segunda-feira, 12 de setembro de 2011

É preciso demolir o prédio Freedom Tower [1]

10/9/2011, Tom Engelhardt, Counterpunch  e Asia Times
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Chega. Acabou. 

Estou falando das cerimônias do 10º aniversário do 11/9, e tudo que as acompanha: a leitura solene dos nomes dos mortos, o repicar de sinos, as homenagens aos primeiros que apareceram para ajudar, a reunião de dois presidentes, a inauguração do novo memorial, os momentos de silêncio. E da construção que nunca para. 

Fechar aquilo lá. Fechar. Fechar o Marco Zero. Adeus turistas. Fechar o “Reflexo da ausência” [orig. “Reflecting absence”] o memorial erguido sobre “as pegadas” das antigas torres, com as árvores, as piscinas gigantes, as muitas quedas d’água – e o melhor é que tudo seja fechado ainda antes da inauguração, depois de amanhã, domingo. Parem as máquinas que estão construindo o Museu Nacional do 11/9 (subterrâneo), com inauguração prevista para 2012. Que nunca seja inaugurado.

É preciso demolir a Torre da Liberdade (novo nome do prédio 1 do Centro Comercial Mundial [orig. World Trade Center], escolhido para nos fazer esquecer que as guerras norte-americanas ‘por liberdade’ nada têm a ver com liberdade), 102 andares “do mais caro arranha-céu jamais construído nos EUA”. (Custo estimado: $3,3 bilhões.) 

Parem imediatamente a construção do prédio-monumento à húbris, à arrogância, mais de meio quilômetro de altura, projetado nos dias de glória de George W Bush e que se destaca contra o céu de Manhattan como provocação ensandecida aos terroristas do futuro. Ponham abaixo também o que já exista das três outras torres de escritórios que estão sendo erguidas, negócios azeitados pelos 11 bilhões de dólares do programa estatal de reconstrução. 

Temos de nos livrar de tudo isso. Se alguém algum dia quisesse preservar, para sempre inesquecível o 11/9, melhor seria deixar lá, intocadas, as ruínas descomunalmente gigantescas das torres destruídas. 

Que cada norte-americano pergunte a si mesmo: dez anos já vividos da era pós-11/9, será que ainda não aprendemos nada? Zero? Coisa alguma? 

Se tivermos algum respeito genuíno pela história da humanidade, ou se nos restar alguma decência humana, não será hora de arrancar o Band-Aid que encobre nossas chagas, e arrancar para sempre o 11/9 de nossa consciência coletiva? 

Quem queira conservar alguma memória, alguma lembrança, algum luto, que, pelo menos, ponha-se a gritar que a morte de seus entes queridos NÃO PODE ser invocada para explicar as guerras inexplicáveis no Iraque e no Afeganistão e a nossa (“Oh! Como é global a minha guerra!”) “guerra ao terror”. 

Que ninguém nunca mais invoque o 11/9 para manter o Pentágono e o “estado nacional de segurança abarrotado de dinheiro”. 

Que ninguém nunca mais invoque o 11/9 para justificar agressões às liberdades civis, cada um e todos os procedimentos de vigiar cidadãos nos EUA, as novas apalpações, os novos “dispa-se” que mantêm o medo em níveis altíssimos, e deixam à vista o estado de “segurança da pátria”. 

Os ataques de 11/9 foram, em todos os sentidos, horríveis. E o mais triste é que as vítimas daquelas monstruosidades suicidárias foram e continuam até hoje maltratadas, desde aquele dia, sob a máscara de um falso respeito, de uma falsa rememoração. 

Os EUA tornaram-se dependentes dos cadáveres de 11/9 – que não se podem defender eles mesmos contra o modo como vêm sendo usados – como explicação com mil e uma utilidades da nossa inexcedível bondade e do horror que outros fizeram desabar sobre nós. Simultaneamente, apagam-se os muitos mortos – calculados em novas torres, quantas seriam? – que os EUA provocaram e continuam provocando no Iraque, no Afeganistão, sangue que mancha as nossas mãos. 

Não chegou afinal a hora de esquecer as mentiras? De deixar partir os mortos? Por que tanto insistir em repetir o mantra do 11/9, como culto de alguma religião antiga, se todos já sabemos que os EUA, como nação, não sabemos o que fazer do nosso passado de guerras de agressão – e, pior ainda, que nada fizemos para merecer absolvição? 

O melhor que teríamos a fazer seria entregar ao esquecimento o 11/9. Se, pelo menos, pudéssemos esquecer! Claro que não podemos. Mas, pelo menos, poderíamos pôr fim às cerimônias-espetáculo. 

Podemos, sim, parar de recorrer ao 11/9 para explicar o inexplicável. Podemos, sim, parar de usar aqueles mortos para que os EUA, como nação, finjam que se sentem um pouco melhores. Não somos nação que mereça qualquer consolo. Que, pelo menos, deixássemos os mortos em paz, e cuidássemos, nós mesmos, de nos olhar, nós, os vivos, com menos condescendência. 

Cerimônias da húbris, do orgulho arrogante 

Menos de 24 horas depois dos ataques de 11/9/2001, o primeiro jornal já batizara o local, em New York, de “Marco Zero” [ing. “Ground Zero”]. Como se alguém precisasse de algum sinal de que estávamos já descarrilando, como avaliação errada do que realmente acontecera. Puseram-se então aos gritos de “agora, chega!” 

Antes daquele dia, a expressão “marco zero” só tivera um significado: sempre designou o ponto em que a bomba atômica explodiu em Hiroxima. 

Os fatos do 11/9 são, nesse sentido, bem simples. Não foi ataque nuclear. Não foi o apocalipse. A nuvem de poeira onde antes houvera as torres, não era cogumelo, nem a poeira era radiativa. A civilização não estava ameaçada de morte. Sequer a existência dos EUA foi ameaçada. Sequer a vida da cidade de New York. 

Espetacular como imagens, e terrível pelo número de vítimas, a operação não foi mais tecnologicamente avançada que o ataque falhado contra uma das torres do mesmo Centro Comercial Mundial em 1993, por radicais que alugaram um caminhão Ryder e o carregaram de explosivos. 

Ao lado da primeira irrealidade, logo veio a segunda. Quase imediatamente, Republicanos conhecidos, como o senador John McCain, acompanhados do presidente George W Bush, de altas figuras do governo e, pouco depois, num frenético rufar de tambores de apoio e concordância, toda a imprensa-empresa dos EUA, decidiram que “Estamos em guerra”. Aconteceu exatamente assim. Apenas três dias depois dos ataques, Bush declararia que aquela seria “a primeira guerra do século 21”. Qual o problema? Simples: o problema é que não havia guerra alguma. Os EUA não estávamos em guerra. 

Por mais esforço que a imprensa-empresa tenha investido para implantar essa fantasia, o Marco Zero não foi Pearl Harbor. Al-Qaeda nunca foi o Japão, nem a Alemanha Nazista. Sequer a União Soviética. A Al-Qaeda nunca teve exército, não tem dinheiro suficiente para tanto, não é Estado (embora conte com a proteção mínima do fraco governo do Afeganistão – terra das mais miseráveis, mais pobres, mais atrasadas do planeta). 

E mesmo assim – mais um sinal de para onde os EUA estávamos indo – quem quer que sugerisse que não havia ato de guerra, que o ataque fora crime e exigia ação da polícia internacional, era alvo de risadas (ou de humilhação ou de insulto) e expulso dos lares norte-americanos [2]. E assim o império preparou a retaliação (exatamente como Osama bin Laden desejou que o império fizesse), numa “guerra” apocalíptica, planetária, guerra para dominar, mascarada como guerra para sobreviver. 

Enquanto isso, o populacho foi bombardeado com propaganda, repetitiva, massiva, de costa a costa, dos ritos do 11/9, enfatizando que os norte-americanos teriam sido as maiores vítimas, eram os gloriosos sobreviventes e seriam, no futuro, os mais fortes dominadores do planeta Terra. 

Assim, os mortos do 11/9 foram convertidos em agentes potenciais de recrutamento, a serviço de um revitalizado American way of war [modo americano de fazer guerra]. 

Por tudo isso, nos curtos meses de “missão cumprida” depois de caírem Kabul e, em seguida, Bagdá, a arrogância norte-americana, a húbris, não conheceu limites. E foi naquele momento – não no 11/9 – e foi essa arrogância sem limites, que inspiraram e ainda inspiram a construção dessa gargantuesca “Torre da Liberdade” e do projeto imobiliário de 10 bilhões de dólares, à guisa de memorial erigido no local onde ocorreram os ataques. 

O memorial que lá está – inaugurado ontem, 11/9/2011. É memorial àquela húbris, memorial erigido à arrogância imperial. 

No dia que marca 10 anos do 11/9/2001, para potência imperial em frangalhos, visivelmente decaída, visivelmente em deterioração, que se debate à beira do desastre financeiro, da paralisia política, que vive tempos de crise econômica sem precedentes, em que a infraestrutura está em desintegração, que não oferece emprego aos seus cidadãos, que lhes tirou empregos, moradia, assistência médica pública... tudo isso já deveria ser evidente e óbvio. Mas não. Ainda nada nos dizem, aos norte-americanos, sobre a terapia de choque de que precisamos. 

Enterrar as piores carências da vida dos norte-americanos 

Mesmo hoje, é lugar comum falar do Marco Zero como “Campo Santo” [3]. Nada mais falso. Dez anos depois, é campo desfigurado, e nós o desfiguramos. Tudo poderia ser diferente. Os ataques do 11/9 poderiam ter sido como a Blitz, em Londres na 2ª Guerra Mundial. Algo que se recordasse para sempre com orgulho, queixo trêmulo e tudo. 

E se tivéssemos de recordar só a reação de quem estava em New York City, vivos e mortos, os primeiros a reagir e os últimos a aparecer, os que criaram memoriais improvisados e centrais de mensagens para localizar os desaparecidos em Manhattan, ainda poderíamos lembrar com orgulho, do 11/9. 

Em termos gerais, os novaiorquinos são respeitosos, calorosos, atenciosos, não vingativos. Nada tinham planejado, antes do dia 12/9/2001, que os ajudasse a enfrentar aqueles cerca de 3.000 mortos. Não estavam preparados no momento da catástrofe para – como disse o secretário da Defesa Donald Rumsfeld, em formulação clássica – “ser massivo. Remexer em tudo, varredura total. Coisas relacionadas e coisas sem relação alguma”. 

Infelizmente, não eram as medidas que o momento pedia. Como resultado, os usos que demos ao 11/9 na década que transcorreu desde aquele dia só fizeram destacar os traços de covardia, não de coragem. Se permitimos que o 11/9 seja usado na próxima década, como foi usado na década passada, os EUA passaremos à história como nação de covardes. 

Poucos eventos nesse planeta dos vivos são mais importantes, ou mais humanos, que o enterro e a lembrança dos mortos. Os seres de Neanderthal já enterravam os mortos, talvez com flores. Há dezenas de milhares de anos, os primeiros humanos, de Cro-Magnon, já faziam cerimônias elaboradas de atenção aos mortos, um deles, pelo menos, foi encontrado envolto em mortalha na qual se bordaram 3.000 contas de marfim, objeto de reverência talvez e, mesmo, para que fosse lembrado. Tudo que se sabe da pré-história do homem, dos primórdios da história, foi aprendido de túmulos construídos para os mortos. 

Claro que é nosso dever, nesse vale de lágrimas, lembrar os mortos, os mais próximos e os mais distantes. Muitos dos que amavam e eram próximos das vítimas do 11/9 certamente apreciam as cerimônias anuais celebradas em homenagem a esposas, maridos, amantes, crianças, mães, pais, irmãos, irmãs. Merecem um memorial, em nome do pesadelo do 11/9. Mas os que não morremos não merecemos memorial algum. 

Se o 11/9 foi pesadelo, o memorial e o Marco Zero apresentados como locais “sagrados” nada são além de cheque em branco que permitiu criar os “EUA, estado de guerra”, começo de uma viagem sem fim rumo ao inferno. 

O memorial e o Marco Zero ajudaram a empurrar os EUA para campos de morticínio, que cobrem de vergonha os mortos do 11/9. 

Todos os mortos, claro, serão esquecidos, mais cedo ou mais tarde, por mais que nos agarremos às lembranças e por mais memoriais que se construam. Guardo comigo um memorial privado pelo qual homenageio meu pai e minha mãe, mortos. Sempre que folheio o álbum de fotos da infância de minha mãe, só reconheço o rosto dela cercado de rostos desconhecidos, e sei que já não há ninguém na face da terra que pergunte por eles. E quanto eu morrer, esse meu memorial mínimo em homenagem àqueles mortos irá comigo. 

Esse, mais cedo ou mais tarde, será o destino de todos que foram assassinados dia 11/9/2001, naqueles prédios em New York, naquele campo na Pensilvânia e no Pentágono, além de todos que sacrificaram a vida tentando salvá-los, ou que estejam morrendo hoje, por ferimentos daquele dia. Nessas circunstâncias, quem não pensaria em relembrá-los de modo especial? 

É terrível pedir aos que ainda choram os mortos do 11/9 que não se prestem ao espetáculo público da lembrança. Mas muito pior é o que se vê: repetidas solenidades em que se homenageiam, não mortos amados, mas sempre, e só, o estado de guerra em que os EUA converteram-se e a plena realização dos mais ensandecidos sonhos de Osama bin Laden. 

A memória é, em geral, importante patrimônio de todos. Mas nesse caso, sairemos melhores disso tudo, se esquecermos. 

É hora de enterrar todas as misérias que cresceram na vida nos EUA desde o 11/9/2001 e todas as cerimônias que santificam aquelas misérias, anualmente, há dez anos. O melhor é fazer o funeral dessas misérias no mar, com Bin Laden. De modo que, livres da guerra, os EUA possamos relembrar nossos mortos como deve ser, sem espetáculo, longe das câmeras de televisão: em silêncio. 

Mas, sobretudo, em paz.




Notas dos tradutores
[1  Freedom Tower, “Torre da Liberdade”, é o nome ridículo que a empresa construtora deu a um dos vários prédios que estão sendo construídos no local onde ficavam as torres gêmeas do World Trade Center que Osama bin Laden pôs abaixo, dia 11/9/2011 – no que é e por muitos anos continuará a ser o mais impressionante ato de guerra de todos os tempos, disputado e vencido no coração do território do inimigo. Veja o Projeto do prédio.  A construção desse conjunto de prédios foi matéria do noticiário “Bom dia Brasil”, da rede Globo em 9/9/2011. O artigo que aí vai, portanto, é resposta também àquela baboseira desnoticiosa, desinformativa e de ativa propaganda imobiliária-ideológica antijornalística. 
[2] Sobre isso, ver CHOMSKY, Noan, 2011, “Havia alternativa? Revisitando o 11 de setembro uma década depois”, em português, em vários blogs, entre os quais Esquerda.net. Para Chomsky, os ataques do 11/9 deveriam ter sido objeto de denúncia à polícia internacional, prisão dos denunciados, se condenados e fim de papo.  
[3] Hollowed Ground” é título de um filme de horror (2007) (em  ); nesse caso, pode ser traduzido como “cemitério mal assombrado”. Grafado como “Hollowedgrounds” é título de um documentário (2009) sobre vários cemitérios onde estão enterrados, em todo o mundo, soldados norte-americanos; nesse caso, pode ser traduzido como “campo santo”.

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