Publicado em 14/09/2011 por Urariano Motta*
Recife (PE) - Desde o tempo em que trabalhei no rádio, aprendi que uma entrevista nem sempre deve começar pelo que mais interessa. Pois existiria depois o que se chama edição, onde o fundamental que interessava à pauta assumiria o devido lugar de destaque. Assim fizemos em mais de um “Violência Zero”, esse era o nome do programa, um espaço de direitos humanos no rádio, que então denunciava os criminosos da boa sociedade em Pernambuco.
Mas nunca, nem mesmo no dia em que entrevistamos um espancador de travestis, que afirmava na maior naturalidade odiar gays e assemelhados, nunca tratamos o agressor com desrespeito à sua pessoa, ou dele montamos o que não era real, documentado, em provas e pesquisas anteriores. Isso quer dizer, não lhe púnhamos na boca aquilo que o editor pensara antes, pois mais de uma vez mudamos o imaginado, que não se confirmava na pesquisa viva.
Que diferença para a entrevista de Patrícia Poeta com a presidenta Dilma no Fantástico do último domingo! A primeira coisa a se notar, já no começo, é a diferença de autoridade entre a repórter/apresentadora e a presidenta do Brasil. Entendam o que isso quer dizer: quem mandou em cena foi Patrícia, perdão, Poeta. “Agora vamos trabalhar?”, comandou a moça cuja poesia reside nos longos cabelos.
A edição preservou o constrangimento, a clara insinuação de que a presidenta não estivesse já trabalhando, exatamente para responder à grande autoridade da apresentadora do Fantástico. Que comandava e cruzava os braços.
Quem essa gente pensa que é? Aqui se confirma uma vez mais a história do carregador de quadros de santos em cima de jumento, que ao passar pelas estradas via o povo se ajoelhar e pensava “o quanto sou importante”. Quem monta no veículo TV Globo recebe a sua aura.
Patrícia manda na presidenta, e a edição realça o mando mais adiante em outro momento. Olhem bem, prestem atenção, porque a fala a seguir é da Poeta:
“Vou deixar a senhora falar um segundo exemplo. Tomei seu tempo lá na alvorada, a senhora tem crédito agora. Vou deixar”.
Sentiram a força?
Antes, da autoridade, Patrícia Poeta, vêm muitas bobagens (lembram-se do princípio de edição?), todas desrespeitosas para o cargo e importância da primeira mulher a presidir o Brasil, mulher ex-guerrilheira, torturada e quase morta na ditadura. Pergunta a autoridade do veículo:
“Em uma reunião dessas, por exemplo, tem um momento mais mulher? Bolsa, sapato, filho, neto?”,
e segue, entre menções a fotos de netinho, até atingir o que interessa:
“Poeta: A senhora não imaginava, por exemplo, que fosse ter que trocar quatro ministros em tão pouco tempo, três deles, pelo menos, ligados a denúncias de corrupção, esperava isso?
Dilma: Olha, Patrícia, eu espero nunca trocar nenhum ministro e muitos deles eu não troquei exatamente por isso. Vamos e venhamos. O ministro Jobim, Nelson Jobim, saiu por outros motivos.
Poeta: Mas os outros três...
Dilma: “Eles ainda não foram julgados, então não podem ser condenados”.
Até o sublime instante em que se irmanam editores e repórteres ungidos pelo poder do veículo. Lembrem-se do princípio da edição, o que conduz bobagens até chegar a este ponto:
Poeta: “E como que a senhora controla esse toma lá da cá, digamos assim, cada vez mais sem cerimônia das bancadas? Como é que a senhora faz esse controle?
Dilma: Você me dá um exemplo do “da cá” que eu te explico o “toma lá”’.
Vem um curto silêncio na cena da entrevista. O ar não admite buracos, mas ainda assim há um raivoso e perturbador silêncio. Então volta a verdadeira autoridade, que ali chegou por decisão soberana de todo o povo do Brasil:
“Estou brincando contigo.... Vou te explicar. Eu não dei nada a ninguém que eu não quisesse. Nós montamos um governo de composição. Caso ele não seja um governo de composição, nós não conseguimos governar. A minha base aliada, ela é composta de pessoas de bem. Ela não é composta, não é possível que a gente chegue e diga o seguinte: ‘Olha, todos os políticos são pessoas ruins’”.
A autoridade que vem do veículo onde monta, a cara da entrevistadora Patrícia Poeta é de morder, apesar de palavras em tom de meiga manteiga. Não há mais um morde e assopra. Há um morde e assobia. Quem desejar ver a pegadinha que se frustrou, assista abaixo:
Se houvesse uma edição popular, de toda a entrevista esta frase seria a mais séria: “’Tou brincando contigo”.
E os risos do Brasil ao fundo, que no rádio chamavam BG.
Urariano Motta* – Recife: é pernambucano, jornalista e autor de "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do cabo Anselmo, executada pela equipe do Delegado Fleury com o auxílio de Anselmo.
Artigo enviado por Direto da Redação
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirAo escrever o texto, meu caro Urariano, você bem sabia que não se limitava a contar-nos um mero fato "jornalístico" do programa de matriz estadunidense que a emissora nos impinge há décadas, a cada domingo. Aliás, quase tudo lá é gerado com aquele modo ianque de fazer televisão, inclusive o precedente Faustão miamesco. Até em outras emissoras se detecta a mesma impressão digital, como no Ratinho, que pelo jeito cafona-brega de ser as pessoas pensam que nenhum outro seja mais "brasileiro". Mas não é, não passa de cópia cuspida de programa bem popular nos EUA, cujo responsável não guardei o nome.
O que se vê e ouve são aqueles modos gritados, sensacionalistas, prolatados por locutores e animadores (chamados hoje de apresentadores), metidos a espertos e carregados de malandrices. Prolatam o idioma nacional com solecismos prosódicos, má escolha de palavras, desastres sintáticos que agridem a formação de frases, uso inadequado de tempos e modos verbais, assassinatos de pronomes reflexivos - tudo isso deita raizes nas mesmas fontes modelares, sopradas pelos ventos setentrionais das Américas. Quem tiver tempo e disposição para constatar, ligue-se a um ou dois canais de Tio Sam bem populares e perca o mesmo tempo que perde com a visão das "brasileiras".
Se a linha é a mesma, há royalties em jogo, e não são merrecas. Por um fenômeno que só mexe com o setor audiovisual, a remessa de lucros registra a marca de 60% desses "investimetos", enquanto não passa dos 22% nos outros segmentos de produção multinacional, como a dos infernizantes carrinhos. Acho que nunca vi a entrevistadora de cabelos poéticos. Nem ouvi falar de. Se já aconteceu, não me chamou a atenção. Pelas perguntas que fez a um dos grandes fenômenos políticos nossos - ter uma mulher, e que mulher, inquilina do Alvorada, Torto, Planalto e Rio Negro - imagino-a um ser bem desprovido.
Trabalha numa emissora em que um dos donos (parte brasileira), à época do vozerio anti-ANCINAVE, ousou dizer que o sucesso das redes privadas se devia ao atingimento no âmago da cultura popular brasileira, em nosso modo de ser.
Espantei-me, então, que não aparecesse ninguem para contestar: aquela "cultura" e esse "modo" dito nosso não existiam, em nenhum quadrante do País, foram criados pelas próprias TVs. Conheci uma senhora que, ao ver as mesas postas de cafés-da-manhã, almoços e jantares nas telenovelas, dizia: "Diante dessa riqueza de comidas, nosso povo esfomeado vai revoltar-se!"...
Que nada! Qual o quê! As iguarias agiam como comidas-de-santo em terreiros e camarinhas de ritos afro-brasileiros. Aqueles atores e atrizes venerandos eram respeitados como orixás ou eguns, os bons e maus-caráteres eram como Oxuns, Xangôs, Iansans e Pombas-Giras, Exus de beira de estrada ou de encruzilhadas. Nunca haveria levantes revoltosos contra as comidas das telenovelas, que tinham donos, os "santos das telinhas". Os cabelos longos da entrevistadora da Presidenta de todos os brasileiros - quem sabe? - foram entrevistos por só uns raros como os de Iemanjá. Dilma Roussef não é de telenovela, seu teatro é outro, é o de um Brasil em crescimento, com ainda bolsões de 14 milhões de pobreza abjeta, de misráveis. O mundo dessa mulher é que é poético, como numa recolha do João Cabral em "Cão sem plumas".
ArnaC
(continua)
(comentário continuação do anterior, enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirMas nossa Chefe de Estado e de Governo - será que a dos cabelos "poéticos" sabe algo sobre essa função dúplice? - não se deixou enredar pela mediocridade das armadilhas globais. Estas só colam nos que já são produtos dos 46 anos de manipulações vídeo-eletrônicas, como autônomos do pensamento unificado que a burguesia mandou inocular nos brasileiros, em escala bem superior à da vacinação Salk-Sabin. Compreendo o silêncio odioso que a boboca dos cabelos assumiu. Naquele momento, ela não falava com uma mulher do que ela e seus patrões julgam "comum". O comum da Presidenta Dilma são as multidões dos sem-nada que a elegeram. As malandrices televisivas não chegam a elas. Nem com orixás de velas acesas!
Bravo Urariano!
Abraços do
ArnaC
P.S.: Não seria mais interessante se a da cabeleira poética indagasse sobre a visita que, em breve, a Presidenta Dilma fará à Bulgária, terra do kefir, de onde partiu o cirílico alfabetizador dos eslavos, onde um búlgaro foi acusado de terrorismo por liderar o incêndio do Reichstag, tudo forjado pelos nazistas? Por que não aprofundou os sentimentos de mulher, estes, sim, da Presidenta, em sua primeira visita à terra do pai, em pleno outono de messes douradas? Por que não perguntou se ele conhecera Dimitrov, o pseudo-incendiário, quando militante do Partido Comunista Búlgaro? O subdesenvolvimento das classes dominantes foi sempre muito mais grave que o das massas proletárias e subproletárias
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirO meu email está uma desgraça, de ruim, tenho ainda que entrar na minha pedreira do dia, mas não posso deixar de responder breve à excelência, de gente, que é o nosso “comentartista”, e à gentileza do Castor homem de nova mídia:
ArnaC, a tua mensagem é um novo artigo, que deveria ser escrito por ninguém mais que você.
(Há coisas que se a gente não faz, ninguém mais vai fazer, já vi isso mais de uma vez.)
Essa recuperação da "originalidade" dos Ratinhos é muito boa.
Forte abraço
Urariano