Baby Siqueira Abrão |
Baby Siqueira Abrão de Ramallah (Palestina)
Os relatórios dos serviços de inteligência israelense, no início de agosto, afirmavam que as manifestações em Gaza e na Cisjordânia programadas para setembro, quando a ONU votará o reconhecimento do Estado da Palestina, seriam pacíficas, realizadas longe das colônias judaicas e dos checkpoints. Um relatório parlamentar também divulgado no início de agosto, baseado nos informes das agências de inteligência israelenses, previu uma baixa possibilidade de erupção de movimentos violentos, considerados pelos palestinos “contraprodutivos” à sua causa.
Mais tarde, alguns oficiais das forças armadas, conhecidas como IDF, vieram a público e mudaram o discurso. Afirmaram que, uma vez aprovado o Estado, nas linhas anteriores a junho de 1967, e com Jerusalém oriental como capital, hordas de palestinos marchariam rumo às colônias, para recuperar as terras que lhes pertencem. Detalhe: muitos desses oficiais são colonos e falam em defesa própria. Não escondem que gostariam de atacar palestinos, como se verá mais adiante.
Em 7 de agosto o ministro das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, foi mais enfático. No Knesset, o Parlamento israelense, cercado por repórteres, ele anunciou um setembro “violento e sangrento, numa escala nunca vista”. A mídia, cujo papel é caçar novidades, abriu espaço para declarações dramáticas como: “Quanto mais a Autoridade Palestina fala que só vai operar no campo democrático, mais eu vejo preparações para violência e derramamento de sangue”. Sem oferecer uma única evidência de suas afirmações, Lieberman pediu que o governo sionista cortasse relações com a Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Coube ao porta-voz do ministro, Tizachi Moche, explicar que ele tirara essa conclusão de informes oficiais e de declarações de “autoridades palestinas”. A única declaração, porém, foi a que Hassan Youssef, líder do Hamas na Cisjordânia, deu ao Canal 2 de Israel, também em 7 de agosto. Indagado sobre se as manifestações de setembro poderiam vir a tornar-se violentas, ele respondeu que o povo palestino poderia “explodir a qualquer momento”, dado seu alto grau de frustração.
Essa análise, porém, não é nada confiável, e Lieberman sabe disso. Youssef saiu da prisão, onde passou seis anos, uma semana antes de dar a entrevista ao Canal 2. Nesse tempo, os protestos não violentos espalharam-se por todas as vilas palestinas, firmando-se como instrumento da luta por justiça e liberdade.
“Em setembro, vamos requerer à comunidade internacional, na ONU, que nos ajude a pôr um fim à ocupação israelense. Sempre agimos de acordo com a lei. Ilegal é a ocupação, não as tentativas de acabar com ela”, reagiu Ghassan Khatib, porta-voz da ANP. “Israel está tentando colocar combustível num falso cenário do que acontecerá em setembro”, acrescentou.
Embora as palavras de Lieberman, líder e fundador do partido de extrema direita Yisrael Beiteinu (Israel é nossa casa), parecessem fora de foco à época, hoje começam a fazer sentido. As ações violentas dos colonos contra os palestinos aumentaram muito de agosto para cá. A destruição dos meios de vida dos agricultores, como a queima de plantações e de oliveiras, e os ataques a pastores e rebanhos tornaram-se comuns. A invasão de terras palestinas, a perseguição a moradores e a ativistas internacionais, o ateamento de fogo a mesquitas, o apedrejamento de crianças, tiros de metralhadoras nos campos são práticas intimidatórias constantes. Sem contar o novo bombardeio a Gaza, crime ainda mais grave por contar com armas químicas que usam os gazenses como cobaias.
De acordo com um relatório da International Solidarity Foundation for Human Rights [Fundação Internacional de Solidariedade por Direitos Humanos], em agosto 30 pessoas morreram e 400 foram presas durante as operações israelenses na Palestina. Entre os prisioneiros, 44 crianças, três jornalistas e três parlamentares. Além de Gaza, as regiões que mais sofreram foram Hebron, Belém, Silwan (distrito de Jerusalém), Tulkarem, Salfit, Ramallah e Al-Bireh.
Outro relatório, divulgado em 12 de setembro pela organização de direitos humanos israelense B’tselem, mostra que o IDF não respeita o “direito básico” de protesto dos palestinos. As reações às manifestações pacíficas sempre apresentam “uso excessivo de armas de controle de multidão”, com cânisters de gás atirados diretamente nos manifestantes, de acordo com o documento. Esta jornalista, acostumada à cobertura das passeatas às sextas-feiras, pode testemunhar: o relatório é fiel aos fatos.
Além disso, veio à tona há poucas semanas a notícia de que há cerca de sete meses o IDF vem treinando e armando os colonos com bombas sonoras e de gás, cânisters e balas de metal revestido com borracha. Essa parafernália soma-se às metralhadoras, carregadas de um lado para outro pelos colonos, e aos cães de guarda treinados para o ataque, cortesia do governo sionista.
Na quarta-feira, 7 de setembro, uma reunião com membros da extrema direita israelense, líderes dos colonos e parlamentares começou a se preparar para “possíveis confrontações” caso o Estado palestino seja reconhecido pela ONU nas fronteiras pré-1967. Os colonos sabem que mais cedo ou mais tarde terão de entregar as terras que ocupam a seus legítimos proprietários, os palestinos, mas prometem resistir.
Não faltaram críticas duras à cúpula do IDF, acusado pelo parlamentar Zeev Elkin, do partido Likud, de ter se transformado na “maior lobista da ANP, adotando o conceito de dois Estados”. A crítica à solução de dois Estados é comum entre a direita israelense, que não leva a sério a partilha decidida pela ONU em 1947, estabelecendo a criação de dois Estados, Palestina e Israel. Para eles, a Palestina inteira, partes do Líbano, da Síria, da Jordânia e do Iraque pertencem a Israel em consequência de um “direito histórico” existente apenas no discurso sionista e de seus parceiros, como demonstra Keith W. Whitelam, professor e diretor do departamento de estudos religiosos da Universidade de Stirling, no livro The Invention of Ancient Israel; the Silencing of Palestinian History [A invenção do Israel antigo; silenciando a história palestina].
A crítica de Elkin volta-se ao fato de o IDF ter “preferido” ceder às forças de segurança da ANP a responsabilidade de cuidar dos incidentes envolvendo palestinos. Mais uma vez o parlamentar mostra desinformação. Essa responsabilidade foi negociada nos acordos de Oslo, segundo os quais a ANP deve cuidar da segurança das áreas A, que correspondem às cidades – onde se darão as manifestações. As zonas B, entre as cidades e as vilas, estão sob os cuidados de palestinos e israelenses; as áreas C, próximas ao muro do apartheid, são policiadas pelos israelenses. O IDF simplesmente cumpre os acordos.
Para resolver o problema, Yaakov Katz, da União Nacional, aliança dos partidos nacionalistas de Israel, propôs que os colonos organizem marchas em pontos estratégicos da Palestina, para encontrar-se com as passeatas que, imagina a direita sionista, os palestinos farão na direção das colônias. Segundo Katz, desse modo o IDF será obrigado a agir, a fim de impedir que os colonos entrem nas cidades.
Yoni Youssef, porta-voz dos colonos de Sheik Jarrah, em Jerusalém oriental, foi mais longe: invocou a Lei Dromi, que permite a proprietários matar aqueles que entram em suas casas. Para ele, assim seria possível atirar nos palestinos que tentassem se aproximar das residências judaicas. O problema é que, em Sheik Jarrah, colônias israelenses e moradias palestinas ficam muito próximas, às vezes frente a frente. Colonos podem assassinar palestinos que simplesmente tenham saído às ruas e depois alegar que eles se dirigiam às suas casas.
Nisso serão ajudados pelos voluntários convocados por La Ligue de Defense Juive (A Liga de Defesa Judaica, LDJ), sediada na França, que de 19 a 25 de setembro prometem defender seus “irmãos” da Cisjordânia – isto é, os colonos – diante das “agressões dos ocupantes palestinos e, portanto, reforçar os dispositivos de segurança das vilas judaicas de Judeia e Samaria”. Repare: os “ocupantes” são os palestinos, não os colonos, e a Cisjordânia é chamada de “Judeia e Samaria”, nomes bíblicos onde supostamente viveram judeus. A viagem é reservada “aos militantes com experiência militar”.
O que os representantes da extrema direita não sabem é que quem vai cuidar da segurança durante as manifestações não é o IDF. É a polícia. Em entrevista à esta repórter, a porta-voz das forças armadas Avital Leibovitch afirmou que o exército irá apenas “observar” as manifestações pacíficas. “Se as manifestações forem mesmo pacíficas, o IDF não tem por que interferir”, disse ela.
Caso os colonos entrem nas vilas, para atacá-las, ou decidam marchar para as cidades, é a polícia israelense que irá detê-los. E, segundo Avital, terá carta branca para agir a fim de evitar excessos. Além disso, esquadrões de alerta compostos por reservistas estarão nas áreas mais sensíveis, “procurando impedir atritos”. O IDF só entrará em cena se as coisas saírem do controle, declarou a porta-voz. “Não queremos derramamento de sangue. Aprendemos com a Nakba. Usaremos apenas armas não letais, como o caminhão skank [gambá] e o gás lacrimogêneo”, disse ela. E garantiu que a água fétida jogada nos manifestantes pelo skank não contém elementos químicos: “São substâncias orgânicas”.
E quanto às “linhas vermelhas”, que marcam até onde os palestinos podem ir sem levar tiros dos colonos? “Ah, eles sabem muito bem onde ficam essas linhas”, respondeu Avital. “Mantemos conversas regulares com eles”, completou. Ao checar a informação com líderes populares, esta repórter descobriu que eles nunca ouviram falar nessas linhas. Provavelmente, só as autoridades palestinas as conhecem. Por que não avisam a todos, se não querem provocar tragédias? Mahmmoud Abbas, presidente da ANP, em reunião com os coordenadores da campanha Palestina: Estado 194, que já acontece em todo o país, pediu que ninguém se aproxime das colônias nem enfrente seus moradores. Pelo visto, o “trabalho sujo” ficará por conta deles.
Tampouco estão descartados “trabalhos internos”, isto é, pessoas contratadas pela extrema direita israelense para agir como provocadoras, dando início a reações sangrentas da parte de Israel.
O ministro Avigdor Lieberman já avisou que vai enviar dinheiro e armas ao PKK, o Partido Trabalhista do Curdistão que, há anos, luta contra a Turquia e que recentemente sofreu pesados ataques do exército turco. Trata-se de retaliação contra o governo do primeiro ministro R. T. Erdogan, que cortou relações diplomáticas com Israel e prometeu uma série de ações no Mar Mediterrâneo (“para que Israel não navegue mais tão à vontade nele”) depois da divulgação do Relatório Palmer.
Patrocinado pelo secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, o relatório afirma que o bloqueio marítimo a Gaza não é ilegal e que Israel tem o direito de impedir que navios estrangeiros aportem no litoral palestino. Isso isentou o país de sanções pelo assassinato, em 31 de maio de 2010, de nove pacifistas turcos, e pelo ataque ao Mávi Mármara, navio de bandeira turca que participava da primeira Frota da Liberdade.
Se Lieberman pode agir assim contra a Turquia, por que faria diferente com a Palestina? Mercenários não faltam no mercado. Basta contratá-los para ter um setembro “violento e sangrento, numa escala nunca vista”. Exatamente como quer Lieberman.
Artigo publicado pelo Brasil de Fato
Enviado pela autora à redecastorphoto
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