segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Matt DeHart:Privacidade Coletiva e o Arquipélago Anônimo


Missivas de uma prisão de segurança máxima

Abril/2014, National PostMatt DeHart
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Dica de Biella Colleman pelo twitter, em: “Eloquente, apaixonada e poética defesa do anonimato, por Matt DeHart”

Matt DeHart é soldado norte-americano, atualmente preso no Canadá, depois de pedir asilo, fugindo dos EUA, onde é condenado por seu trabalho com os Anonymous.


Matt DeHart
O mar está subindo e as colinas que nos restam são poucas e muito distantes umas das outras. Mas essa não é discussão sobre a mudança climática, apesar dos perigos. Essa é discussão sobre o arquipélago anônimo no mar global da vigilância e da perda de nossa privacidade coletiva. Apesar de nossa privacidade individual estar hoje sob grave perigo, ainda há contramedidas para preservar nossos pensamentos e ideias contra olhos e ouvidos hostis. Ainda não podem ouvir a voz dentro da nossa cabeça, nem podem seguir todos, todo o tempo. Não podem roubar ideias de dentro da nossa cabeça, nem podem prever acuradamente nossas intenções imediatas nem nosso comportamento público. Eles ainda não têm esse poder, mas tentarão. Tentarão, porque cedemos a eles nosso direito à privacidade coletiva.

Parte 1

Porque “privacidade” não é coisa claramente definida na Constituição dos EUA, é o direito mais vulnerável que há. Embora como sociedade os norte-americanos ainda lutemos para definir e consagrar na Constituição ou criar limites à invasão à privacidade individual, nós já perdemos a batalha para proteger nossos direitos como comunidades, como grupos. Na verdade, só muito raramente pensamos sobre o nosso direito à privacidade coletiva.

Pensemos um pouco.

Dez indivíduos exercendo o direito de votar não podem ser contados como se fossem nove. O governo não pode entrar numa igreja, numa mesquita ou numa sinagoga e lá ficar, impedindo que quem queira entrar entre (à parte os que já estão infiltrados nas mesquitas), nem pode negar a uma parte dos membros o direito de rezar na igreja porque são muitos. Assim, ideias partilhadas por duas ou 20 pessoas são ainda menos protegidas que as ideias dentro da nossa cabeça. Nossos direitos coletivos diminuem, conforme aumentem as coletividades?

O governo responderá com o argumento da “expectativa razoável" para limitar a privacidade. É posição defensável, embora acabe sempre desmesuradamente exagerada, quando se aplica a protestos públicos ou fóruns públicos. Infelizmente, alguns governos habitualmente infiltram agentes em reuniões privadas, sem causa provável ou motivo razoável para suspeitas.

A solução restante foi reunir-nos em grupos menores ou tomar ainda mais cuidado com aqueles com os quais partilhamos ideias. É precisamente quando nosso círculo de contatos confiáveis encolhe, de um grande grupo para apenas uns poucos, até que só temos, de contato confiável, nós mesmos, que nosso conceito de privacidade e correspondentes expectativas começam a falhar. Não é legal ler meus pensamentos, mas é legal ler os pensamentos que partilho com um amigo, com dois, com dez? Qual a massa crítica a partir da qual se torna necessário vigiar ideias, algumas das quais são secretas?

Se o governo decidiu arbitrariamente que, digamos, grupos de dez ou mais, reunidos em segredo, têm de ser vigiados, o que impede o mesmo governo de diminuir o número arbitrariamente para cinco, depois dois, até chegar, no fim, a um só? Porque a ideia é que a singularidade deve ser observada e, sendo o caso, pode ser indispensável intervir contra ela, e a singularidade começa, pela própria natureza, com pequenos números.

Matt DeHart - Anonymous

Ideias em estado embrionário são vulneráveis. Para serem expressas, manifestadas, discutidas, aceitas ou rejeitadas, elas precisam de um coletivo, no qual possam ou diminuir ou crescer. Algumas ideias impopulares exigem espaço ainda mais restrito de privacidade, uma privacidade de coletivo, ou fenecem e morrem, ou permanecem sem serem jamais realmente formadas.

O governo dos EUA usa cinco argumentos gerais pelos quais ataca esse espaço restrito de privacidade coletiva, não importa que ideia esteja sob a específica proteção de um ou outro coletivo. São eles: terrorismo, segurança nacional, crime organizado, pornografia infantil e propriedade intelectual. Esses são os argumentos (mais geralmente) aceitos legitimamente e socialmente.

O problema que enfrentamos é que algumas das ideias que o governo considera mais perigosas e associadas a interesses do governo dos EUA não se encaixam em nenhuma dessas categorias aceitas. Num sistema tradicionalmente totalitário, as pessoas são presas e encarceradas por ideias políticas. Numa sociedade falsamente democrática, “ofensas” políticas podem ser rotuladas pelos termos de uma daquelas categorias socialmente aceitáveis. De um modo ou de outro, as pessoas acabam encarceradas.

Talvez infelizmente, ou desagradavelmente, é verdade que ideias políticas impopulares, assim como provas de crimes cometidos pelo estado podem, sim, ser igualmente protegidas naqueles pequenos coletivos, onde também se podem proteger comportamentos realmente ilícitos.

Mesmo assim, temos de manter a privacidade de nossos coletivos, ou a civilização ocidental deixará de existir.

Em Os Miseráveis, Victor Hugo descreve esses tipos que se reúnem em segredo em quartinhos dos fundos de estabelecimentos privados. Os homens urdiam em segredo mudanças positivas. Embora seja ficção, Hugo falava ali de eventos acontecidos.

A República Constitucional dos EUA não existiria sem quartos dos fundos privados e espaços coletivos secretos nos quais se reuniam os conspiradores que conspiravam contra a Coroa Britânica. Se o rei George tivesse um informante em cada grupo de conspiradores ou houvesse alguma coisa como a Agência de Segurança Nacional, a Revolução Americana jamais teria acontecido. Quando perdemos essa privacidade para manter coletivos, perdemos a capacidade para desafiar em massa o estado– sobretudo quando o estado, nos EUA, viola a própria Constituição. Isso é o que vemos acontecer hoje, aqui.

O último bastião para resistir contra a total perda de privacidade é o anonimato. Mediante o anonimato, podemos restaurar a privacidade coletiva.


*****
Parte 2, em breve (Arquipélago Anônimo).



Para saber mais sobre o caso de Matt, leia a matéria de Adrian Humphreys no National Post, Hacker, Creeper, Soldier, Spy: The Story of Matt DeHart (ing.).

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