quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Hillary Clinton: candidata para mais e mais guerra

28/11/2014, [*] Anatol LievenThe Nation
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Nem o avassalador fracasso que Hillary sofreu no Iraque levou-a a assumir posição mais inteligente e sensível em relação ao Irã. Ao contrário: na ansiedade para mostrar-se mais “falcão” que Obama, Hillary claramente se alinhou ao lado dos que tornaram impossível qualquer acordo nuclear com o Irã. Por causa disso, essa gente meteu os EUA na posição patética e insustentável de ter de tentar conter todas as maiores forças ativas no Oriente Médio, simultaneamente.

Hillary Clinton
Hillary Clinton concorre à presidência, apoiada não só em seu currículo como Secretária de Estado, mas apresentando-se também como mais “durona” que Barack Obama em questões de política externa. Nessa posição, ela provavelmente conta com distanciar-se de um presidente cada dia mais exposto como “fraco” na abordagem de questões internacionais, e apelar aos instintos supostamente mais “linha-dura” de grande parte do eleitorado.

É pois indispensável propor várias perguntas relativas a isso, cujas respostas são crucialmente importantes não só para o desdobramento de um provável governo Clinton, mas para o futuro dos EUA no mundo.

Essas perguntas têm a ver com o currículo da ex Secretária de Estado e seu comportamento, assim como também têm a ver com as atitudes das elites da política externa e da segurança nacional dos EUA.

Têm a ver também com uma questão ainda mais profunda e mais preocupante: se os EUA seriam ainda capazes de aprender com os próprios erros e modificar, correspondentemente, suas políticas. Acabei por me convencer de que essa é a principal vantagem que a democracia tem, sobre outros sistemas.

Mas nada disso acontece sem debate público – e, portanto, sem “mídia” de massa – fundados em argumentação racional, respeito aos fatos e insistência em que os funcionários assumam plena responsabilidade por decisões evidentemente desastrosas.

Como se sabe, as dificuldades que um político Democrata tem de superar ao traçar política exterior e política de segurança capazes de atender às reais dificuldades dos tempos atuais são numerosíssimas. Dentre essas dificuldades destacam-se:

●– instituições norte-americanas de política externa e de segurança nacional que incharam muito além do razoável e consomem a maior parte do tempo administrando-se elas mesmas e às turras, umas contra as outras;

●– a fraqueza do sistema de gabinete, que estimula aquelas instituições, o que significa que as decisões com muita frequência são jogadas já prontas no colo do presente, além de equipes, dentro da Casa Branca, sempre obcecadas pela próxima eleição;

●– uma disfunção política crescente em casa, resultado em parte do ciclo eleitoral norte-americano, que é guerra constante, sem alívio;

●– uma oposição Republicana animalesca nas reações e sempre pronta a usar qualquer arma contra uma Casa Branca Democrata;

●– uma mídia-empresa corporativa que, quando não opera diretamente a serviço dos Republicanos, é sempre doentiamente rápida no processo de converter questões menores em crises descomunais; e

●– problemas em algumas partes do mundo (sobretudo no Oriente Médio e no Afeganistão) que são, de fato, abissalmente complexos.


Ainda mais importante e mais difícil que qualquer desses problemas, talvez seja o fato de que traçar estratégia realmente nova e adequada exigiria atacar de frente alguns mitos norte-americanos fundamentais – mitos que se fortaleceram por muitos anos de status de superpotência, mas que têm história mais longa e vão às raízes do nacionalismo cívico norte-americano.

Esses mitos, sobretudo, apresentam os EUA como – uma das expressões favoritas de Clinton – “a nação indispensável”, inatamente boa (embora às vezes desorientada), com o direito e o dever de liderar a humanidade e portanto, quando necessário, de esmagar qualquer oposição.

A força e a centralidade desses mitos nacionalistas sempre impediram as elites e a opinião pública nos EUA de aprender ou de relembrar, que fosse, as lições do Vietnã: um fracasso que ajudou a preparar a trilha para o desastre seguinte, em 2003, na invasão do Iraque, cujas consequências desdobram-se ainda até hoje, no Oriente Médio. E, como mostra todo o currículo de Clinton – seus próprios escritos e o que se escreveu sobre ela – ela deixou-se capturar por esses mitos nacionalistas e perdeu qualquer possibilidade que tivesse de superá-los. Como ela diz em seu novo livro, Hard Choices [1]:

Tudo que fiz e vi convenceu-me de que os EUA continuam a ser a ‘"nação indispensável'’. Mas também estou convencida que nossa liderança não é direito de nascença: ela tem de ser reconquistada a cada geração. E será – enquanto nos mantivermos fiéis a nossos valores e lembrarmos que, antes de sermos Republicanos ou Democratas, liberais ou conservadores, ou qualquer outro dos rótulos que nos dividem tanto quanto nos definem, somos todos norte-americanos, pessoalmente investidos em nosso país.

É o mesmo velho solipsismo nacionalista: a única coisa que temos de fazer é nos mantermos unidos e falar cada vez mais alto de nós mesmos, como somos maravilhosos, e o resto do mundo automaticamente se renderá à “liderança” dos EUA.

Não é a posição – que algumas vezes se viu em Obama – de intelectual naturalmente cético e cool obrigado a curvar-se às emoções das massas. Tudo sugere muito fortemente que, em Clinton, o nacionalismo é convicção profunda.


E, sejamos justos: é traço que, sim, pode ajudá-la a eleger-se presidenta. Porém, quando chegar lá, o mais provável é que tanto nacionalismo termine por impedi-la, a ela também, de modelar uma política externa adequada às novas circunstâncias dos EUA no mundo contemporâneo. Acima de tudo, o nacionalismo furioso desmobilizará a capacidade de Hillary para aprender com o passado e com os erros, dela mesma e dos EUA – defeito que já aparece, flagrantemente evidente, nas memórias recém publicadas.

O que se vê ali é que, mesmo quando (raríssimas ocasiões) ela reconhece algum erro ou crime dos EUA, o reconhecimento é imediatamente atropelado pela ideia de que nós teríamos de “deixar para lá” o erro ou o crime, e “seguir em frente”. A ideia não é a menina dos olhos só da Clinton, mas de todo o establishment da política exterior dos EUA. E basta essa ideia canalha para tornar impossível qualquer análise séria do passado.

Claro, ninguém pode esperar muita honestidade ou sinceridade no que, de fato, não passa de propaganda eleitoral – e é preciso não esquecer a presença do Partido Republicano e da mídia-indústria ambos prontos para o bote ao primeiro sinal de que alguém estaria “pedindo perdão” em nome dos EUA.

Ainda assim, um trecho, no início do livro, dera-me esperanças de que pudesse conter pelo menos alguma discussão séria sobre erros passados dos EUA, com lições para o futuro. Ali, Clinton reconhece pelo menos o que teria sido o maior erro dela: a decisão de votar a favor da Guerra do Iraque:

Por mais que desejasse, não pude mudar meu voto sobre o Iraque. Mas pude tentar nos ajudar a aprender as lições corretas daquela guerra e aplicá-las ao Afeganistão e a outros desafios onde temos interesses fundamentais de segurança. Estava decidida a fazer exatamente isso, quando tivesse de enfrentar novas escolhas duras, com mais experiência, sabedoria, ceticismo e humildade.

Mas fica por aí. Em nenhum momento do livro ou da vida política de Hillary Clinton, vê-se qualquer indício de que ela tenha realmente tentado aprender alguma coisa do Iraque, além da lição inescapável: que os EUA sempre anseiam por mais e mais invasões com coturnos no solo e ocupações; e essa lição, de fato, até os Republicanos conseguiram aprender.


A própria Clinton, em pessoa, muito ajudou a despachar aeronaves de guerra dos EUA para derrubar outro governo, depois do Iraque, daquela vez na Líbia. E, como no Iraque, o resultado foi anarquia, conflito sectário e oportunidades novas para o crescimento de movimentos extremistas que desestabilizaram toda a região. Então, ela outra vez “liderou” os EUA a andar ainda mais fundo pela mesma estrada, e puseram-se, os mesmos, a fazer a mesma coisa na Síria.

Clinton tenta argumentar no livro que teria analisado profunda e demoradamente a oposição líbia, antes de declarar ao presidente que estava convencida de que “há chance razoável de que os rebeldes venham a ser nossos parceiros confiáveis” – mas, por profunda e demorada que a tal “análise” tenha sido, é absolutamente claro que Clinton errou.

Ela simplesmente não compreendeu a fragilidade dos estados – estados, não governos ou regimes – em várias partes do mundo; não avaliou corretamente o risco de que a tal “intervenção humanitária” leve sempre ao colapso do estado; e apostou tudo na ideia inadequada e simplória segundo a qual “promover a democracia” possa bastar para reconstruir o estado.

Nada disso ajuda o currículo dos EUA na “promoção” da democracia e do estado de direito – incluído aí o currículo da própria Clinton – hoje tão manchado e sujo que bem pouca gente fora do país ainda o leva a sério ou lhe dá qualquer importância.

O livro de Hillary Clinton consegue repetir simultaneamente:

(i) a ideia de que os EUA e seus aliados estariam apenas criando uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia; e

(ii) propagandear o que, para ela, seriam seus-dela méritos pessoais na destruição do regime líbio.

E ela ainda estranha que outros países não confiem integralmente nem nela nem na honestidade dos EUA!

Em momento algum do livro Hillary reconhece que os que se opunham a qualquer ação militar dos EUA foram quem, sim, sempre estiveram certos; que nada tiveram de “desprezíveis” – expressão que Hillary usou para descrever os russos que se opuseram à intervenção militar dos EUA na Síria.


Nem o avassalador fracasso que ela recolheu no Iraque levou Hillary a assumir posição mais inteligente e sensível em relação ao Irã. Ao contrário: em sua ansiedade para mostrar-se mais “falcão” que Obama, Hillary claramente se alinhou ao lado dos que tornaram impossível qualquer acordo nuclear com o Irã. Por causa disso, eles meteram os EUA na posição patética e insustentável, de ter de tentar conter todas as maiores forças ativas no Oriente Médio, simultaneamente.

Esse tipo de fé nacionalista na força dos EUA e na correção dos EUA não é mais adequada aos desafios que o país enfrenta. O principal é que essa fé torna impossível estabelecer qualquer tipo de relação de equilíbrio e igualdade com qualquer outra nação – não só nas questões globais e nas que mais interessam a Washington, mas também em questões que outros países consideram vitais para seus interesses.

Assim, vai-se tornando cada vez mais difícil para os funcionários dos EUA fazerem o que Hans Morgenthau declarou ser dever simultaneamente prático e moral dos estadistas: mediante estudo detalhado, desenvolver uma capacidade para se porem na posição dos representantes de outros países – não para concordar com eles, mas para conseguir compreender o que é realmente importante para eles, que interesses eles podem ceder ou conceder, e quais não concederão nunca e pelos quais, sendo o caso, serão obrigados a lutar. No livro que acaba de publicar, Clinton não mostra nem sinal de ter esse tipo de competência.

O mais grave desafio e risco, nesse campo, são as relações dos EUA com a China. A arrogância com que Washington trata outros países é pelo menos compreensível, em algum sentido, dado que nenhum deles tem meios para igualar e ultrapassar os EUA – embora alguns, como a Rússia, possam, sim, competir com sucesso, contra os EUA, em suas regiões.

Mas a China é outro assunto. Se, como agora já se considera garantido que acontecerá, a economia chinesa ultrapassar a economia dos EUA, nesse caso, nas questões que interessem a Pequim, a China exigirá tratamento igual – e, se Washington fracassar também nisso, o caminho estará aberto para terríveis confrontos.

Em termos da conduta diária nas relações com Pequim, Clinton conseguiu manter boa figura como Secretária de Estado – embora, nesse item, ela apenas tivesse seguido uma política em geral contida, dos dois partidos. Mas se o dia-a-dia de Clinton foi pragmático aproveitável, a estratégia de longo prazo que ela concebeu pode revelar-se também desastrosa. Falo aqui da decisão do governo Obama – brotada da cabeça de Hillary – do “pivô para a Ásia”.


Como se depreende dos escritos de Clinton, o “pivô” significa “conter a China” mediante o reforço de alianças militares existentes no Leste da Ásia, com desenvolvimento de novas alianças (especialmente com a Índia).

Vista de hoje, essa estratégia parece razoavelmente cautelosa e permanece em parte velada, mas se o poder chinês continuar a crescer, e se se intensificarem os conflitos entre China e alguns de seus vizinhos, nesse caso se deve temer que se aprofunde uma estratégia de contenção – com consequências potencialmente catastróficas.

Não se trata de resposta precipitada dos EUA, ao crescimento de um concorrente potencial.

Algumas políticas chinesas ajudaram a provocar a nova estratégia e também a possibilitaram, ao enviar vizinhos da China diretamente para os braços dos EUA. É verdade, principalmente, quanto às demandas territoriais que Pequim tem feito sobre vários arquipélagos não habitados no Mar do Sul e no Mar do Leste, da China.

Enquanto algumas das demandas chinesas parecem razoavelmente bem fundamentadas, outras não têm qualquer base na legislação internacional e na tradição; e, ao forçar todas as demandas ao mesmo tempo, Pequim assustou muitos dos próprios vizinhos, gerando medos bem reais de que, pelo menos no Leste da Ásia, a estratégia chinesa de “crescimento pacífico” teria sido abandonada.

Mas aspectos agressivos que haja na estratégia da China não bastam para tornar necessariamente adequada ou inteligente a resposta dos EUA a eles – sobretudo porque o anúncio do “pivô” para a Ásia de Obama e Clinton, pelo menos em parte, aconteceu antes da recente maior agressividade da política chinesa.

Em especial, Clinton parece ter esquecido que uma diferença chave entre

(i) a Guerra Fria contra a URSS e

(ii) o atual relacionamento com a China é que, durante a Guerra Fria, Washington sempre foi extremamente cuidadosa em relação a jamais envolver-se em nenhuma demanda trazida por vizinhos do território russo.

Consequência disso (como posso testemunhar, tendo trabalhado como jornalista britânico na URSS durante os anos do colapso), não houve, naquele momento, mobilização do nacionalismo russo contra os EUA. Aconteceu, sim, mas depois – quando a monumental sandice dos sucessivos governos de Clinton, Bush e Obama envolveu os EUA em querelas dos estados pós-soviéticos.


Como senadora, Clinton foi cúmplice integral na desastrosa estratégia de oferecer o direito de integrar-se à OTAN, à Geórgia e à Ucrânia, que levou à guerra russo-georgiana de 2008 (e a um fracasso estratégico dos EUA, de facto, inegável) e ajudou a criar o contexto para a crise ucraniana a que assistimos esse ano. (...) A julgar por seu livro, Clinton jamais se deu o trabalho sequer de tentar entender ou prever qualquer reação dos russos –, muito menos, mais um vez, de reconhecer os próprios erros ou aprender com eles.

Sobre a Guerra da Geórgia, ela simplesmente repete a mentira (embora seja possível que ela realmente acredite no que diz), segundo a qual a guerra foi deliberadamente iniciada por Putin, não pelo então Presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili.

Na política para a China, Clinton e o governo ao qual serviu embrulharam os EUA nas disputas por aquelas ilhas. Formalmente, Washington não tomou partido quanto à propriedade das ilhas.

Informalmente, porém, ao enfatizar a aliança militar EUA-Japão e seu caráter extensivo, os EUA, sim, se alinharam ao lado do Japão – pelo menos no caso das ilhas Diaoyu/Senkaku. Resultado disso, Clinton pode ter empurrado o próprio país para uma posição da qual, mais dia menos dia, os EUA serão forçados a lançar guerra devastadora para defender “direitos” que o Japão supõe que tenha sobre rochas inabitáveis; e quando Tóquio, não Washington, decidir atacar.

O realista professor australiano Hugh White destaca, dentre outras disputas entre EUA e China, a recusa, por Washington, a reconhecer a legitimidade do sistema chinês de governo. Essa recusa vê-se mil vezes repetida no livro de Clinton. White argumenta que esse reconhecimento é essencial, se se espera que os dois países partilhem o poder e a capacidade para influenciar no Leste da Ásia e evitem-se conflitos diretos.

É questão moral e política da mais alta complexidade, se se consideram abusos de direitos humanos que a China teria cometido. E Clinton fez da “defesa intransigente” de direitos humanos uma marca registrada de seu mandato no Departamento de Estado – mas, parece, sem ter absolutamente qualquer ideia dos efeitos desastrosos daquela sua “militância”, se aplicada às práticas corriqueiras dos EUA, em todo o mundo. (...)

Em todos os casos, seria ajuda imensa se os representantes eleitos pelo povo norte-americano conseguissem admitir o quanto o modelo norte-americano em casa e pelo mundo está sendo hoje questionado tanto por inimigos quanto por amigos preocupados: em casa, por causa da paralisia política e a crescente e óbvia inadequação de uma Constituição do século XVIII, para enfrentar o mundo do século XXI; e no resto do mundo, por causa de séries de ações criminosas levadas a efeito em desafio à lei e à comunidade internacionais. Dentre essas ações, a catástrofe que foram a guerra dos EUA e a operação de construir (?) algum estado no Iraque; e também, muito provavelmente, no Afeganistão. Não se vê nem sinal de reconhecimento desses erros, no livro de Clinton.

De fato, no que tenha a ver com a política disfuncional do governo Obama para o Afeganistão, a própria Clinton não pode ser considerada, nem como única, nem como principal responsável. Como o livro dela e de outros deixam bem claro (especialmente The Dispensable Nation: American Foreign Policy in Retreat [A nação dispensável: política externa dos EUA em retirada], de Vali Nasr), aquela política foi pensada e comandada principalmente pela Casa Branca, e por razões de política doméstica. Mesmo assim, dado que tão rapidamente apresenta como sucessos seus qualquer coisa que pareça sucesso, por remoto que seja, claro que Hillary tem também de assumir a responsabilidade pelas medidas que, em idêntico contexto, resultaram em indisfarçáveis fracassos.

No âmago do fracasso do governo (sem considerar aqui a natureza horrivelmente intratável da Guerra do Afeganistão em si mesma) sempre esteve a combinação de

(i) avançada [orig. surge] militar com

(ii) o anúncio de uma “retirada” militar dos EUA.

No que tivesse a ver com os elementos mais linha-dura dos Talibã, foi sinal claro de que só teriam de esperar um pouco.


No que tivesse a ver com moderados reais ou potenciais, Washington fracassou redondamente, quando não associou a avançada a algum esforço sério para construir um acordo de paz.

(...) Como Clinton deixa bem claro, não haveria como ela apoiar qualquer oferta de paz apoiada por Talibãs, mesmo que os mais moderados. Nas palavras dela;

Para haver reconciliação, os insurgentes teriam de depor armas, rejeitar a al-Qaeda e aceitar a Constituição Afegã.

Em outras palavras, Clinton jamais se interessou por acordo algum: só queria rendição.

Essa oferta poderia ter sido feita pelo governo Bush em 2002 e 2003; teria, talvez, sido aceita por vários comandantes Talibã, porque naquele momento os Talibã pareciam ter sido completamente derrotados.

Mas a oportunidade foi perdida, e a mesma oferta hoje – com os EUA em retirada; a “constituição” afegã em crise profunda; e os Talibã conquistando cada vez mais território no leste e no sul – não será sequer considerada. E a síndrome – ou de fingir ou de crer sinceramente que Washington oferece acordo, quando na realidade sempre exige rendição, é um leitmotif do trabalho de Clinton. É muito bonito oferecer acordo se você está vencendo a guerra. Muito menos bonito, se você está batendo em retirada.

Nada disso implica pretender que haveria respostas simples no Afeganistão ou no Oriente Médio, que Clinton não viu. Nos dois casos não há “solução” real, só melhor ou pior gerenciamento de crises baseado na seleção do mal menor, caso a caso. Talvez, como presidenta, Clinton se mostre gerente mais competente desse tipo de crises. Mas, se se considera o currículo dela e o que ela já escreveu até agora, o veredito só pode ser, no melhor dos casos, “não testada”. Até aqui, todas as ações de Clinton e dos EUA nas crises conhecidas, só fizeram agravar as crises e piorar o quadro.

Os EUA conseguirão escapar da armadilha criada pela fé obcecada na própria superioridade moral e direito de comandar? Para escapar, seria necessário um presidente capaz de dizer ao povo norte-americano inúmeras coisas que os políticos norte-americanos realmente não querem ouvir:

●– sobre o declínio relativo do poder dos EUA e a necessidade de ajustar as políticas e a retórica, para acomodar os desenvolvimentos reais, não fantasiados;

●– sobre a consequente necessidade de buscar acordos com vários países que os norte-americanos foram adestrados para odiar;

●– sobre a insuficiência da ideologia norte-americana como via universal para o progresso da humanidade;

●– e, mais importante que tudo, sobre a insustentabilidade, no longo prazo, do modelo econômicos dos EUA e a absoluta necessidade de agir contra a mudança climática.

Num mundo ideal, presidente ou presidenta astuto(a), com apoio popular, deveria ser capaz de ultrapassar a barreira da opinião das elites e apelar diretamente aos instintos, em gerais sensíveis e generosos, da maioria dos norte-americanos.

Como pesquisas recentes indicaram, na questão de armar rebeldes sírios e de buscar compromisso razoável com o Irã, as grandes maiorias mostraram instintos muito mais cautelosos e pragmáticos que Clinton; e quanto aos Republicanos, então, nem se fala. Só 8% dos norte-americanos querem que Washington continue a insistir em comandar unilateralmente o planeta, comparados a vastíssimas maiorias favoráveis a buscar a cooperação (com compartilhamento dos custos) com outras potências.

Mas, como Peter Beinart demonstrou em artigo recente em The Atlantic, há um hiato crescente na opinião sobre esses temas entre o povo dos EUA de um lado; e as elites políticas e as empresas de “mídia” de outro lado – e, o fator mais crucialmente importante de todos, os grandes doadores de dinheiro para campanhas eleitorais, dos quais os candidatos dependem cada vez mais.


Se, como muitos creem hoje, os EUA encaminham-se para ser uma oligarquia de facto, verdade é que as ideias dessa oligarquia são claras sobre política externa e questões de segurança – e são muito, muito próximas às ideias de Hillary Clinton.

Com certeza é mínimo, quase zero, o fundamento para a crença de que ela estaria preparada para desafiar as oligarquias nesses campos. (...)

Por sua vez, o capítulo sobre esses assuntos em Hard Choices começa com uma longa passagem na qual Clinton “canta de galo” sobre o que teria sido vitória tática sobre a China na reunião de Copenhagem em 2009 – que nada representou em termos de combate à mudança climática e só fez alienar ainda mais chineses, indianos e brasileiros. O compromisso verbal de Clinton com esse tipo de causa é louvável e impressionante: suas ações, muito menos.

Mas, mais uma vez, a verdadeira questão é: se qualquer político norte-americano conseguiria fazer muito melhor, dado que praticamente todos os Republicanos – que agora dominam o Congresso e controlam a legislação federal sobre a questão – já conseguiram se autoconvencem completamente de que o problema “do clima” nem existe. Como seria possível implementar políticas racionais, se a maior parte dos políticos eleitos já perdeu completamente todo o respeito por provas e fatos?

Se se considera o currículo dos EUA nos últimos 12 anos, muito haveria a dizer, em teoria, sobre um longo período durante o qual Washington simplesmente afastou-se de qualquer envolvimento em crises internacionais. Mas só em teoria.

Na prática, na verdade, como vários sucessivos governos descobriram rapidamente, as questões internacionais não dão sossego a presidentes dos EUA. As crises eclodem repentinamente, e construir resposta apropriada exige filosofia consistente, profundo conhecimento local, controle firme sobre o aparelho da política externa dos EUA, e habilidade para contextualizar aquela resposta de modo a que obtenha o necessário apoio doestablishment político, da indústria da “mídia”/“informação” e da população.

Todos esses já são desafios suficientemente grandes. Esperar que, além do mais, o presidente/presidenta eleito(a) manifeste inteligência, originalidade, coragem moral e vontade de desafiar os touros-sagrados é, provavelmente, esperar demais de qualquer um. Pelo que se sabe até hoje, é, com certeza, esperar demais de Hillary Rodham Clinton.

[1] No livro, sem tradução ao português do Brasil, Hillary dedica um capítulo à América Latina, com subtítulo de “Democratas e demagogos”. Chávez, claro, é o demagogo máster & demônio-em-chefe, naquele momento pré-Putin.
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[*] Peter Paul Anatol Lieven (nascido em 28/6/1960) é um autor britânico, jornalista vencedor do Prêmio Orwell e analista de política. É um pesquisador sênior (associado a Bernard L. Schwartz no American Strategy Program) da New America Foundation, onde se concentra todo o estudo da Estratégia Global e os planos de guerra contra o terrorismo; professor associado do Transnational Crisis Project cadeira de Relações Internacionais e Estudos do Terrorismo no Kings College London.
Entre 2000 e 2005, foi associado sênior para a Política Externa e de Segurança no Carnegie Endowment for International Peace. Trabalhou como jornalista no Financial Times abrangendo assuntos da Europa Central, no The Times (Londres), cobrindo Paquistão, Afeganistão, a antiga União Soviética e a Rússia (incluindo a cobertura da primeira guerra chechena). Escreveu, ainda como freelancer, sobre a Índia. Atuou como editor no Institute for Strategic Studies em Londres, onde trabalhou para os Eastern Services da BBC. Obteve bacharelado em História e Doutorado em Ciência Política pelo Jesus College, Cambridge.

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