quinta-feira, 26 de julho de 2012

Israel e Turquia: conversa no contrapé


26/7/2012, M K Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A crise na Síria forçou a liderança israelense a empreender muitos esforços para remendar os laços com a Turquia. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu assumiu pessoalmente a iniciativa.

Benyamin Netanyahu
É muito provável que o movimento dos israelenses tenha tido o apoio dos EUA, porque Netanyahu também se sentiu suficientemente fortalecido dentro da própria coalizão governante para levar avante o serviço. O problema é que a Turquia é casa visivelmente dividida no que tenha a ver com políticas em relação à questão síria. Agora, a bola está na quadra turca.

Na 2ª-feira, Netanyahu recebeu em seu gabinete uma equipe de oito conhecidos jornalistas turcos, em tentativa ambiciosa de quebrar o gelo entre Israel e Turquia. É o primeiro encontro do gênero desde o incidente, em maio de 2010, que envolveu o assassinato de nove agentes turcos por agentes israelenses que tentavam deter o navio turco Mavi Marmara, o qual, por sua vez, tentava romper o bloqueio de Gaza, incidente que lançou em queda livre o relacionamento entre os dois países.

Mavi Marmara
A Turquia expulsou o embaixador israelense, quando Telavive recusou-se a aceitar as exigências turcas, que incluíam um pedido oficial de desculpas pelo incidente, indenização às famílias dos mortos e fim do bloqueio de Gaza. Ankara também congelou toda a cooperação militar e de segurança com e apresentou queixa-crime formal contra os comandantes do exército de Israel.

Washington tentou em vão resfriar os ânimos e diplomatas turcos e israelenses atuaram nas coxias para chegar a alguma fórmula palatável. Mas os israelenses linha (mais) dura, dentre os quais o ministro de Assuntos Exteriores, Avigdor Lieberman recusou-se a qualquer tipo de pedido de desculpas e a admitir que Ankara tivesse qualquer interferência na questão do bloqueio de Gaza.

Avigdor Lieberman
Hoje, Israel está em clima de concessões. A recente inclusão do partido Kadima na coalizão governante marginaliza os “linha-dura” tipo Lieberman. O próprio Netanyahu jamais duvidou que interessasse a Israel reaproximar-se da Turquia.

O segundo fator é, evidentemente, a situação na Síria. A separação da Turquia fere Israel e acentua o isolamento regional do país, além de limitar suas opções em campo, na direção de movimento proativo, apesar da inquestionável superioridade militar de Israel em relação à Síria.

O tumultuoso fluxo de eventos na Síria afeta vitalmente a segurança de Israel – seja pela guerra e fragmentação civil ou pelo papel dos islamistas radicais no evento da “mudança de regime” em Damasco. O que realmente conta é que a cooperação mais próxima possível com a Turquia, no plano militar e de inteligência, é absolutamente indispensável para lidar, com rendimento ótimo, com eventuais perdas.

A declaração de Israel, depois do encontro com altas personalidades da mídia turca, citava o próprio Netanyahu:

Turquia e Israel são dois países importantes, fortes e estáveis nessa região, tão turbulenta e instável. O povo turco e o povo judeu mantêm longo relacionamento. Temos de continuar em busca de modos para reiniciar o relacionamento que sempre tivemos, porque me parece importante, no interesses de nossos dois países, e particularmente importante agora, para a estabilidade dessa região. [1]

Netanyahu disse aos jornalistas turcos:

Dado que creio em interesses comuns, ambos, Israel e Turquia devem fazer todo o possível para restaurar seu relacionamento. Gostaríamos de restaurar nossas relações outra vez, e ambos os países estão à procura de oportunidades para fazê-lo.

Em releases distribuídos previamente aos jornalistas turcos visitantes, funcionários do governo de Israel foram mais explícitos:

O que está acontecendo na Síria é uma tragédia, e tragédia ainda maior é iminente (...) Turquia e Israel têm laços íntimos com os EUA, e ambos os países partilham informação importante com os EUA sobre a Síria. Partilhamos a mesma preocupação (...)  [2]

Aliados naturais 

Michael Herzog
A grande questão é se a crise síria pode, ou não, inspirar algum acordo turco-israelense. Artigo recente, publicado no New York Times e produzido a quatro mãos por Michael Herzog (ex-chefe de Gabinete do ministro da Defesa de Israel) e Soner Cagaptay do influente Washington Institute for Near East Policy, jogava com essa questão. Os dois afamados especialistas argumentavam que poderia haver “novo grau de abertura” em Telavive e Ankara à ideia de reconciliação, mas qualquer reaproximação exigiria, em todos os casos, a mediação dos EUA. Escreveram:

O presidente Obama encontra aí oportunidade única para ajudar a reconstruir uma relação estrategicamente importante entre esses dois aliados dos EUA. Embora o relacionamento dificilmente volte aos níveis passados de cooperação estratégica, a normalização fará avanças importantes interesses dos EUA na Síria, no Irã e no Mediterrâneo oriental. [3]

Os especialistas estimam que o establishment israelense de segurança está “firmemente a favor de uma iniciativa de reconciliação” e entendem que uma parceria de nível operacional entre Turquia e Israel seria muito produtiva com vistas a conseguir mudar o regime na Síria:

Um relacionamento normalizado entre Turquia e Israel também abriria as portas para cooperação contra o governo Assad, com os turcos assumindo a liderança política e regional, e os israelenses oferecendo inteligência e ferramentas adicionais (...) Qualquer contribuição de Israel, evidentemente, teria de ser invisível, para não criar a impressão de que Israel esteja por trás dos levantes na Síria. Isso torna a cooperação turco-israelense contra Mr. Assad ainda mais valiosa, porque permitiria que Israel fornecesse ferramentas não rastreáveis que apoiarão os esforços turcos para minar o governo Assad.

Tradicionalmente, Israel sempre gozou de grandes bolsões de influência em Ankara. Os “kemalistas” foram arrastados para Israel, e a parceria turco-israelense floresceu em décadas recentes. O establishment militar e de segurança da Turquia (que costumava ser o “estado profundo” até recentemente, quando chegou ao poder uma liderança civil eleita) sempre valorizou a expertise e o profissionalismo dos espiões israelenses. Entre as elites turcas, Israel sempre foi tida em alta conta como paradigma de democracia numa região onde proliferam os déspotas. Basta dizer que, na história a priori da política turca, os principais partidos seculares viram Israel como aliado natural da Turquia no Oriente Médio muçulmano.

Recep Tayyip Erdoğan
Mas as coisas começaram a mudar depois que o partido islamista AKP chegou estrepitosamente ao poder. Em retrospecto, sabe-se que já crescia uma tendência a “rebaixar” os laços com Israel desde bem antes do incidente do Mavi Marmara. A liderança do Primeiro-Ministro Recep Erdogan movimentou-se conforme plano já predeterminado para reiniciar os relacionamentos da Turquia no Oriente Médio; por esse plano, o relacionamento com Israel seria calibradamente rebaixado. Pode-se dizer que o episódio do Mavi Marmara ofereceu um leitmotif para acelerar o reset com rebaixamento.

Muitos sub-plots

É impossível que Israel ignore que o profundo esfriamento das relações da Turquia com Israel é sintomático da massiva transformação pela qual passam a política e a sociedade turcas durante os últimos oito anos, mais do que alguma consequência de um incidente malfadado, por trágico que tenha sido.

O fato de que, apesar disso, Netanyahu tenha dado o primeiro passo nessa questão sensível, procurando jornalistas, em vez de procurar contatos políticos ou canais diplomáticos, mostra que Israel espera seduzir a opinião pública turca. Porta-voz do ministério israelense de Negócios Estrangeiros, Yigal Palmor, no primeiro contato de briefing com os jornalistas visitantes, comentou que há desconfianças e desagrados pessoais entre altos funcionários turcos e israelenses. Apesar disso, disse ele:

Queremos ter laços fortes com a Turquia, e não desistimos de nossas relações com a Turquia. Temos de trabalhar sobre elas. Queremos estender a mão à Turquia. Queremos entender o que fere cada uma das nossas nações. As portas estão abertas.  [4]   

De fato, a abertura de Netanyahu tem vários sub-plots. Considera o envolvimento da Turquia na crise síria e, quase com certeza, é movimento apoiado pelos EUA. Netanyahu estima que a Turquia fará movimentos crucialmente importantes sobre a situação síria, nos próximos dias e semanas. E tenta arregimentar os setores da opinião turca (que não são, não, de modo algum, desimportantes) que sempre teve em alta conta os laços estratégicos com Israel.

Mehmet Ali Birand
Mehmet Ali Birand, comentarista destacado, chamou a atenção para pelo menos um dos sub-plots mais intrigantes dessa questão, quando avaliou, nos termos seguintes, o ramo de oliveira de Netanyahu:

Fator importante que não se deve ignorar é que a Turquia que não mantém diálogo com Israel não é hoje tão interessante quanto costumava ser aos olhos dos países da região (...). A mudança no mundo árabe também se reflete na Turquia. E a Turquia, involuntariamente, perdeu a influência que antes teve. Todos sabem que nenhuma política pode ser conduzida no Oriente Médio, sem Israel. É também óbvio que, no jogo de xadrez do Oriente Médio, ninguém chega a lugar algum só com Arábia Saudita e países do Golfo Persa, nem ninguém ganha influência se só constitui uma frente sunita. A Turquia também tem de decidir-se. Os caminhos da diplomacia nunca acabam; sempre há uma saída.

Ironicamente, porém, e simultaneamente, uma das principais condições que a Turquia impusera para reconciliar-se com Israel – o fim do bloqueio de Gaza – acaba de ser parcialmente aceita. Na 2ª-feira, o Cairo anunciou o abrandamento das restrições impostas a palestinos que desejem entrar no Egito vindos de Gaza.

Esse movimento absolutamente sem precedentes aconteceu imediatamente depois de encontro, no Cairo, entre o presidente Mohammed Mursi da Fraternidade Muçulmana e Khaled Mashaal, líder do Hamás.

Khaled Mashaal
Nesse contexto, torna-se altamente significativo que na 3ª-feira – um dia depois de Netanyahu ter jogado sua cartada de abertura – o jantar de Iftar [refeição de caráter religioso-solidário-festivo, que assinala o fim do jejum diário que os muçulmanos cumprem durante o mês do Ramadan] na casa de Erdogan tenha acolhido convidados importantes: vários comandantes do Hamás, liderados por Khaled Mashaal.

Mashaal viveu durante muito tempo em Damasco, mas de uns tempos para cá suas posições em relação ao regime sírio têm sido ambivalentes. Uma forte comunidade estimada em meio milhão de palestinos vive na Síria. O Hamás também é “ramo” da Fraternidade Muçulmana; e os líderes exilados da Fraternidade Síria vivem hoje na Turquia.

As conversações entre Erdogan e Mashaal duraram bem mais de três horas. Tudo faz crer que tenham afinado posições sobre a situação síria. Do encontro participaram também o ministro das Relações Exteriores Ahmet Davutoglu e o comandante da Inteligência turca Hakan Fidan.

Observaram-se sinais de frustração em Telavive – e em Washington.


Notas de rodapé

[1] 24/7/2012, Ministério de Negócios Estrangeiros de Israel em: PM Netanyahu meets with Turkish journalists
[2] 25/7/2012, Hurriyet Daily News, em: Israel seeks formula to mend Turkish ties
[3] 20/6/2012, NYTimes, MICHAEL HERZOG & SONER CAGAPTAY em: How America Can Help Its Friends Make Nice 
[4] 26/7/2012, Hurriyet Daily News, Cihan Çelik em: Israel argues Turkey killed ‘apology’ deal

MK Bhadrakumar* foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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