quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quem salvará a Líbia de seus salvadores ocidentais?


15/8/2011, Jean Bricmont e Diana Johnstone, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu




Jean Bricmont é autor de Humanitarian Imperialism. Sobre o livro, ver CHOMSKY, Noam, “A nova doutrina do direito imperial”, Monthly Review.



JB recebe e-mails em Jean.Bricmont@uclouvain.be



Diana Johnstone é autora de Fools’ Crusade. Yugoslavia, NATO, and Western Delusions, 2003.
Sobre o livro, ver em Monthly Review: “Intervenções militares supostamente humanitárias são traço característicos da ordem global pós-Guerra Fria. Desde 11/9/2001, essa forma de militarismo ganhou proporções jamais antes imaginadas. Diana Johnstone demonstra nesse estudo, fartamente documentado, que o momento crucial no qual se criou para a opinião pública – e, sobretudo, no contexto político do liberalismo, também para as esquerdas – a ideia de que essas intervenções teriam alguma legitimidade “humanitária” foi o bombardeio contra a ex-Iugoslávia, em 1999”, aqui traduzido).
DJ recebe e-mails em diana.josto@yahoo.fr 

Em março passado, uma coalizão de potências do ocidente e ditaduras árabes reuniram-se para patrocinar o que foi apresentado como rápida operação militar para “proteger cidadãos líbios”.

Dia 17 de março, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução n. 1.973 que deu àquela especialíssima “coalizão de vontades” luz verde para iniciar sua guerra fechando o espaço aéreo sírio, e que, imediatamente passou a ser usada como autorização para que a OTAN bombardeasse o que quisesse bombardear. Os líderes da coalizão ocidental esperaram que cidadãos gratos se aproveitassem daquela violenta “proteção” para derrubar o governo de Muammar Gaddafi o qual, como se dizia no ocidente, desejava “matar seu próprio povo”. A partir da suposição de que a Líbia estivesse claramente dividida entre “o povo” de um lado e “o ditador maléfico” do outro, esperava-se que a queda do governo de Gaddafi seria questão de dias. Aos olhos do ocidente, Gaddafi seria ditador ainda pior que o da Tunísia, Ben Ali ou do Egito, Mubarak, que caíram sem qualquer intervenção da OTAN. Com as armas da OTAN, a queda de Gaddafi só poderia ser ainda mais rápida.

Cinco meses depois, todas as suposições e pressuposições nas quais se baseara a declaração de guerra, já estão provadas como falsas, total ou parcialmente. Organizações de direitos humanos não conseguiram encontrar qualquer tipo de prova dos “crimes contra a humanidade” que teriam sido ordenados por Gaddafi contra “seu próprio povo”. O reconhecimento do Conselho Nacional de Transição [ing. Transitional National Council (TNC)] como “único legítimo representante do povo líbio” por governos ocidentais transformou-se, de precipitado, em ridículo. 

A OTAN meteu-se e exacerbou uma guerra civil que já não parece ter fim à vista e está convertendo a Líbia, de país próspero, em amontoado de ruínas.

Mas, por sem fundamento e absurda que seja, a guerra na Líbia prossegue. Quem, ou o quê, pode pôr fim ao que se vê na Líbia?

Boa leitura para esse verão foi o excelente livro de Adam Hochschild sobre a 1ª Guerra Mundial, To End All Wars [Para pôr fim a todas as guerras]. Há ali várias lições para os nossos tempos, mas talvez a mais pertinente seja nos ensinar que, uma vez iniciada uma guerra, é difícil terminá-la.

Os homens que iniciaram a 1ª Guerra Mundial também esperavam que fosse guerra rápida. Mas apesar de milhões já terem sido devorados pela máquina de matar, e o sem propósito e sem saída de toda a empreitada já estarem claros para todos, a guerra arrastou-se por quatro miseráveis anos. A própria guerra gera mais ódio e mais desejo de vingança, cada dia mais. Uma vez que as grandes potências iniciam uma guerra, elas “tem” de vencer, custe o que custar – para elas próprias e, sobretudo, para impor-se aos outros.

Até agora, o custo da guerra contra a Líbia, para os agressores da OTAN, é apenas financeiro, o que gera a expectativa de recolher o botim do país “libertado”, que pagará o custo de ter sido bombardeado até virar ruínas. Só o povo líbio perdeu e continua a perder vidas e infraestrutura. O que, afinal, pode deter esse massacre?

Na 1ª Guerra Mundial, havia um valente movimento antiguerra que desafiou a histeria chauvinista do período de guerras e exigiu paz. Os que lutaram contra a guerra correram risco de vida e de prisão.

O relato que Hochschild oferece da luta pela paz, por homens e mulheres corajosos na Grã-Bretanha, deveria servir como inspiração – mas inspiração para quem? 

Os riscos de opor-se à guerra da OTAN contra a Líbia são mínimos, se comparados a 1914-1918. Mas não se vê nenhuma ativa oposição.

É particularmente verdade em relação à França, cujo presidente Nicolas Sarkozy tomou a iniciativa de iniciar aquela guerra.

Acumulam-se provas de mortes de cidadãos líbios, inclusive de crianças, causadas pelas bombas da OTAN.

O bombardeio da OTAN visa, diretamente, a infraestrutura civil, para privar a população que vive em território leal a Gaddafi das condições mínimas de sobrevivência, comida e água, aparentemente para inspirar as populações a derrubar Gaddafi. A guerra para “proteger civis” foi evidentemente convertida e guerra para aterrorizar e atormentar populações civis, de modo a conseguir que o Governo de Transição apoiado pela OTAN consiga chegar ao poder.

A guerra contra a Líbia já expôs a OTAN como entidade criminosa e incompetente.

Também já expôs como absolutamente imprestável a esquerda organizada nos países da OTAN. Talvez jamais antes tenha havido guerra mais fácil de desmascarar e de fazer-lhe oposição. Mas a esquerda organizada na Europa não está se opondo à guerra da OTAN contra a Líbia.

Há três meses, quando começou na imprensa o frenesi contra a Líbia, lançado pela rede de televisão Al Jazeera do Qatar, a esquerda organizada não hesitou ao escolher um lado. Duas dúzias de organizações esquerdistas francesas e norte-africanas convocaram uma “marcha de solidariedade ao povo líbio” em Paris, dia 26 de março. Em demonstração pública de total confusão, aquelas organizações pediam, simultaneamente, “o reconhecimento do Conselho Nacional de Transição como único legítimo representante do povo líbio” e, ao mesmo tempo, “proteção para imigrantes e residentes estrangeiros” os quais, de fato, precisam ser protegidos, isso sim, da ação criminosa dos “rebeldes” representados naquele Conselho.

Ao mesmo tempo em que implicitamente apoiavam a ação militar de apoio ao Conselho de Transição, aqueles grupos também falavam de “vigiar a duplicidade hipócrita dos governos ocidentais e da Liga Árabe” e uma possível “escalada” das operações.

As organizações que assinaram tal apelo incluíam grupos da oposição no exílio da Líbia, Síria, Tunísia, Marrocos e Argélia, além dos ‘Verdes’ franceses, do Partido Anticapitalista, do Partido Comunista Francês, do Partido Esquerda, do movimento antirracista MRAP e do ATTAC, um movimento eclético de educação popular, crítico da globalização financeira. Em conjunto, esses grupos representam virtualmente todas as gamas da esquerda política do Partido Socialista da França – o qual, por sua vez, apoiou o ataque da OTAN à Líbia, sem sequer alertar sobre qualquer “vigilância” de qualquer “hipocrisia”.

Nem agora, que as vítimas civis dos ataques da OTAN já se acumulam, vê-se qualquer sinal objetivo da prometida “vigilância para prevenir a escalada da guerra” nem qualquer denúncia do flagrante desrespeito à determinação do Conselho de Segurança da ONU.

Ativistas que, em março, diziam que “nós temos de fazer alguma coisa” para impedir um hipotético massacre por Gaddafi, que jamais houve, nada fazem hoje para parar um massacre nada hipotético e muito real e visível, e cujos criminosos ativos são, exatamente, os que fizeram “alguma coisa”.

A falácia básica do “nós temos de fazer alguma coisa” dos grupos esquerdistas está, precisamente, no significado de “nós”. Se queriam dizer “nós” literalmente, então seria indispensável montarem brigadas internacionais para combater ao lado dos ‘rebeldes’. Mas, evidentemente, por mais que falem de “nós” termos de fazer alguma coisa para apoiar os “rebeldes”, nenhum esquerdista europeu dedicou qualquer reflexão mais séria ao caso e jamais cogitou de arriscar a própria vida para realmente apoiar coisa alguma.

Portanto, aquele “nós” dos esquerdistas europeus significa, de fato, “nós, as potências ocidentais”, OTAN e, sobretudo, os EUA, únicas entidades com “capacidades únicas” para inventar e manter uma guerra daquelas dimensões.

O pessoal do “nós temos de fazer alguma coisa” em geral mistura dois tipos de demandas: uma demanda que podem, com realismo, esperar que seja atendida por aquelas potências ocidentais – apoiar os “rebeldes’” reconhecer a legitimidade do Conselho de Transição – e outra demanda que, com realismo, não podem esperar que as Grandes Potências atendam e que, simultaneamente, os esquerdistas tampouco são capazes de fazer respeitar: limitar o bombardeamento a alvos militares e para proteger civis e exigir que a ação da OTAN mantenha-se estritamente nos limites das resoluções da ONU.

Essas demandas esquerdistas são contraditórias. Numa guerra civil, nenhum lado tem qualquer tipo de preocupação com respeitar resoluções da ONU ou proteger civis. Os dois lados querem vencer, ponto, parágrafo. E, de um ponto em diante, o que rege é o desejo de vingança, de retaliar. Se alguém ‘apoia’ os “rebeldes”, na prática está dando licença para que os “rebeldes” façam o que julguem necessário para vencer.

Mas, nesse caso, dá-se também carta branca aos aliados ocidentais e à OTAN, que talvez, em tese, sejam menos sanguinários que os ‘rebeldes’ mas que, por outro lado, têm à sua disposição, meios de destruição infinitamente mais daninhos. E todas essas potências são burocracias gigantescas, que contam também com gigantescas máquinas de “ressuscitação” a seu serviço. Sobretudo, essas potências têm de vencer. Se não vencerem, cria-se para as potências um grave problema de “credibilidade” (que atinge também diretamente os políticos que apoiaram a guerra – para nem falar dos que declararam a guerra!). Derrotados, todos perdem recursos e fundos de financiamento e apoio político. 

Declarada a guerra da Líbia, simplesmente não há força no ocidente, sobretudo em momento em que não haja movimento popular antiguerra, que possa obrigar a OTAN a respeitar o mandado que recebeu da ONU. Portanto, o segundo conjunto de demandas dos esquerdistas é delírio e cai fatalmente em ouvidos surdos. As demandas dos esquerdistas europeus servem, exclusivamente, para confirmar, para a opinião pública mundial e, sobretudo, para os próprios esquerdistas pró-guerra, que suas intenções são puras. 

Mas ao apoiar os “rebeldes”, os esquerdistas que defendem a intervenção “humanitária” mataram, de fato, o movimento antiguerra. A verdade é que não faz sentido algum apoiar “rebeldes” que anseiam pelo apoio das forças estrangeiras de intervenção numa guerra civil e, ao mesmo tempo, opor-se a intervenções. Pode-se dizer, portanto que a direita que apoia a intervenção na Líbia é muito mais coerente que as esquerdas que também apoiam aquela intervenção.

Os esquerdistas pró-intervenção na Líbia e a direita também pró-intervenção partilham a convicção de que “nós” (quer dizer: o ocidente democrático e civilizado) teríamos algum direito e alguma competência para impor nosso desejo e nosso direito a outros países. Alguns movimentos franceses cujo único trabalho é denunciar o racismo e o colonialismo não lembraram, sequer, que as conquistas coloniais sempre foram lutas contra sátrapas locais, príncipes indianos e reis africanos todos denunciados como autocratas (o que eram). Tampouco se dão conta de que há alguma coisa muito esquisita e suspeita na ideia de que organizações francesas (de direita ou de esquerda, tanto faz, se se observam os movimentos de todas essas) apresentem-se como competentes e legítimas para decidir quais seriam os “legítimos representantes” do povo líbio.

Apesar dos esforços de alguns indivíduos isolados, não há movimento popular na Europa capaz de deter ou, no mínimo conter o ímpeto da OTAN que, hoje, massacra cidadãos líbios. A única esperança é o colapso dos “rebeldes”, ou que os EUA decidam opor-se ao massacre, em vez de estimulá-lo, ou que alguma das ditaduras que hoje financiam e armam os “rebeldes” retirem seu apoio. 

Preocupante, isso sim, é que a esquerda europeia tenha desperdiçado a oportunidade de voltar às lutas pela dignidade dos oprimidos, fazendo oposição a uma das guerras mais escandalosamente injustificáveis de que se tem notícia. Nesse caso, sim, se pode falar de falência moral. Toda a Europa sofrerá por causa do fracasso moral de sua esquerda.

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