Mahan Abedin |
12/9/2011, Mahan Abedin, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Quando os EUA e aliados choram os ataques de há dez anos, vale a pena pôr aqueles eventos e suas consequências numa perspectiva intelectual e geopolítica coesa, que faça sentido.
O dia 11/9/2001 ficou na história como data dos mais audaciosos e mortais ataques terroristas da história moderna. O perfeito timing da ação ampliou o impacto do que aconteceu nos dois prédios gêmeos e no Pentágono – e deu aos ataques significado geopolítico não merecido. As atrocidades aconteceram num momento de profunda confusão intelectual sobre o rumo de várias questões mundiais, sobre, afinal, a própria natureza das relações internacionais, na aurora de um novo século.
Os anos 1990s haviam assistido ao crescimento dramático da teoria da “globalização”, com universidades em todo o mundo ocidental pontificando sobre o declínio do estado nacional e a ascensão de vasta gama de atores não estatais, de empresas multinacionais a redes transnacionais de terrorismo, para preencher o vazio.
À primeira vista, o assalto da al-Qaeda aos EUA pareceu dar credibilidade a essas teorias, e nem o mais empedernido realista escaparia ao feitiço da simbologia: uma pequena organização terrorista, plena de idiossincrasias, desmoraliza a maior potência da história. Mas, passado o impacto imediato, a natureza e a intensidade da resposta dos EUA e seus aliados rapidamente puseram fim a teorias liberais da globalização e, mais uma vez, obrigaram a repor as principais nações-estados no epicentro das relações internacionais.
O “11/9”, como passou a ser chamado, parece ter deixado dois restos-legados duradouros, os quais, ambos, modelarão a política internacional na primeira metade do século 21. Primeiro, o esforço concentrado dos EUA para acumular a máxima hegemonia possível, para tentar gerir o próprio declínio, que os EUA temem que venha com a segunda metade do século, assegurando ‘pouso suave’. Segundo, a provável evolução política do Islã, como fator estável na política regional.
Catarse estratégica
Inevitavelmente, os ataques terroristas do 11/9 passaram por intensa e prolongada avaliação política, por analistas que recomendavam a presença decisiva dos EUA no cenário mundial e analistas que se opunham a ela. Também inevitavelmente, surgiram muitas teorias conspiracionais, a maioria das quais centrada na premissa de que teria havido interferência do governo dos EUA nos ataques, na expectativa de colher benefícios estratégicos.
A narrativa oficial sobre os ataques do 11/9, corporificada no relatório da comissão oficial de investigação, deixa sem respostas muitas perguntas e não é resultado de investigação exaustiva; mesmo assim, é, provavelmente, a mais próxima que há, da verdade.
Os chamados jihadis da al-Qaeda que planejaram e executaram os ataques contra os dois prédios do Centro Comercial Mundial em New York e contra o Pentágono em Washington DC agiram, muito provavelmente, movidos por seus próprios desejos e projetos políticos e estratégicos. Mas houve muita especulação, muitos erros de informação jornalística e análises quase sempre superficiais sobre as origens, a natureza da ideologia dos jihadis e sobre a precisa relação entre eles e movimentos políticos mais amplos e mais conhecidos no mundo árabe.
Ingrediente importante nessa confusão foi o crescimento astronômico da indústria dos “estudos sobre o terrorismo” nos EUA e, em menor escala, em toda a Europa ocidental, indústria que se apresenta como produtora de pesquisa independente, mas que, longe disso, existe exclusivamente como arrimo ou das políticas oficiais ou de uma chusma de interesses políticos e ideológicos – privados –, nos EUA, a maioria dos quais são abertamente calvinistas e, em muitos casos, islamofóbicos.
O trabalho determinado de várias entidades e empresas político-intelectuais nos EUA (com raízes profundas no governo e nas grandes corporações empresariais) para construir laços diretos entre os ataques terroristas e o Islã político e, portanto, laços também com o próprio Islã, não é apenas manifestação de visão intelectual e política estreita, que deixa sem considerar um muito amplo conjunto de questões políticas, históricas e teológicas; é trabalho também intelectualmente desonesto e impressionante exemplo de perversão intelectual.
Não se trata de desassociar completamente os ataques aos EUA, de um lado, e, de outro, a perspectiva ideológica, política e estratégica do pensamento árabe islamita dominante e, mais especificamente, da Fraternidade Muçulmana (FM) e de suas décadas de trabalho para reformular toda a infraestrutura política e social do mundo árabe pelo parâmetro da própria específica visão islâmica da própria FM.
Mas, dada a natureza religiosa da ideologia da al-Qaeda e, mais importante, dada a evidência de que o movimento formula em termos religiosos os seus objetivos políticos e estratégicos, o mais provável é que haja conexões indiretas e polinização cruzada de ideias e visões entre os vários principais grupos islâmicos. Para realmente entender essas conexões é preciso pesquisa séria, detalhada, e alto padrão de seriedade e respeitabilidade intelectuais.
O fator motivador mais imediato para os ataques do 11/9 foi a maturação de um conjunto de ressentimentos profundamente enraizados, reais ou sentidos como tais, contra as políticas dos EUA no mundo árabe e no mais amplo mundo muçulmano. As décadas de apoio que os EUA garantiram a regimes árabes autoritários, justificadas pela busca de segurança no campo da energia, afetaram profundamente a rua árabe, ressentimento fundo que foi vorazmente explorado pela al-Qaeda, que se autoapresenta como vanguarda da opinião pública árabe e muçulmana.
A aquiescência dos EUA (em vários casos o apoio direto) com o papel desestabilizador que Israel desempenha no Oriente Médio, também foi profundamente ressentida e, mais uma vez, também pôde ser facilmente explorada por grupos que se apresentam como vanguarda da consciência no mundo muçulmano.
Motivações mais profundas podem ser encontradas na experiência direta dos jihads árabes no Afeganistão nos anos 1980s; e a crença genuína (com a correspondente húbris) de que o envolvimento da chamada Jihad afegã teria sido fator decisivo que forçou a retirada dos soviéticos do Afeganistão em 1989, o que teria precipitado o colapso da União Soviética, dois anos depois. Alguns dos líderes da al-Qaeda contaram com que o movimento teria destino semelhante na disputa contra os ainda mais formidáveis EUA.
Essa surpreendente fantasia explica em boa parte que, embora a al-Qaeda e seus aliados sejam adeptos da propaganda e de construir narrativas complexas, sejam incapazes de produzir pensamento estratégico elaborado e próprio.
O fato de o terrorismo da al-Qaeda ter-se conectado com as correntes intelectuais e ideológicas mais amplas do pensamento árabe islamita é resultado de a al-Qaeda ter sabido explorar, com oportunismo, a inabilidade da Fraternidade Muçulmana, que jamais conseguiu expor, nem em versão mínima, seus objetivos políticos. Nesse ponto, a al-Qaeda respondia à frustração dos elementos mais radicais, nas franjas da Fraternidade Muçulmana e grupos associados, que declaradamente rejeitavam a violência, ao mesmo tempo em que, em segredo, esperavam ansiosamente qualquer chance de acertar golpe forte contra a fonte ressentida de seus fracassos.
A soma desses fatores levou a grau altíssimo de estresse e de expectativa, que direta e indiretamente levaram à concepção e ao planejamento dos ataques, cuja execução eventual visava a alcançar uma espécie de catarse estratégica, e a conseguir ampliar o conflito com os EUA, levando-o a um novo nível.
O efeito imediato da resposta de vingança e retaliação dos EUA jogou a favor da agenda da al-Qaeda, resposta automática, não refletida, que foi reforçada em seguida com conteúdos intelectuais-ideológicos incorporados sobretudo na declaração de uma “guerra ao terror” – contra-ataque retórico surpreendentemente inadequado e pouco inteligente, manifestação do que há de mais superficial na cultura política dos EUA.
Mas é erro supor que a resposta de médio e de longo prazo dos EUA, em campo – especificamente o maior envolvimento militar no Oriente Médio e Sul da Ásia, além do avanço gradual rumo à Ásia Central (que a Rússia, por muito tempo, considerou quintal seu) – teria sido diretamente influenciada pela experiência do 11/9, na busca da chamada guerra ao terror, que os estrategistas do Pentágono, adiante, rebatizaram de “Guerra Longa”.
Apesar do indiscutível golpe no prestígio nacional norte-americano, os ataques do 11/9 serviram aos interesses dos EUA, porque levaram as melhores cabeças dos EUA a focarem-se no estudo das perspectivas futuras, em inúmeros campos de atividade profissional, dos militares aos intelectuais de academia. Todos se puseram a estudar a questão do declínio nacional dos EUA e os melhores modos de adiá-lo, e, logo depois, de administrá-lo, quando de fato for realidade estabelecida. As políticas que os EUA tentam implantar atualmente na Eurásia, sejam quais forem os objetivos estratégicos e políticos declarados, visam todas a criar ambiente intelectual e estratégico favorável àqueles dois objetivos.
A transformação do Islã político
O fato de que muçulmanos terem sido a força motriz que levou aos ataques do 11/9 levou todos, inevitavelmente, a ter de considerar o papel do Islã, sobretudo do Islã político, no mundo contemporâneo. Nem toda a publicidade, que levou o assunto às massas, foi força só negativa, o que se vê no aumento dramático do número de conversões ao islamismo em todo o mundo, inclusive na Europa, na Austrália e nos EUA, regiões tradicionais do império judeu-cristão.
Muitos jornais e televisões ocidentais foram rápidos ao apontar um dedo acusador contra o Islã político. Empresas e veículos de comunicação ainda mais míopes tentam ainda implicar um fenômeno vasto e muito diversificado como o Islã, nas artes negras do terrorismo e da chicana política.
O Islã, como religião planetária, não é mais nem menos violenta que qualquer outra religião ou ideologia comparável. Nesse sentido, a vasta maioria dos atores políticos no mundo árabe e muçulmano que se autodescrevem ou são descritos como “islamitas” têm-se manifestado publicamente contra a violência política.
Mesmo assim, a proximidade ideológica entre os Jihadis e os islâmicos em geral gerou dúvidas legítimas (desde que não exageradas) sobre a visão política e, mais especificamente, sobre o comportamento potencial desses atores políticos, no caso de virem a ocupar posições de poder político em seus respectivos países.
Os regimes árabes autoritários e Israel trabalharam para explorar, precisamente, esses medos, desde os primeiros momentos depois do 11/9, em patética tentativa para, de uma vez por todas, remover do mapa político todos os islâmicos. Esses esforços, inspirados em questões de segurança, pouco conseguiram, porque não deram o peso devido à resiliência ideológica e a conectividade social dos movimentos islâmicos no Oriente Médio e Norte da África.
Imediatamente depois do 11/9, os islâmicos perceberam os perigos que se formavam no horizonte, mas também identificaram ali ampla gama de oportunidades, dentre as quais – e a principal – a evidência de que o Islã e os atores políticos que mais intimamente se identificam com o Islã, haviam sido lançados para o topo da agenda global e política, presentes em todas as manchetes de jornais e televisões, em todo o mundo; foi efeito dos ataques terroristas.
Os mais espertos, nas fileiras islâmicas, invadiram imediatamente, e ativamente, o debate ocidental contra o terrorismo, não pensando em subvertê-lo, mas em modificar, pelo menos, alguns dos traços mais desagradáveis, conceitualmente mais errados e intelectualmente mais distorcidos daquele debate.
Até aqui, no que tenha a ver com as atenções da mídia e dos políticos, o 11/9 trabalhou mais a favor dos islâmicos, não só no mundo árabe, mas em todo o planeta. Mas é no mundo árabe, território do Islã, que o Islã político pode afinal mostrar se é ou não capaz, em termos de versatilidade e visão política, para cumprir suas promessas de reformas e progresso autênticos.
O 11/9 criou condições favoráveis de propaganda e “mídia” para a narrativa islâmica; em seguida, a Primavera Árabe fez começarem a surgir condições políticas e socioeconômicas para a implementação da agenda política islâmica. Afinal, a extensão de sucessos ou fracassos não será avaliada pela reação de estados como o Egito à possibilidade de acolher islamitas no governo, mas, sim, pelo resultado das lutas ideológicas internas, dentro do próprio movimento islâmico.
No que tenham a ver com a Fraternidade Muçulmana no Egito, as principais lutas ideológicas travam-se entre (a) uma nova geração de reformadores e pensadores progressistas, que querem aprofundar reformas socioeconômicas, e (b) a geração mais velha, ou envelhecida, de islâmicos conservadores cuja visão pouco alcança além de uma muito superficial pregação a favor da implementação também superficial da Xaria islâmica.
Para serem bem sucedidos no mundo político, os islamitas árabes terão de passar por importante transformação, não só em termos de visão, mas também em termos táticos, das ações diárias indispensáveis a implementar qualquer nova visão.
Os dois restos/legados mais duradouros do 11/9 aqui alinhavados – a saber: a luta dos EUA para conseguir acumular mais e mais poder nacional na primeira metade do século 21, para ter melhores condições para administrar o declínio que virá na segunda metade do século; e as dores do parto de uma nova geração de políticos islamitas no mundo árabe – , mais cedo ou mais tarde estarão em contato íntimo. Se haverá colisão ou não, depende de o quanto os islâmicos conseguirão, na trilha de converterem-se, eles mesmos, em fator de estabilização da política regional, entrincheirados fundamente na estrutura de governos nacionais.
Enquanto sua segurança energética não for diretamente ameaçada, os EUA são capazes de conviver com islamitas árabes no poder – mais ou menos como os EUA conviveram durante as últimas três décadas com a República Islâmica do Irã. Entendimento mais estável e duradouro só será possível se os EUA modificarem suas políticas regionais, a começar, e principalmente, o apoio aparentemente sem restrições e incondicionado, dos EUA a Israel.
Por mais que seja fantasioso, pelo menos no futuro hoje previsível, esperar que os EUA abandonem Israel ao próprio destino, um apoio um pouco mais racional, com condições mais claras e explicitadas ao estado judeu, seria passo importantíssimo para fazer avançar consideravelmente as condições geopolíticas subjacentes na região, com resultados benéficos, de longo prazo, para os interesses de EUA no Oriente Médio e no norte da África.
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