Alfredo Pereira dos Santos
Cultura, eis aí uma palavra que comporta múltiplas significações.
Podemos falar em cultura do algodão, cultura do fumo e assim por diante. Mas cultura significa também, segundo os dicionários, desenvolvimento intelectual, saber, estudo, elegância, esmero.
Sociologicamente falando é um sistema de atitudes e modos de agir, costumes e instituições, valores espirituais e materiais de uma sociedade. No sentido restrito, cultura significa certo desenvolvimento do estado intelectual, artístico ou cientifico, em que se revela com um sentido humano, um esforço coletivo pela libertação do espírito.
O sentido da palavra cultura adquire um significado mais claro quando a comparamos com o conceito de natureza. Imaginemos um mundo sem homens. Haveria a natureza, mas não haveria a cultura. Existiriam árvores e pedras, a água e a terra. Chega o homem e do tronco da árvore faz uma canoa, um banco. A árvore é um produto da natureza, um banco, um produto da cultura.
Não há cultura sem a intervenção humana. A cultura é, pois, um discurso que decorre da relação do homem com a natureza. Nessa relação o homem produz coisas. Essa produção se amplia e se diversifica com o tempo e de acordo com as condições locais.
A produção cultural de pigmeus africanos e de aborígenes australianos não é a mesma de uma sociedade industrial moderna, e as necessidades culturais de um pigmeu não são as mesmas que as de um homem que vive numa grande cidade.
A maneira como um pigmeu constrói a sua cabana reflete o estado mental e civilizatório em que se encontra. Pigmeu não precisa saber Física e Matemática para produzir os “bens culturais” que necessita para sobreviver. A despeito das visões etnocêntricas, o fato e que não existem culturas inferiores.
E quanto a nós, homens da cidade, seres, soi disant, civilizados? O que precisamos saber? De quanta cultura precisamos? E qual cultura, de que tipo?
Do ponto de vista das necessidades básicas, todos os homens, independentemente de época ou lugar, são iguais. Todos precisam comer, por exemplo. Mas, além das necessidades básicas, o homem desenvolve outras.
Em todas as épocas o homem procurou explicações para os fenômenos que o rodeavam. Para isso criou teorias, que são um produto da cultura, que refletem a sua interpretação daqueles fenômenos. Sonhava com pessoas que tinham morrido e passou a achar que elas continuavam existindo em outro lugar.
O fenômeno da menstruação era interpretado, em algumas culturas, como sendo a posse da mulher por algum espírito.
Surgiram religiões, as explicações mágicas, os mitos, as lendas.
Algumas sociedades permaneceram isoladas e mantiveram os seus sistemas de crenças e valores intactos ao longo do tempo. Outras sociedades, por sua vez, movidas por condições climáticas, necessidades diversas, caminharam
A cultura é, pois, um produto das necessidades humanas. Não há nada que seja criado pelo homem e que, por conseguinte, faça parte da cultura, que não preencha uma necessidade, um desejo, um anseio, uma expectativa. Isso vale para a fabricação de um simples banco de madeira até a construção de uma catedral gótica. E assim, em função de necessidades, surgiram a música, a literatura e as artes.
Todos os homens precisam comer, mas nem todos precisam ler Fernando Pessoa ou ouvir uma cantata de Bach. E isso porque existe uma hierarquia nas necessidades humanas. Alguns homens se dão por satisfeitos se podem comer, beber, acasalar-se e dormir e, nesse ponto, eles não se distinguem muito dos outros animais.
Quem estuda história da humanidade aprende que alguns povos se tornaram conquistadores e que outros foram os conquistados. O professor Lauro de Oliveira Lima, no seu livro “Introdução a Pedagogia diz o seguinte:
“Os povos selvagens, por exemplo, não desenvolvem, por falta de estimulação, estruturas operatórias concretas... Esta paralisia do desenvolvimento torna estas populações extremamente vulneráveis nas relações com civilizados. A diferença é a mesma que existe entre uma criança e um adulto plenamente desenvolvido”.
O trecho acima é bastante revelador das preocupações que certos países têm com a questão cultural, a ponto de se poder afirmar que cultura e soberania são coisas correlatas. A mesma relação se pode estabelecer entre e cultura e desenvolvimento. Desse modo, não pode haver soberania nem desenvolvimento sem cultura.
Isto posto, que bens culturais devem fazer parte do acervo de um povo para que ele possa promover a sua soberania, a sua segurança e o seu desenvolvimento?
Não se espera que ascensoristas e trocadores de ônibus sejam versados em epistemologia ou cibernética ou que tenham uma boa cultura geral. Eles não precisam dessas coisas para exercer o seu papel na engrenagem social. Mas, se eles são apenas ascensoristas ou trocadores, estão extremamente vulneráveis diante das modificações no mercado de trabalho que, eventualmente, poderiam tornar as suas ocupações obsoletas. Para essas pessoas a cultura, então, seria um diferencial bastante significativo. Isso vale para qualquer profissão. Um médico competente, que fale três idiomas, tem muito mais chances de ser bem sucedido do que um, com o mesmo nível de conhecimento, que fale apenas o português.
A experiência histórica mostra que os povos que, no contato com outros, conseguiram preservar as suas raízes e as suas tradições culturais, conseguiram sobreviver a despeito das dificuldades. E não raro impuseram a sua cultura, mesmo diante de povos militarmente mais poderosos.
No caso particular do Brasil, seria ilusão esperar que a maioria da população fosse se interessar por literatura, filosofia, sociologia e cultura popular brasileira. Mas é preciso que haja brasileiros atentos a essa questão, para que não nos descaracterizemos culturalmente e percamos a nossa identidade. É preciso criar trincheiras de resistências, sem o que seremos rapidamente subjugados e dominados, processo, aliás, já em curso. Cada cidadão consciente deve estar atento a essa questão.
A cultura tanto pode ser universal quanto regional.
O jurista Sobral Pinto disse, em pleno período da ditadura militar de 64, que ”não existe democracia à brasileira”. E acrescentou: “O que existe é peru à brasileira”. Analogamente, não existe matemática à brasileira, mas existe uma literatura brasileira, assim como existe uma literatura universal. E todas elas surgiram como tentativas de respostas e explicações para questões existenciais que afetam a todos nós.
A questão fundamental do homem é o “conhece-te a ti mesmo”, e a literatura, a dramaturgia, a poesia, são tentativas de respostas, muitas delas bem sucedidas, a essa questão fundamental. E para respondê-la criou-se também a psicologia, com a qual podemos nos tornar pessoas mais esclarecidas a nosso próprio respeito, bem como sobre os nossos semelhantes, em especial os nossos filhos.
Leia-se, como exemplo, o seguinte:
Só para exemplificar: entre três e seis anos, a criança desenvolve a “função semiótica” (capacidade de substituir tudo por tudo, de fingir, de fabular, de “fazer de conta”, etc.), tornando-se, praticamente, “esquizofrênica” (autista), momento em que, empolgada com a própria imaginação, desliga-se do real, tornando-se “impermeável a experiência”.
Temos visto psicoterapeutas relatarem suas tentativas de curas destes “autistas”, tarefa a que, aliás, os pais se dedicam com furor (“não minta?” – gritam as mães aflitas aos filhos que atravessam este estádio)? Ora, esta “esquizofrenia” é saudável “operacionalização” dos mecanismos de representação mental nascentes em que vão se apoiar todas as estruturas operatórias posteriores (raciocínio). Costumo dizer, brincando, que “a criança que não mente, neste estádio, não fará hipóteses, na adolescência”, isto é, não atingirá o pensamento hipotético-dedutivo (Lauro de Oliveira Lima, obra citada, páginas 61 e 62).
Nenhum homem jamais poderá saber todas as coisas, mas ele precisa ter um cabedal de conhecimentos que lhe permita tomar decisões em todos os momentos da sua vida. E quanto mais informações tiver, mais fundamentadas serão as suas decisões. Se eu estou bem informado sobre a psicologia infantil, cometerei menos erros na maneira de educar os meus filhos.
Um teorema de cibernética diz que “Um sistema de variedade U só pode controlar outro, de variedade V, se a sua variedade for pelo igual à de V”. Essa é a razão pela qual não podemos colocar um faxineiro, que tenha apenas o curso primário, na direção de uma grande empresa. Falta-lhe a variedade cibernética para isso.
Um jogo como o “Jogo da Velha” não oferece muitos atrativos porque tem pouca variedade. Tem poucos estados e todos previsíveis. Totalmente diferente do xadrez, por exemplo, cuja variedade parece inesgotável.
Qualquer profissional pode exercer a sua profissão sem ler Guimarães Rosa (exceto os professores de literatura), mas um economista que o leu terá variedade cibernética maior do que um que não o leu.
Cultura é variedade, no sentido cibernético do termo.
Adquirindo-a aumentamos a nossa riqueza interior, aumentamos a nossa compreensão do mundo, das coisas e das pessoas. Adquirindo-a, aumentamos as nossas possibilidades. Existe um imenso legado deixado pelos nossos antepassados. Pascal dizia que “Todas as boas máximas já estão no mundo; só nos resta aplicá-las”. Esse grande pensador, que deu grandes contribuições à Física e à Matemática, morreu aos 39 anos, de sífilis. Hoje, nenhum de nós morreria. E isso porque houve quem dedicasse anos da sua vida à cura dessa doença.
Hoje, os nossos filhos estão protegidos por vacinas e exames que há muitos anos não estavam disponíveis. Não fomos nós que criamos os antibióticos e as vacinas, alguém estudou e tornou a sua existência possível. São produtos da cultura, que nos beneficiam diretamente.
Quando eu era bem pequeno, na casa dos meus avós, a luz era de lamparina. A água era apanhada num poço. Hoje, abrimos uma bica e a água está ali; acionamos uma chave liga-desliga e temos a luz. Quantos séculos foram necessários para que pudéssemos desfrutar dessas coisas? Quanto conhecimento (cultura) foi preciso ser acumulado para que pudesse resultar nessas conquistas?
O homem comum não se dá conta da imensa dívida que ele tem para com a cultura. Não se dá conta de que é o beneficiário do estudo, do trabalho e do esforço de milhares de pessoas, ao longo de muitos séculos. E não se trata apenas das conquistas da ciência, da medicina, da saúde pública.
Na época Revolução Industrial, a jornada de trabalho era de 16 horas por dia ou mais. Trabalhava-se aos sábados e domingos. De lá para cá, muitas coisas foram conquistadas pelos trabalhadores. E quanta gente morreu para que tais conquistas fossem possíveis?
Newton disse que “Eu só vi longe porque estava apoiado nos ombros de gigantes”. Referia-se a Kepler e Galileu. Desse modo Newton, como um corredor numa maratona, pegou a tocha olímpica de mãos de Galileu, passou-a para Maxwell (entre outros) que passou-a para Einstein (entre outros) e o processo continua, porque nessa olimpíada a corrida nunca cessa.
A cultura é um processo, em que uma geração se apóia nas conquistas das anteriores. Newton estava apoiado nos ombros de gigantes. E quanto a nós, brasileiros? Será que conseguiremos manter a nossa soberania, ignorando o valioso e grande acervo cultural dos nossos antepassados?
Não proponho que o meu eventual leitor saia por ai devorando cultura. Apenas proponho que ele reflita sobre essas questões.
Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2010.