7/2/2015, [*] Philippe Grasset, Blog Dedefensa
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido no quiosque Bico do Corvo na Vila Vudu: Artigo complicadíssimo (analistas franceses...), mas brilhantíssimo (analistas franceses...). Aí fica, à guisa de antídoto contra as “análises” dos “especialistas” midiáticos sub-do-sub tipo Fernando Henrique “Clinton” Cardoso, que falam e escrevem para imbecilizar o Brasil-2015.
Merkel, Putin e Hollande frente as câmeras, no Kremlin, em 6/2/2015 |
Esse é um daqueles momentos em que temos de pôr de lado as várias hipóteses, os esforços de adivinhação, as constatações que não param de aparecer e de se impor. É preciso manter toda a atenção concentrada no evento, no acontecido, observá-lo e tentar interpretá-lo em relação ao contexto de todos os eventos que nos envolve: o contexto da Grande Crise, da crise do colapso do Sistema.
Assim sendo, mais que qualificar a reunião de Moscou (encontro a três Putin-Hollande-Merkel, cinco horas de conversa sobre a questão de um cessar-fogo na Ucrânia) como um “evento histórico” que o congelará no tempo histórico, como se já tivesse significado os efeitos e consequências que significará, é preciso ver nele um “MOMENTO histórico”. “Momento histórico” é aquele em que a verdade de toda uma situação geral aparece de repente – concentrada no tempo de um instante.
Para muitos dentre os que se disponham a observar esse “MOMENTO histórico” pelo que ele é, trata-se de uma revelação. Porque a nova verdade de situação é completamente diferente da narrativa oferecida, se não imposta, pelo Sistema, como um patético “mapa-do-caminho” para a interpretação do que acontece segundo o ritmo e a passada que interessa ao Sistema.
Não se sabe ainda o que será feito desse “Momento histórico”, mas não se deve ignorar o que ele já nos mostrou. Não devemos tampouco descartar a hipótese de que esse “Momento histórico” tenha sido uma tentativa de libertar-se das cadeias da interpretação (também chamadas “a narrativa”) que o Sistema impõe a todos.
Se a hipótese é justa, não significa, contudo, que a tentativa tenha sido bem-sucedida ou que venha a ser acompanhada de alguma transformação da percepção que permita que todos nos aproximemos da verdade do mundo. Tudo isso ficou suspenso como, efetivamente, num “Momento histórico” que pode ser a tradução política da ideia poética do “Ô Temps, suspends ton vol” [lit. “Ô tempo, suspende teu voo”. É verso em Le Lac, de Lamartine (NTs)]. Claro que o Tempo histórico da Grande Crise é bem diferentemente cruel, comparado ao Tempo do Poeta que contempla o lago, mas nos dois casos trata-se de suspender o tempo para que possamos contemplar as coisas, fixá-las, talvez mesmo gozar alguma nostalgia de tempos passados...
Uma falha e uma ruptura
Numerosos comentários acompanham evidentemente essa suspensão do tempo político que foi a escapadela até Moscou – e a conversa gigante, massiva (quase cinco horas!) – que levou a se elaborarem fundamentos de um possível documento de cessar-fogo na Ucrânia que estará talvez pronto no sábado, para ser submetido ao “de-acordo” do grupo informal chamado “os quatro da Normandia” – quantos condicionais, quantas nuanças de prudência, se não, mesmo, de ceticismo, etc..
(O grupo chamado “os quatro da Normandia” é totalmente informal, retomando a estrutura dos encontros feitos a quatro – a alemã Merkel, o francês Hollande, o russo Putin, o ucraniano Poroshenko – à margem das cerimônias de comemoração dos 70 anos do desembarque do dia 6/6/1944 na Normandia. Há alguns dias, Poroshenko sugeriu que o grupo fosse ampliado para incluir a União Europeia e – “adivinhem quem mais?” – os EUA. Não é a primeira vez que se ouve essa sugestão. Os EUA nunca pararam de tentar invadir esse grupo e assim esvaziar a força sacrílega da participação negada aos norte-americanos).
Encontram-se em RT, 6/6, confirmadas como excelente fonte de informação comentada, notas sobre um primeiro aspecto do tal encontro em Moscou. Para marcar uma clara primeira percepção de que a forma, as circunstâncias, o ritmo do encontro põem em evidência uma falha, uma ruptura dentro do bloco BAO [“Bloco [norte-]Americanista Ocidentalista” (NTs)] entre a Europa – se é que Alemanha e França formam alguma “Europa”, o que ainda não se sabe – e “adivinhem quem?” – os EUA):
Noticiosos sugeriram mais cedo que a visita de Hollande e Merkel a Moscou foi decisão repentina, sem consulta a Washington. Depois que Hollande disse na 5ª-feira (5/2/2015) que “com Angela Merkel, decidimos tomar uma nova iniciativa”, a imprensa-empresa francesa passou a sugerir que a decisão de visitar Moscou teria surgido como tentativa de apresentar uma abordagem nova para resolver a crise ucraniana, que seria diferente da abordagem norte-americana. O Nouvel Observateur noticiou que essa “iniciativa histórica” partida de Hollande e Merkel havia sido precedida por conversas “secretas” entre Paris, Berlim e Moscou. O semanário francês também sugeriu que os líderes da UE estão-se reunindo com Putin “para chegar antes dos norte-americanos, que tentam impor a solução deles a todos os ocidentais: a transferência de armas para a Ucrânia.
“Há claro desacordo entre Washington e Bruxelas quanto a armar a Ucrânia”, diz Nicolai Petro, professor de Política na Universidade de Rhode Island. “Dessa vez parece haver real discrepância entre a retórica do lado norte-americano do Atlântico e o lado europeu”, disse o professor a RT. “Dentro da UE há também claramente uma divisão de opiniões. Há nações mais linha-dura: Polônia, os estados do Báltico que vão ainda mais longe, na linha de prover assistência militar aos grupos neonazistas. E há, por outro lado, Alemanha, França, Grã-Bretanha e Dinamarca que descartaram absolutamente essa via, pelo menos até agora”.
“Claro que há diferença na posição. Também há diferença na posição da UE como um todo, porque há diferentes interesses econômicos. A França sempre foi bastante independente dentro da OTAN. A posição da França é, historicamente, bastante diferente da posição da Alemanha” – disse Ann Van Densky, comentarista política da revista EU Reporter, falando a RT. [...]
“A OTAN está testando músculos. Ouvem-se os debates dos Republicanos em Washington, e estão usando linguagem muito forte, e estão muito ansiosos por armar as forças de Kiev. Nesse contexto, a Europa tenta promover seus próprios interesses” – disse ela, acrescentando que “ainda não há entendimento profundo [dentro da Europa] de que se possa impor qualquer tipo de paz sem incluir o povo do Donbass”. Só se encontrará solução duradoura se os interesses do povo do Donbass forem ouvidos e levados em consideração. “Não esqueçamos que a federalização da Ucrânia, que agora é possível, não permanecerá possível por muito mais tempo”. Van Densky destacou o papel especial da França na OTAN e manifestou esperanças de que “serão mais independentes no tratamento ou na abordagem do conflito na Ucrânia. Mas, até agora, os franceses ainda não se mostraram suficientemente independentes para garantir proteção aos interesses europeus”.
O analista político Alexandar Pavic disse a RT que “cabe agora ao ocidente reparar as relações com a Rússia, não o contrário”.
“Ainda não se sabe se os estados ocidentais farão o que é dever deles fazer” – disse Pavic. Quando a Washington enviar armas a Ucrânia, Pavic crê que esse é o objetivo de Washington e que os EUA não precisam do apoio da Europa para mandar armas para Kiev. “Talvez privadamente os líderes europeus sejam contra a medida, mas até agora não se viu qualquer gesto deles de resistência contra Washington. Na verdade, só fizeram mostrar que, em tudo que tenha a ver com políticas externas, não são entidade independente.”
O “Império” está em superdistensão
Outra matéria de RT, 6/2/2015, depois da reunião de Moscou, já com Merkel e Hollande de volta aos respectivos berços. Aqui se podem ler longos comentários de um excelente comentarista, antigo editorialista-vedete da United Press International, UPI, Martin Sieff, que atualmente trabalha em Moscou e ampliou muitíssimo sua liberdade para analisar adequadamente os EUA. O comentário é interessante, porque Sieff concentra-se numa apreciação crítica da situação e da posição de Washington.
De mais importante, Sieff oferece o argumento de que o “Império”, esgotado pela própria loucura intervencionista e suas várias tara-Sistemas, está naquela posição típica dos “fins-de-Império”, de superdistensão [orig. ing. Overstretched (quando ocorre uma espécie de distensão-monstro de tecido elástico, e as fibras começam a romper-se)] de suas muitas intervenções, o que levou o Império a não conseguir assumir todas as suas ações de agressão ao mesmo tempo.
Para Sieff, os EUA não podem conduzir simultaneamente a intervenção contra o Estado Islâmico/ISIS/ISIL/Daesh e a intervenção na Ucrânia, onde instalaram uma situação fora de qualquer controle, com um pseudo-comando dividido de grupos incontroláveis, etc., quer dizer, uma situação tão impotente e tão paralisada pela desordem, como a que se vê no poder em Washington. Consequentemente, “o problema está em Washington e em Kiev, não em Paris nem em Berlin” – ou, melhor dito − “os problemas estarão em Washington e em Kiev, não em Paris e em Berlim”.
“A ravina aparentemente cada vez mais larga entre Washington e as capitais europeias, no que tenha a ver com a crise ucraniana, não passou despercebida, com os críticos dizendo que, de fato, são EUA e Kiev que estão criando obstáculos no caminho da resolução do conflito.
Martin Sieff, colunista do jornal Post-Examiner, falou a RT sobre as conversas da 6ª-feira (6/2/2015) em Moscou: “Acho que veremos documento importante, acho que haverá progresso significativo na direção de implementar-se um cessar-fogo. A chanceler Merkel e o presidente Hollande reconheceram, antes tarde do que nunca, a gravidade do que está acontecendo na Ucrânia. Querem dar um passo atrás, arrancar-se da beira do abismo, querem conter o governo de Kiev, são fortemente favoráveis a um acordo negociado. Os problemas estarão em Washington e Kiev, não em Paris e Berlin”.
Para Sieff, o “principal ator-bandido” no conflito é o governo de Kiev, que começou apoiado pelo ocidente, mas agora está já fora de controle e quer jogar por suas próprias regras em campo. “O ocidente inventou o presidente Poroshenko, mas em muitos aspectos ele é o rabo que balança o cachorro, porque os EUA não conseguem controlá-lo completamente. É o ator-bandido, é o coringa nessa mesa” – disse Sieff. Se Washington segue avante e envia armas para a Ucrânia como os linha-dura norte-americanos exigem, será “movimento extremamente perigoso”, disse Sieff; e acrescentou que Hollande e Merkel parecem ter “bem maior senso de responsabilidade” nos esforços para resolver a crise ucraniana.
“Não acho que eles [o governo dos EUA] estejam considerando a real situação em campo na Ucrânia, e não acho que estejam considerando a situação na Ucrânia dentro do contexto mais amplo das crises que os EUA enfrentam, a outra crise, no Oriente Médio, onde no momento estão tentando conter o ISIS. Conter o ISIS já é mais do que suficiente, como problema, para os EUA. Depois de duas guerras exaustivas, no Iraque e no Afeganistão, eles não têm cacife para permitir que a Ucrânia se solte, com armas e apoio dos EUA. Seria completa insanidade para os EUA. Entrariam em situação de superdistensão imperial” – disse Sieff.
“Segundo esse crítico, para resolver o conflito, o Presidente Barack Obama e o Secretário de Estado John Kerry dos EUA têm de engolir a vaidade e reconstruir uma relação bilateral genuína, como já existiu antes, com o presidente Putin” – porque os laços entre EUA e Rússia são “o relacionamento estratégico mais importante de todo o planeta”. O problema é a falta de debate político em Washington sobre a responsabilidade das potências ocidentais no conflito em curso na Ucrânia e sobre a gravidade, a extrema sensitividade, para a Rússia, dos desenvolvimentos naquela região” – concluiu Sieff.
A insanidade dos EUA semeia a desgraça
O detonador da fase atual é um detonador de comunicação; é a evolução complexa, mas que pareceria inevitável, com um Congresso aquecido a ponto de ignição e uma elite−Sistema não menos super aquecida, no rumo de uma decisão, nos EUA, de entregar armamento letal à Ucrânia. Vê-se assim que a reunião de Moscou, para tratar de um acordo na Ucrânia é, essencialmente, na substância, assunto secundário ante a questão do fornecimento de armas; por outro lado, na forma, a reunião está absolutamente conectada e representa um modo de França e Alemanha se DISTANCIAREM, de se des-solidarizarem, no atual momento e atuais circunstâncias, de uma decisão “oficial” dos norte-americanos nesse quesito.
Pouco importa, evidentemente, que a coisa (o fornecimento de armas) já esteja em andamento e que, já decorrido bom tempo, o resultado em campo da “operação” esteja longe de ser o esperado. [2]
O que conta aqui é a comunicação – o “efeito-anúncio” de uma eventual decisão de fornecer armas. Se tal decisão já foi tomada, sobretudo no clima suscitado pela polêmica em torno da decisão, era certo que haveria reações violentas, no próprio terreno, na Ucrânia, e por toda parte; derivação e implicação de eventos e lógica, se a “entrega de armas” já estava resolvida, se a situação sobre o terreno – no qual o exército ucraniano está em posição crítica, com a mecânica habitual da escalada sem fim rumo aos extremos já tendo conduzido ao envio de soldados “aliados” para a Ucrânia, quer dizer, finalmente e precisamente tropas norte-americanas...
Ora, esse “detonador” já funcionou muitíssimo bem, antes mesmo de fazer explodir a bomba, a tal ponto que alguns podem temer ou já temem que a bomba não passe de rojão com pavio molhado, e que Washington movimente-se conforme a avaliação de Sieff segundo a qual o “Império” não pode fazer tudo. O detonador “comunicacional” funcionou bem: por todos os lados ergueram-se protestos contra a possível-cada-dia-mais-provável decisão dos EUA, inclusive na OTAN onde os ministros da Defesa dos países-membros pronunciaram-se quase com unanimidade, na 4ª-feira (4/2/2015), contra a tal possível iniciativa dos EUA.
[Em resumo: Todo mundo, exceto a imprensa-empresa ocidental, JÁ SABE: (I) que os EUA já estão enviando armas para a Ucrânia provavelmente desde antes do golpe da Praça Maidan; e (II) que as derrotas que o governo de Kiev continua a sofrer no Donbass estão acontecendo DEPOIS de os neofascistas já terem recebido muitas armas norte-americanas. Por essas e outras, os EUA não querem – de fato, porque não podem – continuar a mandar armas para a Ucrânia. Então... fizeram circular o informe “comunicacional” de que estariam considerando a possibilidade de enviar armas à Ucrânia, para que o mundo se levantasse contra a ideia... o que levaria os EUA a “poder” parar de enviar armas para a Ucrânia. A loucura É total (NTs)].
A situação é rocambolesca, porque os EUA viram-se obrigados a fazer o-diabo para não ficarem completamente isolados (dentro da OTAN...).
Assim pudemos ouvir o bravo general Breedlove (Supreme Allied Commander Europe,SACEUR) comandante em chefe das forças integradas da OTAN, engrenando marcha a ré de urgência, dizendo que considera muito seriamente – seriamente, né-não, general? – que a decisão de enviar armas pode não ser tão boa ideia. (Ver Antiwar.com) Breedlove esteve bem perto de declarar que a iniciativa não passava de completa loucura (“Quem teve essa ideia alucinada...” etc.) – logo ele, que promovera durante semanas a mesma ideia; que é, de fato, um dos “pais” da ideia; mas... Paciência. Em Bruxelas, melhor abraçar quem você não pode esquartejar (praticamente todos unanimemente contra a “talvez-decisão” dos EUA). Daí em diante, todos se mexeram.
Mas prossigamos: se o Ministro da Defesa britânico pronuncia-se novamente e de forma espetacular, para não dizer trovejante, contra enviar armas aos doidos ucranianos de Kiev, é porque provavelmente recebeu discreto estímulo de gente(s) em Washington... E Sua Majestade Obama I, sitiado em casa por extremistas – do Congresso em surto de loucura, às Nuland, Powers & Cia. –não queria continuar a enviar as famosas armas e muito apreciaria que seus diversos “aliados” europeus o forçassem a renunciar ao supracitado envio (de armas).
Daí que os ingleses, que hoje praticam uma diplomacia estranhíssima, que vai do insulto anti-Putin à satisfação europeia por uma certa moderação, logo se converteram nos principais aplaudidores da iniciativa Hollande-Merkel de irem a Moscou exatamente para que eles não tivessem de ir a Canossa.
Moscou é Canossa, dizem eles
Canossa, precisamente, onde o imperador Henrique IV teve de ir para fazer sua amende honorable ante o terrível Papa do Ódio, Gregório VIIº, pondo fim à não menos terrível “Querela das Investiduras”...
Quanto a alguns dos quais se pode supor que estejam à beira da histeria, o que se vê pela rapidez com que decidiram e executaram a tal viagem, é preciso apontá-los, denunciá-los: lá se foram eles, direto a Canossa, ajoelhar ante o “papa Putin”, os traidores! Eis aqui, então, alguns deles.
●− Em Washington, eles são legião: de McCain, que ocupa o trono da Comissão das Forças Armadas do Senado, e diz que o Congresso aprovará qualquer coisa, se o presidente ordenar que se enviem armas aos amigos de Kiev; até os váriosneocons/R2P que correm por todos os cantos do governo Obama, lépidos como ratos que entram no gruyère pelos buracos. Acrescente-se a esses os muitos especialistas−Sistema, que ganharam carta−branca e que sonham com o dinheiro que podem extrair de cada palmo de terra da Santa Rússia, renascida como por milagre das cinzas da URSS. (Todos se deliciam com relatórios do Pentágono “vazados” para EUA Today segundo os quais Putin seria uma espécie de autista, louco furioso, endemoniado, ainda mais perigoso que o horrendo e temível Ebola). Segunda-feira (9/2/2015), quando Merkel estiver, como se suspeita que estará, no Salão Oval, a teuta sentirá as orelhas arderem, sob os gritos furiosos de todos os livre−pensadores da capital da Potência Indispensável...
●− Em Munique realiza-se nesse fim de semana a famosa conferência daWehrkunde, espécie de Davos das questões de segurança nacional e adepta portanto da mais perfeita adaptação à ortodoxia−Sistema. É provável que se ouçam por lá os rugidos dos ortodoxos da OTAN e dos extremistas do “atlanticismo liberal”, porque não há como esse tipo de reunião para que se exaltem todos os extremismos da política−Sistema.
É quase inacreditável, mas o tema da conferência está anunciado nu e cru como uma espécie de condenação preventiva da Rússia ao patíbulo, como se lia em Sputnik.News de 5/2/2015:
“Lê-se, no principal documento de trabalho, o tema da conferência: “Russia: bear ou bust” [“Rússia: urso ou [país] falido”]. Tudo leva a crer que Moscou será outra vez confrontada com uma onda de ameaças e de acusações. Mas apesar de tudo, avaliam os especialistas, ainda não será dessa vez que o ocidente conseguirá arrancar a pele do urso russo”.
(Devem-se esperar os habituais chiliques, mas já houve ecos, lá dentro, da desordem que reina no mundo real, extra−Ucrânia: a delegação turca abandonou a conferência, ontem, 6ª-feira (6/2/2015), depois que foi anunciada, no último minuto, a presença de uma delegação israelense).
●− Na própria União Europeia, às vésperas da abertura da conferência, ouviam-se ecos de manifestações de mau humor por conta da iniciativa de franceses e alemães. Trata-se menos de condenar a orientação que implicava a percepção que se poderia ter da reunião. Problema mesmo foi o modo de fazer as coisas! França e Alemanha pensam talvez que substituem a Europa? Que podem falar em nome da Europa? Apenas um exemplo, dentre vários possíveis, das contradições e inversão de percepções que cercam a Europa, – por que o que seria mais “europeu”, no sentido institucional clássico e ortodoxo que uma Merkel e um Hollande?! Mas eis que desta vez partiram os dois sem qualquer mandato, pensando só nos respectivos interesses, nas respectivas concepções nacionais, e mesmo assim apresentando-se como representantes da Europa...
Muita gente percebeu até que (I) a Alta Representante (Ministra Europeia de Relações Exteriores) Federica Mogherini saudou a iniciativa Merkel−Hollande; e que sua saudação foi um modo de dar à iniciativa da dupla uma legitimidade europeia; e que (II) o Presidente da União Europeia, Donald Tusk, esse, não abriu o bico. Seu silêncio foi também uma espécie de “réplica sísmica” do episódio de 26/1/2015, quando Tusk tomou a iniciativa, contra todos os usos e costumes, de reagir diretamente, sem qualquer consulta aos estados-membros, a propósito de um acontecimento na Ucrânia que ele interpretou exclusivamente por suas concepções pessoais polonesas – quer dizer: histericamente anti-russas.
O rei está nu e treme de frio
É inútil elaborar sobre os desdobramentos da reunião Merkel/ Hollande/ Putin, para nos concentrar no essencial, já declarado acima: o que nos diz a tal reunião sobre a situação do mundo no momento em que aconteceu. Seja qual for o resultado, sejam quais forem as consequências, etc., aquela reunião é indicação completamente indubitável da distância que separa os EUA e os europeus (as potências europeias, sem dúvida alguma) quanto à questão ucraniana, quanto à questão das relações com a Rússia e, em termos mais gerais, sobre o modo de abordar as questões de segurança.
Os personagens da peça são o que são, o acontecimento não é suficiente para modificar a percepção que temos dele – no máximo aparecem uma ou outra pergunta:
□− Hollande conseguirá afirmar alguma visão sua, própria, quer dizer, francesa e independente, das questões de segurança, mediante a compreensão da gravidade da situação e das consequências potencialmente catastróficas da política extremista que os EUA querem impor?
□– Merkel virará mais uma vez a casaca, se não trocar logo todos os paramentos, ela também sob o impacto da compreensão da gravidade da situação, depois de constatar que os EUA só fazem acelerar o apodrecimento da situação, com o perigo de uma guerra nuclear ao virar da esquina?
Questões postas, com certeza nada de mais, mas, pelo menos, também nada de menos, quer dizer, com substância para justificar que se proponham as perguntas...
Mas o que aparece à plena luz, e que efetivamente faz da reunião de Moscou um “Momento histórico”, é a extraordinária facticidade do atual arranjo e do posicionamento de uns e de outros dentro do Bloco Atlanticista Ocidentalista (BAO), em relação aos interesses de uns e de outros, e segundo as várias percepções tão diferentes umas das outras. Essa facticidade implica uma extrema vulnerabilidade em períodos de tensão como é, toda ela, a época em que vivemos.
O que se vê portanto é que o arranjo no seio do Bloco BAO pode, muito, muito rapidamente, transformar-se em desordem no seio do bloco BAO, e que essa desordem tornar-se-á necessariamente, na nossa avaliação, uma “hiper-desordem” que favorecerá o enfraquecimento do bloco BAO (e do Sistema). Assim se abriria eventualmente a via para uma sequência de gravidade extrema, que se deve avaliar como sequência provável final de colapso do Sistema.
Deve-se considerar, é claro, que nada está resolvido na Ucrânia, seja qual for o resultado daquela reunião a três. É certo, claro, que os EUA manterão, sob o impulso irresistível do Sistema, a sua política extremista, empurrando-se eles mesmos para o fundo de todas as extremidades possíveis na Ucrânia...
Daqui em diante, será cada vez mais próximo de muito provável que os europeus vejam-se cada vez mais empurrados necessariamente para a oposição, contra a política extremista de seu aliado, porque a política extremista dos EUA só faz aumentar as piores probabilidades, e ainda pior, a pior de todas as piores possibilidades (a guerra nuclear)...
Essa conclusão, que oferecemos dia 3/3/2014, parece-nos cada dia mais válida, e acaba de ser ilustrada, indiretamente, mas poderosamente por essa reunião em “Canossa-junto-ao-rio-Kremlin”...
“A crise ucraniana, e a percepção de que as pressões do Sistema (do bloco BAO, factótum do Sistema) podem levar à catástrofe extrema dos negócios mundiais, podendo também, graças ao “formidável choque psicológico” do qual falamos e ao medo imenso que brota dele, detonar outra dinâmica, de potência inaudita. Nossa hipótese, retomando a ideia da formidável potência simbólica do centenário da Grande Guerra (2/2/2014), é que essa dinâmica é a dinâmica do colapso do Sistema. Hoje, já ninguém exige o apocalipse nuclear para o colapso do sistema, porque essa tal dinâmica bem pode acontecer como fruto do pânico psicológico total que nasce da ideia, repentinamente visível, de que o risco de uma guerra nuclear existe aí, muito próximo, hoje mais do que jamais antes...”
Notas dos tradutores
[1] Sobre isso, ver em: Penitência de Canossa.
Wayne Madsen |
[2] Wayne Madsen oferece artigo interessante, dia 3/2/2015, no blog Strategic-culture.org. O artigo, extremamente minucioso quanto à odisseia de um preciso modelo de avião ucraniano de transporte estratégico An-124, permite compreender o quanto o debate atual que os EUA tanto insistem em lançar e manter ativado sobre a entrega de “armas letais” ao regime de Kiev não passa de golpe de comunicação. (A diferença entre armas “letais” e “não letais” é, vale anotar também, puro artifício de linguagem e golpe de comunicação. Um monstro das dimensões de um avião An-124 em plena atividade já há vários meses, e atividade clandestina, indica, sem qualquer hesitação, que bastaria dizer “armas” ou “sistema de armas” e ambos com certeza seriam suficientemente “letais”, sem necessidade de detalhamento hipócrita).
O artigo de Madsen liga-se à tal “odisseia” clandestina ou, digamos, não oficial, depois que Madsen noticiou-a e comentou-a, daquele avião de transporte, Antonov An-124, registro UR82072 pertencente à força aérea ucraniana, durante vários meses ou talvez, mesmo, mais de um ano (digamos, desde o final de 2013).
O artigo permite compreender que as entregas de armas ao governo de Kiev – inclusive provavelmente para a preparação do “putsch de Kiev” de fevereiro de 2014 – são rotina estratégica completamente estabelecida. Nesse ponto não há uma linha de “comunicação”: toda a movimentação é fato, são realidades estratégicas em curso” (Wayne Madsen, “Armamento militar letal norte-americano entregue na Ucrânia é retrocesso aos dias de Irã-Contras”, aqui traduzido).
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[*] Philippe Grasset é argelino emigrado para a França em 1962. Bacharel em Filosofia, três anos como publicitário e ao final de 1967 mudou-se para Liège (Bélgica), casou-se pela primeira vez (2 filhos 1970/71) e iniciou-se no jornalismo no diário La Meuse - La Lanterne, como cronista de política internacional e de segurança e também como crítico literário; Entre 1978/80 colaborou com publicações internacionais com crônicas sobre assuntos militares e de literatura. Tornou-se jornalista independente em 1985 lançando diversas publicações (Lettre d’Analyse); a editora Euredit SPRL (1987); Context (1994); e o sítio dedefensa.org (1999). Quatro livros editados (3 ensaios; La drôle de détente em 1978, Le monde malade de l’Amérique em 1999, Chronique de l’ébranlement em 2003; e um romance histórico: Le regard de Iéjov em 1989) além de centenas de artigos.
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