domingo, 14 de agosto de 2011

Os indignados: “Sobre Toni Negri”


“Nós vamos rolar de rir” 

Toni Negri em Veneza
14/8/2011, Sobre Toni Negri, Ed Emery [1], Le Monde Diplomatique 
Mass outrage e em Counterpunch
Traduzido e ilustrado pelo pessoal da Vila Vudu

“Mas que malandro sou eu
Pra ficar dando colher de chá
Se eu não tiver colher, vou deitar e rolar.”
(Vou deitar e rolar, Baden Powell)

Quando Toni Negri, agora aos 78 anos, escreve e fala, há sempre algum latim na sua fala profunda, mas o discurso é claro, disciplinado, lúcido e prazeroso. É como um abraço viril, muscular e poderoso, como tudo que sua formidável inteligência produz. Precisamos muito desse tipo de pensamento, porque os modelos esquerdistas do passado já não funcionam e algo novo tinha, sim, de ser inventado.

Seu livro Empire não sai das listas de mais vendidos nos EUA, mas Negri não tem partido,nem organização, nem legiões de seguidores. Diz ele: “Sinto-me um pouco isolado, porque sou e sempre fui extremista. Quem queira fazer carreira, ou manter relacionamento ‘estável’ com o mundo da política ordinária, evita envolver-se comigo.” Seu trabalho é teorizar as práticas passadas e as possibilidades futuras da revolução. Já há mais de vinte anos, escreve que as “classes” deram lugar à “multidão” como conceito e termo analítico. Seus adversários e detratores dizem que as massas não estão nas ruas, nas barricadas, aos gritos de “Somos a multidão”.

A Primavera Árabe pareceu bom momento para visitar Negri, uma vez que o que se vê nas principais praças de várias capitais em torno do Mediterrâneo é bem semelhante a multidão em ação, o que Negri disse em inúmeros artigos para vários jornais. Conversar com Negri é diferente de ler o que ele escreve, sobretudo no meu caso, que traduzo seus escritos para o inglês. 

Num trem para Veneza, no trevo ferroviário de Mestre, esse espaço paradisíaco de terra, vento e água, dou-me conta de que já fazem 40 anos que traduzo o que o Negri escreve. Vejo-me outra vez em Londres, no início dos anos 1970s, ambos ativistas recém saídos da universidade, vivendo numa comuna frequentemente visitada pela polícia. Tínhamos uma sala de impressão montada no porão (ainda sinto saudades do chug-chug da impressora Multilith 1250 Offset e do cheiro acre dos panfletos recém impressos). Um grande mapa da Itália na parede, porque a Itália era o coração do território da revolução da classe trabalhadora, para todas as fábricas da Europa.

Acabaram por concluir que éramos parte de uma conspiração internacional, o que, em certo sentido, éramos. Mostraram especial interesse por um documento que encontraram na minha gaveta, os papéis da Conferência da organização Potere Operaio (Poder Operário), que revolucionou o modo como entendíamos a luta de classes, pela periodização histórica das lutas trabalhistas, dividindo-as em ciclos. Negri foi uma das vozes no Potere Operaio que teorizou o “trabalhador-massa” que levou às lutas dos anos 1970s. Foi a fonte inspiracional que me pôs a traduzir tudo que ele escrevesse, embora meus esforços iniciais tenham sido descartados pela polícia e por ‘patrulhas’ ideológicas.

Aquela paisagem política do “trabalhador-massa” empregado em sistemas de trabalho medido por dia, fora ocupada por trabalhadores da indústria automobilística, estivadores, mineiros, operários da construção civil e seus sindicatos: um ciclo internacional de lutras trabalhistas capazes de derrubar governos. Tudo aquilo mudara. O capitalismo industrial baseado em classes trabalhadoras fabris dera lugar a um novo capitalismo, baseado em serviços financeiros, na economia digital, na produção e no comércio do conhecimento: “capitalismo cognitivo”. No território capitalista, já não se veem bancadas de ferramentas, mas manipulam-se, criam-se e valorizam-se dados e redes digitais. Facebook e Google são maiores que a General Motors. As novas massas, de “trabalho imaterial”, são a “multidão” de Negri.

Quando a onda de lutas fabris recuou, derrotada, a Itália entrou nos “anos de chumbo” (anni di piombo), o terrorismo político dos anos 1970-80s. Negri foi preso, com centenas de outros da esquerda autonomista (autonomia operaia) no primeiro dos movimentos de massa que começaram dia 7 de abril de 1979. Passou quatro anos na prisão, a partir de 1979, depois em exílio na França e depois novamente a prisão, na Itália. Negri conta a história desses anos em Diario di un’evasione (1985, Hachette) e Pipe-line. Lettere da Rebibbia (2009, Feltrinelli). Com o fim do sistema soviético, havia carência absoluta de reflexão forte que explicasse o novo estado do mundo. Negri embarcou em seu maior trabalho, com Michael Hardt na Duke University, e publicaram Império (2000), Multidão (2004) e Commonwealth (2009).

A ideia do “comum” 

Escapando ao bloqueio histórico a que a experiência soviética condenara o comunismo, Negri voltou à ideia do “comum” que sempre esteve na raiz daquele pensamento. Discute uma realidade gêmea de “commons”. Identificando a raiz da atual crise econômica, vê um “comum” capitalista, uma unificação e comunalidade (comunanza) dos interesses capitalistas, sobretudo nas finanças. “Às vezes, usando as palavras com excessiva imprecisão, há quem veja nisso ‘o comunismo do capital’. Aí está um ‘comum’ do qual temos de dar conta. E que temos de expropriar.” 

O conceito fundamental da tradição do operaísmo italiano é que o capitalismo sempre mapeia seus desenvolvimentos segundo as lutas e a resistência dos trabalhadores. Hoje, como efeito das lutas do trabalho nos anos 1970-80s, há uma comunalidade no trabalho, caracterizada pela imaterialidade, pelos conteúdos cognitivos e pela comunicação implícita em todas as áreas do trabalho em mundo capitalista. Nesse quadro, é indispensável modificar o modo como pensamos a organização da mudança social. Nas palavras de Negri: “A revolução já não visa a ocupar o Palácio de Inverno, como no tempo dos bolcheviques. Em vez disso, temos hoje essas formas de comum, essas formas de interação, a potência das redes, a pluralidade, a policontextualidade, que se vão expandindo cada vez mais amplamente”.

Mas como se pode organizar a fúria, a urgência e a agressividade que se viu no norte da África e na Espanha, Portugal e Grécia? Em Commonwealth Negri discute essa questão. 

Chama à fúria indignação e encontra raízes em Spinoza, que diz que na indignação descobrimos nossa força para agir contra a opressão. Mas o problema é como transformar esses momentos de fúria popular em instituições duráveis do poder do povo? Para Negri e seus companheiros, nessa fase do capitalismo todas as metrópoles tornaram-se arenas de produção e de resistência. Vivemos sob um sistema “biopolítico” (toda o campo da vida é político). A teoria revolucionária tem de ser desenvolvida no contexto biopolítico: inserir Marx no pensamento de Foucault. Assim sendo, qual a tarefa dos revolucionários? “Nossa tarefa é investigar o quadro organizacional das subjetividades antagonistas que nascem de baixo, baseados na indignação manifestada pelos sujeitos ante a opressão (...) a exploração (...) e a expropriação” (Michael Hardt e Toni Negri, Commonwealth).

Indignação talvez pareça conceito vago, mas, no instante em que escrevo, vejo pela televisão imagens da praça Sintagma, em Atenas, com milhares de manifestantes cercando o Parlamento grego, em protesto contra novas leis de ‘austeridade’. Numa enorme faixa, lê-se a palavra que simboliza o movimento: Aganaktismeni. Os indignados. Como, antes dos gregos, os espanhóis, Los indignados. Negri lá estava, de pleno direito.

Negri é sempre muito acessível. Nos anos 1980s, traduzi e publiquei um volume dos escritos de Negri, Revolution Retrieved (Toni Negri, Revolution Retrieved: Writings on Marx, Keynes, capitalist crisis and new social subjects (1967-83), ed. e trad. Ed Emery e John Merrington, Londres: Red Notes, 1983), em colaboração com John Merrington. Ainda tenho algumas cópias; da venda, recolho dinheiro que azeita as engrenagens da revolução. 

Semana passada, descobri que o livro foi escaneado por “Libertarian Communists” e distribuído pela rede gratuitamente, o que explica que minhas vendas, de repente, tenham caído a zero. Pedi que tirassem de lá o meu livro, mas não tiraram. Portanto, como presentinho meu aos leitores, aqui vão as instruções para baixar e imprimir, gratuitamente: basta clicar em Revolution Retrieved e imprimir. O livro leva o título de “Negri — Revolt at Trani Prison”. Aproveitem. 

Viajando para entrevistar Negri, também tinha planos de capturar algumas das histórias engraçadas que ele conta, de uma longa e profícua vida como filósofo, teórico, ativista, exilado e prisioneiro. O resultado são 13 curta-metragens que se encontram em YouTube; o primeiro é “The Revolt at Trani Prison” (1980) (Racconti curiosi no 13: “The Revolt at Trani Prison”.


A tragédia e as gargalhadas contêm um segredinho para a decifração do último parágrafo da trilogia. O coração e a alma da revolução, diz Negri, serão o riso. “Nossa risada é, afinal, a risada da destruição, a risada de anjos armados que acompanha o último combate contra o mal. Na luta contra a exploração capitalista (...) todos sofreremos terrivelmente, mas, seja como for, haverá risos de alegria. Nós os enterraremos por rir deles.” Ou, mais poeticamente, em italiano, Sarà una risata che vi seppellirà.



Nota dos tradutores
[1] Ed Emery é um dos animadores da Free University, Universitas adversitatis, “Universidade da Adversidade”.

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