Missivas
de uma prisão de segurança máxima
Abril/2014, National Post – Matt
DeHart
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Dica de Biella
Colleman pelo twitter, em: “Eloquente, apaixonada e poética defesa do
anonimato, por Matt DeHart”
Matt DeHart é soldado norte-americano, atualmente preso no Canadá,
depois de pedir asilo, fugindo dos EUA, onde é condenado por seu trabalho com
os Anonymous.
Matt DeHart |
O mar está
subindo e as colinas que nos restam são poucas e muito distantes umas das
outras. Mas essa não é discussão sobre a mudança climática, apesar dos perigos.
Essa é discussão sobre o arquipélago anônimo no mar global da vigilância e da
perda de nossa privacidade coletiva. Apesar de nossa privacidade individual
estar hoje sob grave perigo, ainda há contramedidas para preservar nossos
pensamentos e ideias contra olhos e ouvidos hostis. Ainda não podem ouvir a voz
dentro da nossa cabeça, nem podem seguir todos, todo o tempo. Não podem roubar
ideias de dentro da nossa cabeça, nem podem prever acuradamente nossas
intenções imediatas nem nosso comportamento público. Eles ainda não têm esse
poder, mas tentarão. Tentarão, porque cedemos a eles nosso direito à
privacidade coletiva.
Parte 1
Porque
“privacidade” não é coisa claramente definida na Constituição dos EUA, é o
direito mais vulnerável que há. Embora como sociedade os norte-americanos ainda
lutemos para definir e consagrar na Constituição ou criar limites à invasão à
privacidade individual, nós já perdemos a batalha para proteger nossos direitos
como comunidades, como grupos. Na verdade, só muito raramente pensamos sobre o
nosso direito à privacidade coletiva.
Pensemos um
pouco.
Dez
indivíduos exercendo o direito de votar não podem ser contados como se fossem
nove. O governo não pode entrar numa igreja, numa mesquita ou numa sinagoga e
lá ficar, impedindo que quem queira entrar entre (à parte os que já estão
infiltrados nas mesquitas), nem pode negar a uma parte dos membros o direito de
rezar na igreja porque são muitos. Assim, ideias partilhadas por duas ou 20
pessoas são ainda menos protegidas que as ideias dentro da nossa cabeça. Nossos
direitos coletivos diminuem, conforme aumentem as coletividades?
O governo
responderá com o argumento da “expectativa razoável" para limitar a
privacidade. É posição defensável, embora acabe sempre desmesuradamente
exagerada, quando se aplica a protestos públicos ou fóruns públicos.
Infelizmente, alguns governos habitualmente infiltram agentes em reuniões
privadas, sem causa provável ou motivo razoável para suspeitas.
A solução
restante foi reunir-nos em grupos menores ou tomar ainda mais cuidado com
aqueles com os quais partilhamos ideias. É precisamente quando nosso círculo de
contatos confiáveis encolhe, de um grande grupo para apenas uns poucos, até que
só temos, de contato confiável, nós mesmos, que nosso conceito de privacidade e
correspondentes expectativas começam a falhar. Não é legal ler meus
pensamentos, mas é legal ler os pensamentos que partilho com um amigo, com
dois, com dez? Qual a massa crítica a partir da qual se torna necessário vigiar
ideias, algumas das quais são secretas?
Se o
governo decidiu arbitrariamente que, digamos, grupos de dez ou mais, reunidos
em segredo, têm de ser vigiados, o que impede o mesmo governo de diminuir o
número arbitrariamente para cinco, depois dois, até chegar, no fim, a um só?
Porque a ideia é que a singularidade deve ser observada e, sendo o caso, pode
ser indispensável intervir contra ela, e a singularidade começa, pela própria
natureza, com pequenos números.
Matt DeHart - Anonymous |
Ideias em
estado embrionário são vulneráveis. Para serem expressas, manifestadas,
discutidas, aceitas ou rejeitadas, elas precisam de um coletivo, no qual possam
ou diminuir ou crescer. Algumas ideias impopulares exigem espaço
ainda mais restrito de privacidade, uma privacidade de coletivo, ou fenecem e
morrem, ou permanecem sem serem jamais realmente formadas.
O governo
dos EUA usa cinco argumentos gerais pelos quais ataca esse espaço restrito de
privacidade coletiva, não importa que ideia esteja sob a específica proteção de
um ou outro coletivo. São eles: terrorismo, segurança nacional, crime
organizado, pornografia infantil e propriedade intelectual. Esses são os
argumentos (mais geralmente) aceitos legitimamente e socialmente.
O problema
que enfrentamos é que algumas das ideias que o governo considera mais perigosas
e associadas a interesses do governo dos EUA não se encaixam em nenhuma dessas
categorias aceitas. Num sistema tradicionalmente totalitário, as pessoas são
presas e encarceradas por ideias políticas. Numa sociedade falsamente
democrática, “ofensas” políticas podem ser rotuladas pelos termos de uma
daquelas categorias socialmente aceitáveis. De um modo ou de outro, as pessoas
acabam encarceradas.
Talvez
infelizmente, ou desagradavelmente, é verdade que ideias políticas impopulares,
assim como provas de crimes cometidos pelo estado podem, sim, ser igualmente
protegidas naqueles pequenos coletivos, onde também se podem proteger
comportamentos realmente ilícitos.
Mesmo
assim, temos de manter a privacidade de nossos coletivos, ou a civilização
ocidental deixará de existir.
Em Os
Miseráveis, Victor Hugo descreve esses tipos que se reúnem em segredo em
quartinhos dos fundos de estabelecimentos privados. Os homens urdiam em segredo
mudanças positivas. Embora seja ficção, Hugo falava ali de eventos acontecidos.
A República
Constitucional dos EUA não existiria sem quartos dos fundos privados e espaços
coletivos secretos nos quais se reuniam os conspiradores que conspiravam contra
a Coroa Britânica. Se o rei George tivesse um informante em cada grupo de
conspiradores ou houvesse alguma coisa como a Agência de Segurança Nacional, a
Revolução Americana jamais teria acontecido. Quando perdemos essa privacidade
para manter coletivos, perdemos a capacidade para desafiar em massa o estado–
sobretudo quando o estado, nos EUA, viola a própria Constituição. Isso é o que
vemos acontecer hoje, aqui.
O último
bastião para resistir contra a total perda de privacidade é o anonimato.
Mediante o anonimato, podemos restaurar a privacidade coletiva.
*****
Parte 2, em breve (Arquipélago
Anônimo).
Para saber mais sobre o caso de Matt, leia a
matéria de Adrian Humphreys no National Post, Hacker,
Creeper, Soldier, Spy: The Story of Matt DeHart (ing.).
Quer ajudar Matt? Esse é o fundo
para defesa, aprovado pela família DeHart.
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