domingo, 4 de setembro de 2011

Imprensa-empresa, voto e eleições “midiáticas”

Engambelação de proporções shakespeareanas!
28/8/2011, inspirado em Chris Hedges, Truthdig, “A marcha eleitoral dos trolls” 
Excerto traduzido e comentado pelo Coletivo da Vila Vudu

Shakespeare, Coriolano [1] (nomes dos personagens e falas hipertraduzidas.
Nenhum significado foi alterado nas falas. )
Epígrafe acrescentada pelos tradutores

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – Sobre esse ponto repitam e repitam: que ele aspira ao poder da tirania, que quer ficar 20 anos no poder. Caso consiga safar-se, digam que não respeita o povo e que, até hoje, só distribuiu esmolas, embora diga que redistribui riqueza.
[Entra um jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão)] Como é? Coriolano aceitou ser julgado. Ele vem ou não vem, para ser julgado pela assembleia do povo?

Jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) – Já está chegando.

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – E quem vem com ele?

Jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) – Os deputados e senadores que fazem tudo que ele manda.

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – Conseguiste organizar a lista, por cabeça, das vozes que nos apóiam?

Jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) – Consegui. Está pronta.

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – Organizaste a lista conforme nossos acertos com partidos e tribos?

Jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) – Sim.

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – Então, depressa, convoquem o povo. No momento em que me ouvirem dizer: “De acordo com a lei, e pela vontade da maioria” será tal ou tal, pena de morte ou de exílio, todos devem repetir o que eu disser. Se eu disser “multa”, todos devem gritar “multa, multa”, se eu disser “morte”, todos devem gritar “morte, morte”, para que tudo se faça como mandam a lei e os bons costumes, pela verdade, conforme a vontade do povo.

Jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) – Vou informá-los, para que saibam o que gritar.

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – E depois de começarem a gritar, não parem. Com o maior alarido possível, exijam a imediata execução do que a assembleia decidir, seja qual for a pena.

Jornalista do Grupo GAFE (Globo/Abril/Folha/Estadão) – Assim será feito.

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – Deves mantê-los organizados e atentos ao sinal que teremos de fazer-lhes. A ação rápida é importante. Melhor se, com muito alarido popular, conseguirmos desestabilizá-lo e irritá-lo. Coriolano está acostumado a dominar e a mandar. Só fala de resistência. Mas quando se irrita e altera-se, não se deixa refrear pela prudência e fala o que tem no coração. Bom para nós: quanto mais desestabilizado, mais ele nos ajuda.

 
A marcha eleitoral dos trolls [2] (excerto)
28/8/2011, Chris Hedges, Truthdig, em

Uma sociedade está em graves apuros, quando os párias trazem, no centro de suas exigências, a volta ao estado de direito e ao império da lei. Essa inversão que vemos hoje, quando os excluídos e segregados política e culturalmente clamam pelo estado de direito e império da lei que os excluíram e segregaram, mostra um fato terrível: as forças mais retrógradas do corpo político assumiram o controle.

Essas forças retrógradas exigem, não estado realmente democrático, nem políticas igualitárias: querem, só, que todos nos rendamos ao mercado. Estão destruindo todos os controles legais à exploração pelas grandes empresas, autorizando o lucro desmedido, a qualquer custo. Estão desmontando todas as agências reguladoras que, um dia, existiram para proteger os cidadãos. Defendem a tortura, as prisões clandestinas, colônias penais em território estrangeiro, investigações secretas, seqüestros e assassinatos premeditados de inimigos do estado. Protegem e encobertam a fraude financeira e premiam os fraudadores. Fazem guerras "preventivas". Recusam-se a restaurar a lei do habeas corpus.

Clandestinamente, sem autorização judicial, invadem e monitoram ou grampeiam dezenas de milhões de cidadãos, em casa, na rua, no trabalho. Ordenam o assassinato de cidadãos norte-americanos. Cassaram o direito de todos ao devido processo legal. Para aquelas forças retrógradas, grandes corporações são gente, pessoas físicas. Ignoram o sofrimento dos desempregados e dos sem teto e dos sem emprego, cortando programas de assistência social, enquanto desviam centenas de bilhões de dinheiro dos contribuintes para empresas ‘terceirizadas’ e para mercenários matadores.

Essas questões são as únicas que realmente são tratadas como importantes; quanto a isso, não há nem o mais mínimo desacordo entre os trolls sejam da autoproclamada direita ou da autoproclamada esquerda. Todas as disputas eleitorais entre eles são circo, carnaval e business.

Hoje nos são negadas todas as formas da discordância, da divergência e da oposição, na política eleitoral, como em todos os debates. Não podemos confiar mais nas mesmas instituições que, um dia, foram instrumento de reformas reais.

A única via que nos resta é nos desconectar o mais possível da sociedade de consumo e abraçar a desobediência civil. Obstruir. Impedir que as instituições continuem a nos triturar. Quanto mais nos distanciarmos da dependência química dos combustíveis fósseis e da sociedade de consumo, mais rapidamente conseguiremos criar um novo paradigma de vida decente e de democracia.

Quanto mais nos engajarmos em atos de contestação e desafio físicos – como tantos norte-americanos fizeram recentemente à frente da Casa Branca para impedir que se construa o oleoduto Keystone XL, que aumentará o fluxo de lama contaminada, de Alberta, Canadá, para refinarias no Golfo do México – mais tempo de vida conquistaremos para um outro, melhor, modo de convivermos entre seres humanos em ecossistemas humanos.

Muito importante: é preciso parar de ter medo. Temos de dar as costas absoluta e completamente para o Partido Democrata, por pior que seja o candidato dos Republicanos. Votar em alguém menos ruim, pode ser ainda votar em alguém muito ruim que, se o elegermos, será um muito ruim... eleito.  

Temos de desafiar todos os sistemas formais de poder.

Temos de ouvir as vozes morais em nossa sociedade, de McKibben a Noam Chomsky a Wendell Berry a Ralph Nader, e ignorar todos os liberais salafrários que têm atuado como trolls – jornalistas, "especialistas", "autoridades" –, dos mais eficazes para nos dividir, que nos depauperam e nos roubam nossa potência, nossa vitalidade.

Temos de criar enclaves, coletivos, unidades monásticas nas quais cultivar e manter vivos os valores que a cultura das grandes corporações e do mercado estão rapidamente destruindo. Temos de, nos nossos enclaves, coletivos, unidades monásticas, construir os mecanismos de autossuficiência e autonomia que nos permitirão sobreviver.

O grande golpe corporativo dos mercados venceu. Fomos derrotados. Os trolls nos derrotaram. Fomos banidos, exilados. Temos de encarar o banimento, o exílio, e torná-lo produtivo.

Na peça Coriolano, de Shakespeare, o cônsul romano é deposto pela assembleia popular. Coriolano, por mais defeitos que tenha, sabe que não está sendo derrubado pelos seus defeitos. Aconteceu, apenas, que desagradou a alguns senhores do poder em Roma. Coriolano, então, fala contra a massa que, ao condená-lo, apenas formaliza o golpe político arquitetado por alguns senadores "éticos" e "humanitários".

Coriolano diz, àquela assembleia manipulada, o que devemos dizer aos trolls "éticos" e "humanitários", a essa maioria manipulada que nos derrota e derrotará sempre, não importa quem elejamos. Eis o que diz:

Senador eleito, do DEM ou do PSDB – Assim sendo, está decidido. O voto da assembleia decidiu. Como inimigo do povo e desse país, Coriolano será exilado. Que se execute a sentença.

Assembleia, aos gritos – Que se execute a sentença! Que se execute a sentença!

Coriolano – Esse urro do populacho, essa matilha de cães aos berros, cujo hálito odeio, mais fedido que carcaças insepultas. Vocês corrompem o ar que eu respiro. Eu condeno vocês, ao exílio! Ao desterro! Percam-se aí, para sempre, com seus medos, suas incertezas! Que qualquer rumor, qualquer frase, qualquer boato aflija os corações de vocês! Que qualquer mentira, qualquer notícia os faça tremer de medo! Os inimigos de vocês, com um sacudir de penas, os jogarão no desespero mais negro. Se vocês, pelo menos, ainda tivessem a coragem necessária para banir, exilar para longe de vocês, para sempre, os seus defensores, representantes e protetores! A ignorância que não percebem nem quando ela mata vocês mesmos, não poupando nem os melhores de vocês, reinará até que acabe por entregar vocês ao primeiro que os queira comandar, abatidos, cativos, convertidos em escravos. Vocês são o pior inimigo de vocês mesmos. Serão derrotados. O inimigo de vocês os derrotará, sem erguer uma lança. Eu os desprezo. Aqui nos separamos para sempre. Há muito mundo fora daqui. O mundo é grande. [3]



Notas dos tradutores e comentaristas

[1] Coriolanus, Shakespeare, ato 2, cena 3 (epígrafe) e ato 3, cena 3 (em inglês). E Coriolano em português, na íntegra.
 
 
[2] Trolls, na gíria da internet, são pessoas que aparecem nas discussões com o único objetivo de desestabilizar a discussão, de provocar e enfurecer as pessoas reunidas e de afastar a discussão do que as pessoas pretendiam discutir, tornando improdutivas todas as discussões. O termo surgiu na Usenet, derivado da expressão trolling for suckers (lançar isca para apanhar trouxas) [mais sobre os trolls na Wikipedia (bom verbete, leitura muito recomendável). 
[3] A peça Coriolano, de Shakespeare, é muitas vezes interpretada, superficialmente, como a história da condenação de um general romano tirano que senadores romanos “éticos” ou “humanitários” conspiram para derrubar e derrubam. Em Shakespeare, contudo, nada é exatamente como parece à leitura superficial e há sempre complexidades abissais e riquíssimas. Uma dessas complexidades é explorada na crônica de Chris Hedges, hoje – que decidimos adaptar, para evitar a excessiva “localização”, norte-americana, da crônica, sem perder a boa ideia que a crônica oferece, de comentário crítico do que se vê no Brasil e no mundo – “éticas” que autorizam o assassinato de reputações, a mentira, a violência e o saque, “humanitarismo” que autoriza bombardear país soberano, e “éticas” e “humanitarismos” que protegem ditadores sanguinários – efeito da ação manipulatória (não só, mas em grande parte) da imprensa-empresa, aparelho sempre ativo e ativado da ideologia, para manipular-controlar-esterilizar o voto-desejo popular, no mundo do capital.

A peça narra a história do general romano Caio Márcio, que conquistou a cidade de Coroli, para os romanos (por isso, chamado “Corolano”, “Coriolano”) e passou a governá-la, como Cônsul, com mão de ferro, em época de dificuldades terríveis, seca e fome, tornando-se odiado pelos que viviam em Coroli. Temerosos de que o alastramento da fome aumentasse ainda mais o rancor entre a população contra o domínio dos romanos, alguns senadores “éticos” e “humanitários” decidem derrubar Coriolano. Furioso com o que considera uma vergonhosa capitulação dos patrícios romanos frente à plebe, mas também banido pelos romanos “éticos” e “humanitários”, Coriolano refugia-se no acampamento dos Volscos, inimigos de Roma na mesma região. Ansiando por vingança contra os senadores que o derrubaram para chegar ao poder, não por qualquer empenho político, nem a favor dos patrícios nem a favor do povo, atentos só aos próprios interesses, Coriolano alia-se ao rei inimigo de Roma, Aufidius, e cerca Roma, num momento em que a cidade sofre dificuldades causadas pelo calor do verão, e a defesa está desorganizada. A mãe de Coriolano, e a esposa, Virgínia, visitam-no nas trincheiras e demovem-no da ideia de submeter a própria cidade natal a tamanho sofrimento. Coriolano aceita a súplica da mãe e da esposa, desiste de atacar Roma e aceita ser julgado pela assembleia popular, que o condena ao exílio. Volta então ao acampamento dos Volscos, onde é julgado por outra assembleia popular, que o condena à morte, acusado de traição.

A peça também pode ser interpretada como denúncia da falsa democracia dos ricos (não apenas, como tanto se ouve hoje, só da “hipocrisia” dos ricos) que nada é além da ditadura dos patrícios romanos, que manipula as massas e degrada-se, a própria democracia patrícia, tanto quanto degrada o povo. O povo deixa de votar por critérios conscientes e claros e na defesa de seus reais interesses, e passa a votar, em assembleias manipuladas, como os dominadores patrícios desejam que votem (a epígrafe mostra cena em que se vê o planejamento para manipular a ‘vontade do povo’, com os nomes dos personagens, aqui, hipertraduzidos, para criar um efeito-demonstração e encurtar o argumento).

Na fala final, acima, que Chris Hedges usa como inspiração, Coriolano denuncia o povo que se rendeu aos interesses dos patrícios. Muito mais do que como ditador deposto por senadores “éticos” e “humanitários”, Shakespeare apresenta Coriolano como, além de vítima de seus defeitos e vícios de general romano e patrício, também como vítima da própria democracia romana manipulada, que devorava-se, também, ela mesma, enquanto devorava, por golpe “democrático”, “ético” e, como hoje se diria, “humanitário”, os seus, afinal, melhores. O general tirano foi deposto pelos senadores “éticos” e “humanitários”, mas, nem por isso, o povo passou a viver sob melhor governo ou em melhor democracia do que antes. O povo manipulado pelos aparelhos ideológicos do Estado, tornou-se, de fato, braço executor dos desejos e ambições dos patrícios.

Do outro lado, entre os Volscos aos quais Coriolano retorna, exilado, a coisa não é diferente. E, assim, fecha-se a arapuca em torno de toda a democracia representativa, na qual os interesses do povo são (sub)representados, seja em assembleias manipuladas, seja em partidos políticos que insistem em tentar sobreviver em mundo do capital controlado pela empresa-imprensa que controla a opinião pública, sem criticar nem o capital, nem o capitalismo nem a empresa-imprensa... que modela a opinião pública, a qual, modelada e controlada, manifesta-se pelo voto que já tem pouco poder, ou nenhum.

A mesma ideologia liberal que consagra o poder do povo, tão constitucionalmente quanto metaforicamente, e consagra também o direito liberal de livre empresa para a imprensa-empresa (nesse caso, constitucionalmente, mas nada metaforicamente, e ativamente protege a imprensa-empresa com os instrumentos da força do Estado), assegura a palavra a uns poucos e cassa a palavra aos muitos, ao quais, contudo, dá partidos políticos liberais, “comunicações” liberais, “ética” liberal, “humanitarismo” liberal, mas, poder e direitos de autonomia, nenhum.

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