quarta-feira, 13 de abril de 2011

Julian Assange, entrevista ao The Hindu, 12-13/4/2011 - P I (2/2)

Leia primeiro: Julian Assange, entrevista ao The Hindu, 12-13/4/2011 - P I (1/2)


 Comentário dos tradutores (Vila Vudu)

ATENÇÃO: A entrevista é longuíssima (18 laudas) e absolutamente interessante.
Prá começar, há aí um entrevistador como NUNCA se viu desse lado do mundo: interessado, atento, respeitoso e empenhadamente interessado mais em ouvir do que em falar, embora fale bastante, sempre interessante e interessado.
O entrevistador é o editor-chefe desse jornal indiano que, em 2009, vendia 1.466.304 exemplares/dia, com mais de 4 milhões de leitores/dia (ABC: July-December 2009) impresso em várias cidades da Índia e de circulação nacional, como se lê em THE HINDU. É realmente um assombro, se se pensa em Estadões e FSP, que não vendem 200 mil exemplares/dia.
E Assange fala como NUNCA o vimos falar: com tempo para argumentar, sem estar pressionado nem por fãs, nem por inimigos.
Essa entrevista é documento histórico, raro e muito importante. Está sendo traduzida. 
Distribuiremos à medida que a tradução for sendo concluída.

No total, serão cinco partes:
·         Parte I. -  1/2 e 2/2;
·        Parte II. - 1/3 e 2/2

Parte I, 12/4/2011: WikiLeaks gerou o clima crítico, para as reformas políticas” (traduzido em duas partes)

Parte II, 13/4/2011: WikiLeaks é o método que usamos, na nossa luta por sociedade mais justa (traduzido em duas partes)


“WikiLeaks gerou o clima crítico, para as reformas políticas” - Parte I (2/2)

12/4/2011, Julian Assange, Entrevista a N. Ram, Editor-chefe de The Hindu, Delhi, WikiLeaks has provided the critical climate for political reform: Assange

N. Ram, Editor-chefe do “The Hindu”, entrevistou Julian Assange, editor-chefe do WikiLeaks, em Ellingham Hall, Norfolk, Reino Unido. A imponente casa de campo, de propriedade de Vaughan Smith, um ex-oficial do exército britânico e jornalista, é a casa temporária de Assange enquanto ele aguarda a audiência de seu recurso contra decisão judicial de extraditá-lo para a Suécia.

‘TERRORISTA HIGH-TECH

Pouco antes de aqueles telegramas serem distribuídos, o vice-presidente dos EUA Joseph Biden chamou-me, a mim, pessoalmente, a mim, de “terrorista high-tech” e, de Mubarak, disse que não era ditador, que não devia deixar o poder. Depois de os telegramas serem distribuídos, declarações como as de Biden tornaram-se impossíveis. E o apoio ocidental a Mubarak teve de sair das manchetes. 

Outro aspecto importante dos levantes árabes é que podem ser vistos como fenômeno panafricano ou panárabe. A Arábia Saudita apóia vários ditadores na região – partilha inteligência, dá dinheiro, garante armas etc. Como aconteceu no Bahrain, que foi invadido a pedido do rei. Vale também para Mubarak. E Israel também promove muitos daqueles ditadores, porque Israel teme que, onde haja governo eleito um pouco mais democraticamente, desaparecerá o apoio dos governos a Israel. Esse, como se sabe, é o grande medo de Israel em relação ao Egito. E os EUA estão envolvidos nessa equação por várias vias e vários motivos, todos relacionados ao apoio que dão a Israel e ao modo como Israel pensa aquela região.

PAÍSES LEVADOS A OLHAR PARA DENTRO DELES MESMOS 

Quando distribuímos os telegramas sobre a região como um todo, inclusive Arábia Saudita, esses países foram forçados a olhar para dentro deles mesmos, encarar as questões políticas internas. A Arábia Saudita, por exemplo, começou a fazer uma concessão depois da outra à população xiita.

Assim se demonstrou que esses países têm potência para derrubar ditaduras, mas que foi preciso que as populações se voltassem para elas mesmas, que concentrassem esforços e atenção nos seus próprios projetos e desejos e preocupações políticas. Digo tudo isso, para explicar que é assim que entendemos nosso trabalho, nosso e dos ativistas que operam no plano local, caso a caso, país a país, tentando promover operações de reforma. Todos tentamos ver a região toda e cada caso, ao mesmo tempo. Acho que dei resposta bem completa, não foi? [risos] 

Na Índia, especificamente, um outro tema foi posto na agenda política nacional pelos telegramas: a “tendência pró-EUA no Gabinete” (confidential cable 51088): “EUA pressionam uma Índia vacilante a votar contra o Irã na IAEA” e a rendição do governo Manmohan Singh (vários telegramas confidenciais e secretos). Um dos lá mostrados, Pranab [Mukherjee] é hoje ministro das Finanças, depois de ter sido Ministro das Relações Exteriores. Têm acontecido muitos casos como esse. Ainda muito mais grave é a questão militar – não só o fato de que a Índia compartilha inteligência com os EUA, mas a total colaboração militar entre Índia e EUA. O projeto não está completo, mas já há o movimento. E há um paradoxo, me parece. Quando a Índia era menos desenvolvida e dependia mais da ajuda externa, tínhamos política externa e política nacional mais independente. E agora, com a Índia considerada Poder Emergente, ao lado da China, a nossa política externa parece menos independente. O que o senhor teria a dizer sobre isso, algum insight, considerado o que o senhor conhece do mundo?

É questão interessante. O comportamento dos EUA, que se vê pelo que fazem suas embaixadas pelo mundo, é tentar recolher inteligência política e influenciar governos democráticos. Isso é o que os telegramas mostram. O que acontece na Índia não é diferente do que acontece em outros países, o que não significa que seja correto.

Na Austrália, por exemplo, considerada aliada muito próxima dos EUA, um ministro do Gabinete foi citado nos telegramas: freqüentava a Embaixada dos EUA e fornecia informações de inteligência política, com informações sobre o Parlamento Australiano e o Gabinete de Governo da Austrália. O mesmo aconteceu na Alemanha, e o indivíduo foi descoberto e demitido. No caso da Austrália, explicou-se que o espião pró EUA seria um contato dos EUA no qual a Embaixada confiava ao longo de toda sua carreira. 

Isso significa que os EUA selecionam pessoas, muitas vezes desde os escalões mais baixos e muitas vezes em partidos da esquerda (naquele caso, foi no Partido Trabalhista Australiano) e acompanham a carreira política do ‘escolhido’. Fazem mais ou menos assim em praticamente todos os países. Nesse sentido, são operações como as caricaturas que os marxistas sul-americanos faziam do Departamento de Estado, nos anos 1960s.

RETROCESSO RUMO AS POLÍTICAS DA GUERRA FRIA 

Há muitos telegramas das embaixadas dos EUA sobre movimento sindical. Se os sindicatos estão crescendo ou encolhendo nos vários países. As informações têm sempre carga negativa: se num determinado momento aumenta o número de filiados, é grave! Aí parece haver um retrocesso, uma espécie de retrocesso institucional rumo aos anos 1960s, à Guerra Fria, quando a visada política dos EUA era de que os sindicatos fariam oposição aos EUA e tenderiam a aceitar as políticas da URSS. Como se os EUA estivessem hoje fazendo uma espécie de reengenharia dos investimentos pelo mundo. Ou é alguma grande empresa dos EUA que quer investir em algum lugar, mas não quer ter sindicatos ativos, que dificultem as políticas de implantar os menores salários possíveis. 

A contradição de que o senhor fala – de que quanto mais poderosa a Índia, em termos econômicos, e quanto mais cresce a população economicamente ativa, e mais forte a capacidade militar, menos dependente é a política externa – é extremamente interessante. Acho que é verdade também para outros países. Acho que tem a ver com a rapidez com que os grupos econômicos, em diferentes áreas, conseguem intercambiar o poder, partilhar o poder entre eles. 

E como é que grupos econômicos e outros grupos fazem esse intercâmbio de poder? Por transferências de dinheiro? Não. O intercâmbio de poder se faz mediante transferência de informação. Como se faz também mediante compra e venda de armas e de outros itens valorizados de patrimônio. Com o mundo mais globalizado, essas trocas podem ser muito rápidas. Por isso, vão-se apagando as diferenças entre os países. Em vários sentidos, é muito bom, no caso dos países menores. Outras vezes, quando há superpotências envolvidas, as fronteiras se apagam entre as grandes potências. A questão, nesse momento, é que algumas superpotências podem, assim, acumular poder excessivo.

Há uma estrutura básica de geopolítica, da qual nunca se fala. Um modo de ver como ela opera é perceber que cada país que não seja muito isolado passa a depender de outro, que opera como seu provedor de inteligência. E há vários provedores de inteligência no mundo. Os EUA são líderes desse mercado. Há também a Rússia, a China, a Grã-Bretanha, em menor escala. Se um país menor não se alinhar com um desses, fica sem saber o que acontece à volta de suas fronteiras – porque, para isso, é preciso contar com inteligência geoespacial. Saber quem se movimenta junto às fronteiras, por exemplo. Essa informação é importante para todos os grupos militares e de inteligência e os países que possam ter querem ter essas informações. Porque essas informações aumentam o poder relativo dos grupos também dentro das fronteiras nacionais.

Isso não significa que as nações precisem dessas informações de geointeligência. Mas, no caso da Índia, por exemplo, aumenta muito a influência interna dos grupos que tenham acesso à inteligência geoespacial, produto que só os EUA produzem. Os militares indianos têm mais poder interno se tiverem contatos próximos com os militares dos EUA. E essas relações são estimuladas, incentivadas, pelos militares dos EUA, ou pelos serviços de inteligência dos EUA. E, hoje, as principais atividades que envolvem produção e distribuição de inteligência e de armas nos EUA são empresas privadas.

O senhor está dizendo que nos EUA há uma mistura, há um apagamento das fronteiras entre o que é governo e o que é indústria privada. E que grupos privados – Lockheed Martin, Boeing etc., além de milhares de empresas menores –, agem como lobby e forçam o Departamento de Estado, o Congresso e governos de outros países a assinar acordos e contratos que os convertem em partes desse sistema, para acumularem mais poder e influência política dentro dos EUA e, assim, poderem arrancar mais dinheiro da base acumulada dos impostos que o Estado arrecada nos EUA, tanto quanto para poderem arrancar mais dinheiro da base acumulada dos impostos que outros países arrecadam.

AUMENTO DOS GASTOS MILITARES 

Há modo simples de ver se é isso que acontece – modo bem claro. Nos EUA, a arrecadação de impostos diminuiu, desde a última crise financeira, aproximadamente 25%. Ao mesmo tempo, no primeiro ano do governo Obama, a quantidade de dinheiro mobilizado para os setores de inteligência e militar aumentou 6%. Se se considera os EUA como um organismo, é hoje um organismo 25% mais pobre. Mas, mesmo assim, uma parte desse organismo, um rim – digamos que os setores militares e de inteligência sejam um rim –, cresceu muito e está consumindo cada vez mais energia e cada vez mais recursos cada vez mais escassos. Dado que nem os militares nem a inteligência produzem qualquer coisa diretamente  – não tiram petróleo do chão nem sabem gerar energia – o que eles acumulam é só influência política. A influência política aumenta, à custa do enfraquecimento, digamos, dos serviços de saúde, ou de educação. 

Com mais influência política, esses grupos têm acesso a uma fatia maior do que o país arrecada como impostos. Mais ou menos isso já está acontecendo também em outros países.

Pessoalmente, acho que isso tem muito a ver com o segredo, o sigilo, que cerca essas duas instituições, os militares e os setores de inteligência. 

Se se observasse, digamos, no contexto dos EUA, o Departamento de Saúde Pública e a CIA, como se fossem dois estados competindo politicamente pelo mesmo dinheiro, e por prestígio social e político e por poder e por contatos, sempre que o Departamento de Saúde comete algum erro, a imprensa pode expô-lo, denunciar o erro. As pessoas são informadas, aprendem a fiscalizar e a criticar e facilmente concluem que ninguém deveria por mais dinheiro bom numa estrutura cheia de furos. “Por que acrescentar dinheiro bom, onde só há dinheiro ruim? O Departamento de Saúde Pública recebeu dinheiro e gastou mal”. Há, pelo menos, uma esperança de que o controle social conserte os erros. Mas se a CIA erra, ninguém pode sequer saber do erro. O erro não pode nem ser relatado, ninguém pode sequer saber que houve erro. Então, não resta alternativa além de continuar pondo cada vez mais dinheiro na mesma estrutura cheia de furos. Os militares e os serviços de inteligência não podem ser fiscalizados pelos eleitores. Por isso crescem sem parar, mesmo quando toda a economia está encolhendo.

[continua].

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