em marcha, na Síria, encorajados pelas autoridades em Damasco, na direção da própria morte sob fogo do exército de Israel, nas Colinas do Golan. A primeira impressão é que os dois grupos de manifestantes vivem em países diferentes.
É preciso distinguir entre os países nos quais as apostas geoestratégicas são baixas – ou, dito de outro modo, estão controladas –, e os países nos quais a derrubada do regime é interpretada, correta ou erradamente, como prelúdio de levante mais amplo.
No primeiro grupo, estão Tunísia, Líbia e Iêmen. Esses três países são periféricos, em relação às alianças e aos conflitos pan-regionais. A Tunísia, quase certamente, adotará linha em larga medida pró-ocidente e o país olha na direção da Europa. Muammar al-Gaddafi vive isolado, há muito tempo, no mundo árabe. E o Iêmen, embora seja importante para a Arábia Saudita, essa importância advém, sobretudo, de o risco de qualquer instabilidade interna no Iêmen poder atingir a fronteira sul do reino saudita. Paradoxo, aqui, é o Egito.
O Egito é ator central no conflito Israel-palestinos e, para muitos, essa confrontação está no âmago das tensões que convulsionam o mundo árabe. Apesar disso, a derrubada do presidente Hosni Mubarak praticamente não teve nenhum impacto geoestratégico.
Ninguém duvida de que a opinião pública egípcia faz críticas fortes contra o que o governo Mubarak fez a favor de Israel e não aprova a colaboração entre Cairo e Telavive nos ataques contra o Hamás, no cerco à Faixa de Gaza, nem no fornecimento de gás a Israel. Apesar disso, é evidente que a derrubada de Mubarak pouco alterará, de fundamental, no estado de coisas vigente durante a ditadura.
Mesmo que o Egito se abra um pouco mais para o Hamás e os palestinos em geral, a linha vermelha do tratado de paz com Israel dificilmente será rompida. Mais do que isso, essa abertura poderia promover o processo de paz, ao trazer o Hamás de volta ao plano dos contatos políticos e democráticos. O principal obstáculo nessa direção está em Telavive, não no Cairo.
A “neutralidade” dos eventos no Egito revela também algo mais profundo, que vários analistas experientes do mundo árabe ainda relutam em reconhecer. O conflito Israel-palestinos, apesar do impacto emocional que tem em toda a Região, não é fator ativo na atual mobilização no mundo árabe e já não tem papel determinante na modelagem da política externa dos estados árabes – exceto na Síria.
A evolução do conflito dependerá de relações entre israelenses e palestinos dentro das fronteiras históricas da Palestina do Mandato, não das políticas dos estados árabes. O conflito árabes-israelenses cedeu lugar ao conflito entre israelenses e palestinos. Basta ver o desconforto que os movimentos novos, pró-democracia, causam a Israel[1], a irritação que provocam, para ver que a irritação é praticamente a mesma também entre as lideranças palestinas.
Isso não implica dizer que os novos movimentos não terão impacto algum nos rumos do conflito entre israelenses e palestinos. Terão impacto, se por mais não for, porque estão fazendo despertar um gosto por melhor democracia e pela não-violência entre palestinos e também entre israelenses; isso, por sua vez, impede Israel de continuar a apresentar-se como “a única (e perfeita) democracia no Oriente Médio”, único baluarte ocidental contra o terrorismo e o islamismo. A onda de democratização já forçou os partidos Hamás e Fatah a construir um acordo, porque ambos temem ser surpreendidos por movimentos populares (uma IIIa. Intifada anti-Israel); e o governo de Israel começa a enfrentar as primeiras manifestações “da rua” [2].
O que ainda não se sabe é se esse desenvolvimento será acompanhado por um governo israelense interessado em mudanças. Não é o caso do governo que está no poder em Israel. A direita israelense não quer retomar um processo que trará de volta à agenda a questão das fronteiras. A disjunção essa direita impermeável a qualquer conciliação, a evolução do quadro regional e a cultura em processo de transformação entre os jovens palestinos fará aumentar o isolamento internacional de Israel (por mais que a direita israelense creia que suportará o isolamento e que, além disso, também conseguirá prosseguir na colonização dos territórios ocupados até que seja irreversível).
Hoje, a principal fratura que divide o mundo árabe – pelo menos a leste do rio Jordão – é a oposição entre, de um lado, um bloco árabe sunita dominado pela Arábia Saudita; e, por outro lado, o Irã.
Nos últimos 30 anos, os sauditas viram o Irã como a principal ameaça regional; e tentaram, com diferentes graus de sucesso, mobilizar o nacionalismo árabe, além de todas as formas da militância dos sunitas, para conter as tentativas do Irã, interessado em converter-se em principal potência regional. Nesse contexto, Riad considera os movimentos democráticos que cresceram no Bahrain como dupla ameaça: uma ameaça interna, porque o movimento mina a legitimidade da monarquia reinante (e, com ela, também a legitimidade da monarquia saudita); e também como ameaça externa, porque põe em risco um equilíbrio estratégico até hoje considerado vital – a oposição entre o Irã e a Arábia Saudita, a partir da fissura que, para Riad seria a fissura que define o Golfo: entre sunitas e xiitas.
Oficialmente, o Irã não explorou essa divisão, porque não tem interesse em confinar-se num ghetto. Em vez disso, os iranianos procuraram ir além do conflito entre sunitas e xiitas, apresentando-se como vanguarda da causa árabe, mediante o apoio que dão aos palestinos e ao Hezbollah.
Nos anos 1980s, o Irã foi o grande perdedor nas divisões sunitas-xiitas que a Revolução Islâmica iraniana tanto fez para fomentar. Só as minorias xiitas no mundo árabe apoiavam o Irã (e mesmo assim, sem unanimidade). Durante a guerra Iraque-Irã, os ba'athistas confiaram numa coalizão baseada no nacionalismo árabe e no panislamismo sunita, o que permitiu que isolassem os iranianos (Saddam Hussein destruiu temerariamente essa coalizão, ao invadir e Kuwait em 1990).
Disso tudo o Irã extraiu a seguinte lição: a Revolução Islâmica não faria avançar sua causa; mas, sim, a militância antiamericana, o apoio aos palestinos e a nova posição do país como potência regional, que daria segurança ao Golfo que nem os sauditas nem os EUA haviam conseguido oferecer. Essa política chegou ao apogeu com a guerra no Líbano em julho de 2006, quando o Hezbollah derrotou Israel, e Hasan Nasrallah surgiu como novo campeão da causa árabe. Mas tudo mudou outra vez com a execução de Saddam Hussein alguns meses depois. A execução foi vista como vingança dos xiistas aprovada por iranianos e EUA.
Os xiitas árabes não são uma 5ª Coluna iraniana: xiitas no Iraque e no Bahrain já entenderam, há muito tempo, os perigos de converterem-se em instrumentos do Irã. São em primeiro lugar e, sobretudo, iraquianos e bahrainis; e lutam para ser reconhecidos como cidadãos plenos nos países nos quais vivem. Mas, como o Hezbollah no Líbano, dependem do apoio iraniano, em ambiente sunita hostil.
A Arábia Saudita está por trás da elaboração de uma grande narrativa que joga os xiitas persas contra os sunitas árabes e na qual os xiitas árabes são vistos como persas que falam árabe (ou como hereges, segundo a doutrina wahhabista). Esse é um dos poucos casos em que a política externa do reino saudita serve-se de justificação religiosa – o que explica a ambivalência que Riad sempre manifestou contra os movimentos sunitas de linha-dura, dos Talibã aos novos jihadistas em Fallujah. Já há algum tempo, a questão palestina passou a ser marginal para os sauditas; só se têm manifestado a favor dos palestinos nos casos em que tenha surgido oposição popular entre povos árabes.
O verdadeiro problema para os sauditas, como para Israel, é a “ameaça iraniana”. Mas aqui a profecia se realiza: ao negar plena cidadania aos xiitas do Bahrain, a Arábia Saudita, de fato, aparece como uma 5ª Coluna iraniana.
E há a questão nevrálgica da Síria. Os sírios são os principais aliados dos iranianos na Região; e todos, dos sauditas aos israelenses, festejariam o fim do governo de Damasco. Mas a ansiedade reina, porque as consequências da mudança de regime, nesse caso, são imprevisíveis. A ideia de que haveria interesse nacional estável e facilmente identificável, que persistiria mesmo que o poder mude de mãos é aplicável nos casos de Tunísia e Egito. Mas aplicar-se-ia à Síria? Qual poderia ser a política externa de uma Síria pós-ba'athistas? Difícil dizer, porque a estratégia regional da família Assad sempre foi intimamente conectada a considerações de política interna.
Durante 40 anos, Damasco seguiu estratégia de permanente tensão com Israel, apresentando-se como defensora do nacionalismo árabe. Mas, simultaneamente, seguiu uma modalidade diplomática de realpolitik: jamais cruzou linhas ‘intransponíveis’ e, simultaneamente, manteve intactas várias alianças. Derrubar o regime sírio hoje implicaria pôr fim a esse jogo sutil e complexo, mas estável; e ninguém sabe a que poderia levar algum outro (qualquer outro) governo sírio.
Um medo do desconhecido paralisa todos os estados em volta da Síria – exceto, talvez, a Turquia, que parece ser o único país vizinho que se prepara para uma era pós-Assad. É bem possível que, quando a poeira afinal baixar, que a Turquia apareça como grande vitoriosa nas convulsões atuais na Região; e que se fixe como um novo pólo de estabilidade no Oriente Médio (evidentemente, se conseguir resolver a eterna questão dos curdos).
Notas dos tradutores
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirO título do artigo nada tem a ver com seu conteúdo. As disputas Téheran X Riade no palco não são de fundo religioso. São de caráter estratégico, de fundo geopolítico e econômico, os vetores duma e doutra atuando no palco do Golfo Pérsico-Arábico. Quem introduziu a briga entre sunitas e xiitas, adormecida desde os séculos VIII e IX da Era Cristã, foram os ocidentais, o Pentágono à frente. Foi nas pranchetas deste que surgiu a falsa tese sobre a insustentabilidade entre a Suna e a Xia.
Quanto ao artigo em-si, não há dúvida que se originou numa mente ocidentalista de esquerda. Olivier Roy nada tem a ver, por exemplo, com um Maxime Rodinson, judeu marxista que descrevia o Islam como se fora um muçulmano de quatro costados. Sua obra-prima, Mahomet, é justamente tida como a melhor jamais escrita sobre o Profeta do Islam. De qualquer modo, o texto de Roy propõe uma discussão bem válida sobre a política das nações médio-orientais.
Vale, portanto, a pena de ser lido, anotado e discutido como resenha diplomática.
Abraços do
ArnaC