quinta-feira, 7 de maio de 2015

O Significado da Comuna de Paris

4/5/2015, [*] Kristin Ross (KR), entrevistada por Manu Goswami do Jacobin Magazine (JM)
The Meaning of the Paris Commune 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu 
 
O que a Comuna de Paris oferece às atuais lutas por emancipação?

Communards sobre barricadas durante a Comuna de Paris

 
A seguir, duas epígrafes acrescentadas pelos tradutores:

 
 
Em 12 de abril de 1871, isto é, precisamente durante a Comuna, Marx escrevia a Kugelmann:
Reli o último capítulo do meu 18 de Brumário. Afirmo que a revolução em França deve tentar, antes de tudo, não passar para outras mãos a máquina burocrática e militar  como se tem feito até aqui  mas quebrá-la (zerbrechen: a palavra é grifada por Marx no original). Eis a condição preliminar para qualquer revolução popular do continente. Eis também o que tentaram os nossos heroicos camaradas de Paris. (Neue Zeit, XX, 1, 1901-1902, p. 709)’ (Marx, em carta a Kugelman, de 12/4/1871, in LENIN, V. I., O Estado e a Revolução, cap. 3.1: “Onde Reside o Heroísmo da Tentativa dos Comunardos”, in marxists.org).

 
De um artigo sobre o mesmo livro, pela autora, em francês, no Le Monde Diplomatique, maio 2015:
Em abril de 1871, no auge da Comuna de Paris, sete mil operários londrinos organizaram uma manifestação de solidariedade com seus camaradas parisienses, do local que a imprensa burguesa britânica chamava de “nossa Belleville”  o quarteirão de Clerkenwell Green até o Hyde Park. Acompanhados de uma fanfarra, erguiam bandeiras e faixas onde se lia “Viva a Comuna!”, “Longa Vida à República Universal!” Na mesma semana, no anfiteatro da Faculdade de Medicina da Sorbonne, abandonada pelos professores  que haviam corrido a refugiar-se em Versailles  os artistas e os artesãos parisienses (“todas as inteligências artísticas”) escutaram Eugène Pottier ler o manifesto da Federação dos artistas de Paris, cuja última frase foi: “O Comitê contribuirá para nossa regeneração, para a inauguração do luxo comunal dos esplendores do futuro, e para a República Universal”.

 

Introdução
 
Dia 18 de março de 1871, artesãos e comunistas, trabalhadores e anarquistas, tomaram a cidade de Paris e estabeleceram a Comuna. Esse experimento radical de autogoverno socialista durou 72 dias, antes de ser esmagada num massacre brutal que estabeleceu a 3ª República francesa. Mas socialistas, anarquistas e marxistas nunca deixaram de discutir o significado daquela ação. 
 
Kristin Ross, em seu novo livro, o poderoso Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune [O luxo da Comuna: imaginário político da Comuna de Paris], expõe com máxima clareza as polêmicas acumuladas sobre a Comuna, as quais, como ela diz, calcificaram falsas polêmicas: anarquismo versus marxismo, camponês versus operário, terrorismo jacobino revolucionário versus anarcosindicalismo e por aí vai. 
 
Agora que a Guerra Fria acabou e o Republicanismo francês está exaurido, argumenta Ross, podemos afinal livrar a Comuna dessa esclerose. Essa emancipação pode, por sua vez, revitalizar a esquerda contemporânea para agir e pensar sobre os desafios de hoje. Nenhum trabalho especifica mais completamente o que disse Marx, para quem a maior conquista da Comuna de Paris foi sua “existência real em operação”. 

 
Entrevista
 
Jacobin Magazine (JM) – Esse livro reencena a Comuna de Paris para nossos tempos. Por que a Comuna é recurso para pensar as demandas de nosso presente? 
 
Kristin Ross (KR) – Fico contente que você tenha escolhido dizer “recurso”, em vez de “lição”. Em geral as pessoas insistem em que o passado nos daria lições ou que ensinaria que erros evitar. A literatura em torno da Comuna é cheia de palpites, de engenheiros-de-obra-feita, de gente que goza ante a lista de erros: ah, se os Communards tivessem feito isso ou aquilo, saqueado dinheiro do banco, marchado sobre Versailles, feito a paz com Versailles, se se organizassem melhor, aí, sim, teriam sido bem-sucedidos! 
 
Para mim, esse tipo de superioridade teórica post-fato é, ao mesmo tempo, estúpida e profundamente a-histórica. Nosso mundo não é o mundo dos Communards. Mas quanto antes se compreenda realmente que nosso mundo não é o mundo deles, tanto mais fácil é perceber os pontos nos quais o mundo deles é, de fato, muito próximo do nosso – mais próximo de nós, talvez, que o mundo da geração dos nossos pais. 
 
O modo como vivem hoje as pessoas, particularmente os mais jovens, assemelha-se muito à instabilidade econômica da situação dos operários e artesãos do século 19 que fizeram a Comuna, muitos dos quais passavam mais tempo, não trabalhando, mas procurando trabalho. 
 
Depois de 2011, com a volta virtualmente em todos os lugares, de uma estratégia política baseada em tomar espaços, ocupar locais e territórios, converter cidades inteiras – de Istanbul a Madrid, de Montreal a Oakland – em teatros para operações estratégicas –, a Comuna de Paris voltou a ser visível, como se recebesse nova iluminação, entrou novamente na figurabilidade do presente. 
 
Suas formas de invenção política tornou-se novamente disponível para nós, não como lições, mas como recursos, ou, como o que Andrew Ross, falando do meu livro, chamou de “um arquivo usável”. A Comuna tornou-se a figura para uma história, e talvez para um futuro, diferente do curso que, por um lado, a modernização capitalista tomou; e por outro, o estado socialista utilitário tomou. 
 
É um projeto que, creio, muita gente partilha hoje, e o imaginário da Comuna é central para aquele projeto. Por essa razão, tentei, no livro, pensar sobre a Comuna ao mesmo tempo como pertencente ao nosso passado e como uma espécie de abertura do campo dos futuros possíveis, no meio de nossas atuais lutas. 
 
JM – O luxo comunal (fr. le luxe communal) foi slogan da seção dos artistas da Comuna e dá título ao seu livro. Você pode nos falar sobre a gênese dessa expressão?
 
KR – Diferente de “a república universal”, “o luxo comunal” não foi um dos slogans retumbantes da Comuna. Encontrei a expressão metida lá na última frase do manifesto que artistas e artesãos produziram sob a Comuna, quando se auto-organizavam numa federação. Para mim tornou-se uma espécie de prisma pelo qual refratar várias invenções e ideias chaves da Comuna de Paris. 
 
O autor da expressão, o artesão de artes decorativas Eugène Pottier, é mais conhecido até hoje como autor de outro texto, A Internacional, Terra sem Amos, composto ao final da Semana Sangrenta, antes de o sangue dos massacres ter secado nas calçadas. O que ele e outros artistas queriam dizer com “luxo comunal” era alguma coisa com um programa de ação para “beleza pública”: melhoria de vilas e cidades, o direito de todas as pessoas viverem e trabalharem em ambiente agradável. 
 
Pode-se ver aí uma demanda pequena, talvez mesmo só “decorativa”. Mas de fato implica não só completa reconfiguração da nossa relação com a arte, mas também com o trabalho, as relações sociais, a natureza e o ambiente vivido. Significa mobilização total na direção das duas palavras de ordem da Comuna: descentralização e participação. Implica arte e beleza “desprivatizadas”, plenamente integradas na vida diária, não escondidas em salões privados ou centralizadas numa monumentalidade nacionalista obscena. 
 
Os recursos e realizações estéticas de uma sociedade não mais tomariam, como os Communards mostraram em ato, a forma do que William Morris chamou de “aquela peça básica da estofaria napoleônica”, a Coluna Vendôme. Na pós-vida da Comuna, no trabalho de Reclus, Morris e outros, mostro como a demanda de que a arte e a beleza florescessem na vida diária continha as ideias chaves do que hoje chamaríamos de desejo “ecológico”, e que pode ser percebido na “noção crítica de beleza” de Morris, por exemplo; ou na insistência de Kropotkin sobre a importância da autossuficiência regional. 
 
Nas suas fronteiras de alcance mais especulativo, “o luxo comunal” implica um conjunto de critérios os sistemas de valorização diferentes do que o mercado fornece, para decidir o que uma sociedade valoriza, o que considera precioso. A natureza é valorizada não como um estoque de recursos, mas como fim nela própria. 
 
JM – Seu livro estende a vida da Comuna aos trabalhos de Kropotkin e do socialista britânico William Morris, dentre outros.
 
KR – É muito fácil deixar-se tomar num transe de horror, pelo que Flaubert chamou de a “goticidade” da Comuna, expressão pela qual espero que ele tenha querido referir-se aos horrores sem mercê da Semana Sangrenta e massacre de milhares, que levou ao fim da Comuna. De modo algum minimizo o significado do massacre. De fato, vejo aquela espantosa tentativa, pelo estado, de exterminar um a um e em massa seus inimigos de classe, como o ato de fundação da 3ª República. 
 
Mas me ocupei mais com documentar o que, para mim, seria o prolongamento da Comuna – o modo como o pensamento Communard continuou a ser elaborado depois do fim da Semana Sangrenta, com sobreviventes da Comuna exilados reunindo-se e trabalhando juntos com os apoiadores que você mencionou – camaradas de uma mesma viagem, para quem os eventos da Comuna haviam alterado profundamente o que Jacques Rancière chamaria de “a distribuição do sensível”. 
 
Descrevo como onda de choque a Comuna como evento, e as discussões e a sociabilidade que se seguiram, com os que sobreviveram à Comuna, mudaram os métodos desses pensadores, as questões sobre as quais se debruçavam, os materiais que selecionavam, a paisagem intelectual e política que mapearam para eles próprios – em resumo, o caminho deles. Essas ondas imediatas de pós-choque são a continuação da luta, por outros meios. São parte do excesso do evento, e são tão absolutamente vitais para a lógica de qualquer evento, como as ações iniciais pelas ruas. 
 
Talvez a maior modificação possa ser detectada na trajetória de Marx, depois da Comuna – uma mudança que assume a forma paradoxal de, tanto um fortalecimento de sua teoria, como uma ruptura com o próprio conceito de teoria. A Comuna mostrou muito claramente aos olhos de Marx que as massas não só modelam a história como também, ao modelá-la, transformam o presente e também transformam a própria teoria. Isso, de fato, é o que Henri Lefebvre tinha em mente, quando falou da “dialética do vivido e do concebido”. 
 
O pensamento e a teoria de um movimento só são desencadeados com o movimento e depois do movimento. São as ações que criam os sonhos, não o contrário. [1]
 
JM – Piotr Kropotkin, Elise Reclus e William Morris foram, como você argumenta em seu livro, preocupados com mobilizar unidas as “energias do antiquado” associadas com formas pré-capitalistas e não capitalistas e com o potencial radical de práticas emergentes. 
 
KR – Não só esses, mas também Marx era preocupado com a existência “anacrônica” em seu próprio tempo, de formas e modos de vida pré-capitalistas. 
 
O destino das obshchina, aquelas formações agrárias comunitárias russas, que perduraram por séculos, foi importante foco das preocupações dos socialistas ocidentais. O desafio teórico que tomou forma depois da Comuna girava em torno da questão de uma forma-comuna revitalizada: como pensar juntas (I) a espantosa insurreição que aconteceu numa grande capital da Europa e (II) a persistência daquelas antigas formas comunistas no campo. 
 
Esses pensadores eram todos extremamente atentos ao que se pode chamar “fissuras no tempo” – momentos nos quais a ininterrupta continuidade da modernidade capitalista parece rachar-se e abrir-se como um ovo. Historiadores em geral temem o anacronismo como o maior erro possível. São dados a desconsiderar o interesse de Morris pela Islândia daquele tempo, e o passado medieval da Islândia, por exemplo, como nostalgia obcecada. Morris foi realmente capaz de ver formações pré-capitalistas e modos de vida como os que haviam florescido na Islândia medieval como, simultaneamente, idos, passados, parte da história, e, ao mesmo tempo, como figuração de um futuro possível. 
 
Isso é sinal, na minha opinião, não de nostalgia, mas de um modo de pensar profundamente historicizado. Sem isso, não temos como pensar a possibilidade de mudança, nem de viver o presente como algo contingente e sem desfecho conhecido.

 
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Nota dos tradutores
[1] O prof. Mangabeira Unger, em Conhecimento e Política, ensina que “a esperança é consequência da ação, não é causa dela”. A mesma lição-recurso de pensamento aparece em entrevista que concedeu à Revista Caros Amigos em 1999. É a mesma ideia progressista que se lê acima.
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[*] Kristin Ross é professora de Literatura Comparada na New York University e autora do livro: Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune. Manu Goswani é professora assiciada de História na New York University.

Professora Kristin Ross

2 comentários:

  1. Grato, mais uma vez, ao pessoal da Vila Vudu pela tradução. Alguém sabe informar se há previsão para uma edição em português do livro da Profa. Kristin Ross?

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    1. Não sabemos, Osmar. É possivel que exista uma edição "online" que poderia ter tradução "ajudada" pelo Google. Seria interessante consultar a NYU sobre o assunto.

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