quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O teto da dívida começa a ser progressivamente revogado


Obama usa táticas de intimidação para levar os democratas a votarem o seu plano republicano para a Wall Street

 

Michael Hudson
por Michael Hudson

O salvamento melodramático da Wall Street deve ser visto como um ensaio geral para a não-crise do teto da dívida.

Apercebemo-nos de que a excitação em torno da dívida é tão melodramaticamente encenada como um combate de luta livre, quando Obama ameaça de forma gritante e vazia que se o Congresso não “enfrentar os duros desafios que são a reforma fiscal e a reforma dos direitos adquiridos”, não haverá dinheiro para pagar os cheques da Segurança Social já no próximo mês. No discurso que fez ontem (25 Julho) acerca da dívida ameaçava que “se entrarmos em inadimplência, não teremos dinheiro para pagar todas as nossas contas – como a segurança social, a reforma dos veteranos, ou os contratos que o governo assinou com milhares de empresas”.

Isto não está nem sequer perto da verdade. No entanto tornou-se a ameaça principal desde há uma semana, quando o Presidente usou praticamente as mesmas palavras quando entrevistado por Scott Pelley na CBS Evening News.

É claro que o Governo terá dinheiro suficiente para pagar os cheques mensais da Segurança Social. A administração da Segurança Social tem as suas reservas próprias – em títulos do tesouro. Eu compreendo que os advogados (como Obama e, na verdade, a maioria dos presidentes norte-americanos) raramente entendem de economia. Mas o que aqui se trata é um problema legal. O Sr. Obama compreende certamente que a Segurança Social é solvente, e que possui títulos suficientemente líquidos para assegurar os seus pagamentos durante a década vindoura. Ainda assim, Obama faz da Segurança Social o seu principal alvo.

A explicação mais razoável para esta ameaça sem fundamento reside no fato de ele procurar instaurar o pânico junto dos mais idosos para que estes alimentem esperanças de que o plano que ele tem preparado para o orçamento os possa salvar. A realidade é que estão a ser conduzidos a uma autêntica chacina econômica (tudo isto sem que uma única palavra recordando a realidade dos fatos, seja endereçada ao presidente pelo Rubiconômico secretário do Tesouro Geither, pelo presidente da Reserva Federal, Bernanke ou por quem quer que seja na administração Wall-Streetiana Democrata, anteriormente conhecida como Democratic Leadership Council).

Trata-se de pura fraude.

Obama veio para enterrar a Segurança Social, a Medicare e a Medicaid e não para as salvar. Isto tornou-se claro quando esta administração nomeou a sua Comissão para a Redução do Déficit, chefiada por inimigos declarados do senador Alan Simpson, referência do Partido Republicano no que toca à segurança social, e de Erskin Bowles, chefe de gabinete de Bill Clinton. A mais recente escolha por parte de Obama de congressistas republicanos e de democratas moderados, incumbidos de reescrever o código fiscal de forma bipartidária – para que não possa ser atacado – é nada mais do que uma manobra para fazer aprovar uma “reforma” fiscal que os representantes democraticamente eleitos dificilmente considerariam noutras circunstâncias.

O diabo está sempre nos pormenores. Normalmente os lobbyes de Wall Street têm sempre esses mesmos pormenores bem aconchegados nas pastas, que fazem chegar às mãos dos seus congressistas e senadores mais dedicados. Neste caso tem também o Presidente, que acatou os seus conselhos acerca de quem nomear para a sua administração, de forma a que estes agissem como seus lacaios na conquista do governo para a sua causa, criando um “socialismo para os ricos”.

Tal socialismo não é coisa que exista, como é evidente. Quando os governos são controlados pelos ricos chama-se oligarquia. Os diálogos de Platão mostraram claramente que em vez de vermos as sociedades como oligarquias ou democracias, deveríamos vê-las em movimento. As democracias tendem a polarizar-se economicamente (normalmente entre credores e devedores) rumo a uma oligarquia. Estas últimas tendem por sua vez para uma transformação em aristocracias hereditárias. Com o tempo as famílias dominantes lutarão entre si, e haverá uma facção que, como Clístenes em 507 a.c., tomará o povo como parte integrante, criando uma democracia, e eternizando o triângulo político.

“E precisamente isto que sucede hoje em dia. Em vez de gozarmos o que tinha sido previsto pela Era Progressista – isto é uma evolução para o socialismo, onde o governo providencia as infra-estruturas básicas da sociedade recorrendo a um mecanismo de subsídios – estamos a viver um verdadeiro retrocesso rumo a um neo-feudalismo. A diferença reside no fato de, desta vez, a sociedade não ser controlada por caudilhos militares. A finança alcançou aquilo que a força militar alcançara outrora. Em vez de estarem presas à terra, como no feudalismo, as famílias têm, hoje, a liberdade de viver onde bem entendem – desde que levem toda uma vida para pagar o empréstimo da sua casa.

Em vez de pagar um tributo sobre a terra aos conquistadores, pagamos aos bancos. Assim como o acesso à terra era uma condição fundamental para a sobrevivência das famílias durante o feudalismo, assim hoje necessitamos de acesso ao crédito, à água, aos cuidados médicos, pensões, segurança social, entre outros – sobre tudo isto temos de pagar um juro, temos de pagar taxas e rendas a uma oligarquia neo-feudal que se expande habilmente dos Estados Unidos para a Irlanda e para a Grécia.

O governo norte-americano gastou 13 bilhões de dólares em resgates financeiros desde a falência da Lehman Brothers em Setembro de 2008. No entanto, Obama alerta-nos para o fato de que, daqui a 30 anos, o déficit da Segurança Social pode chegar a 1 bilhão de dólares, e é para prevenir esse mesmo déficit que ele procura cortar nos pagamentos hoje.

Ao que parece os 13 bilhões esgotaram todo o dinheiro que o governo tinha à disposição. Os bancos e a Wall Street ficaram com o dinheiro e fugiram e já não há dinheiro suficiente para pagar a Segurança Social, a Medicare e as outras despesas do estado que os Democratas moderados e os Republicanos procuram agora cortar.

Mas não para já. Este plano servirá para esconder a atual crise, delegando os planos para uma “Comissão de Redução da Dívida 2” composta por membros do Congresso.

Finalmente temos “uma mudança em que podemos acreditar”

Afinal, a mudança acaba sempre por ser surpreendente.

A falsa crise

Normalmente uma crise é necessária para criar um vácuo para o qual são expelidos estes resíduos tóxicos. A Wall Street não gosta de crises reais – exceto quando procura ganhos fáceis, obtidos através de especulações informatizadas acerca da azáfama dos mercados. Mas quando se trata de dinheiro a sério, a ilusão da crise é preferível, melodramaticamente encenada para arrancar a maior reação emotiva da plateia, tal como um bom realizador de cinema faz quando procura montar uma boa sequência: Será que o trem que aparece a alta velocidade acabará por abalroar a mocinha que está presa aos trilhos? Ou escapará ela a tempo?

O trem é, neste caso, a dívida; sendo a mocinha a economia americana. No entanto, cedo descobrimos que a mocinha nada mais é que a Wall Street num mal disfarçada. Este exercício acaba por ser uma comédia, não lá muito divina. Obama apresenta um plano muito republicano que os republicanos rejeitam. Trata-se de uma ilusão de luta política, acabando os republicanos por dizer que Obama é socialista.

Os democratas por seu lado fingem-se chocados. Muitos dizem: “Onde está o verdadeiro Obama?”, mas ao que parece, Obama revela-se um impostor republicano ao serviço da Wall Street, disfarçado de democrata. No fundo é precisamente isso que é o Democrat Leadership Council: Conselho de Democratas da Wall Street.

Não se trata de um paradoxo tão grande quanto possa parecer. Há uma razão para o fato dos democratas atuais da era pós-clinton alinharem de forma consequente na destruição do legado de Franklin Roosevelt e dos antigos democratas. Um senado dominado pelos democratas nunca aprovaria o mesmo plano de doações à Wall Street se um presidente republicano o propusesse exatamente nos mesmos termos em que o propõe hoje Obama.

Eis o que o próximo candidato presidencial republicano poderá dizer: “Vocês sabem que podemos contar com o apoio de Obama para apoiar qualquer medida que nós, republicanos, queiramos. Se não quiserem políticas republicanas então devem votar em mim para presidente, pois um congresso de maioria democrata irá certamente opor-se às medidas republicanas se formos nós a propô-las. Mas se for o Sr. Obama a propor, certamente que o congresso não resistirá a aprová-las.

A história é a mesma no Reino Unido onde o partido trabalhista é convocado a concluir a tarefa iniciada pelos conservadores, que necessitaram do novo partido trabalhista (new labour) para privatizar as ferrovias e para levar a cabo as desastrosas parcerias público-privadas para as novas linhas de metro londrinas. A história repete-se também em França onde os socialistas apoiam o programa de privatizações ditado pelo Banco Central Europeu.

A coleção de falácias habituais

Quando encontramos os governantes e a imprensa repetindo um erro econômico numa lenga-lenga incessante, é porque existem interesses maiores em jogo. O setor da finança procura convencer os eleitores de que a economia entrará em crise caso a Wall Street não obtenha o que quer – nomeadamente a desregulação e a isenção fiscal.

A primeira falácia de Obama é a de que “um orçamento de estado é como um orçamento familiar”. No entanto as famílias não podem emitir títulos de dívida (IOUs) que valem como dinheiro em todo o mundo. Apenas os governos o podem fazer: é um privilégio que os bancos gostariam de ter – o poder de criar crédito livremente a partir dos teclados dos seus computadores, cobrando juros por aquilo que é praticamente gratuito, e que os governos fazem realmente de forma gratuita. (Trata-se da Teoria de Estado do Dinheiro. Ver o blog da UMCK Economics.)

“Hoje em dia, qualquer família sabe que uma pequena dívida de cartão de crédito é algo administrável. Mas se continuarmos pelo mesmo caminho a nossa crescente dívida custar-nos-á muitos empregos e afectará negativamente a economia”. No entanto as economias precisam do dinheiro do governo para financiar o seu próprio crescimento e esse dinheiro é obtido através da contração de dívida por parte dos estados. É esta a essência do investimento contra-cíclico keynesiano desde há já meio século. E era, até aos nossos dias, a política econômica fundamental do Partido Democrata.

É verdade que durante a administração Clinton houve um superávit orçamentário. A economia sobreviveu então através do fornecimento de crédito por parte dos bancos comerciais, cobrando o juro. Para obrigar a economia a voltar a uma tal relação com a Wall Street, em vez de com o governo, este necessita de acabar com o seu déficit orçamentário. A economia terá então de escolher entre a sua própria contração e a entrega de toda a mais-valia econômica aos bancos sob a forma de uma taxa econômica pela sua criação de crédito.

Obama também procura passar a ideia de que as agências de rating são capazes de atuar como servilmente em relação aos os seus clientes, fazendo a economia pagar um juro cada vez mais alto sobre os cartões de crédito e atividades bancárias. “Pela primeira vez na história”, diz-nos Obama “a classificação triplo A do nosso país será revista em baixa, deixando os investidores de todo o mundo a duvidar de que os Estados Unidos sejam ainda um bom investimento. As taxas de juro dos cartões de crédito, hipotecas, prestações do carro, disparariam para níveis astronômicos, que se juntariam a um aumento da carga fiscal sobre o povo americano”.

A verdade é que a existência de um superávit no orçamento de estado aumentará as taxas de juro ao obrigar a economia a ficar refém do sistema bancário. A administração Obama encontra-se hoje profundamente mergulhada numa fase de retórica orwelliana.

Porque é que Wall Street necessita dos democratas de Obama para aprovar a Rubinomics 2 no Congresso

Durante o discurso de Obama tive a sensação de que já tinha ouvido tudo aquilo antes. Lembrei-me então que em 2008, o secretário do Tesouro Henry Paulson procurou contrariar o argumento de Sheila Blair, segundo o qual todos os depositantes assegurados pela FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation) conseguiriam sair da crise de Setembro, sendo os apostadores de risco os únicos a perderem os ganhos que procuraram fazer através do crédito livre. “Se deixássemos entrar em colapso o sistema financeiro” dizia-nos Paulson no seu discurso na Biblioteca Reagan, “seria o povo americano a pagar o preço. Nunca foi um problema exclusivo dos bancos; o que sempre esteve em questão foi a manutenção da prosperidade e das oportunidades para todos os americanos".

É claro que aquilo que sempre esteve em questão foi a banca! Wall Street sabe que se quiser acabar com o New Deal, a Medicare, a Medicaide e com a segurança social, necessita de um presidente democrata. Um congresso de maioria democrata rejeitaria qualquer tentativa por parte de um presidente republicano que procurasse cortes tão drásticos como aqueles que Obama propõe. A oposição democrata no Congresso fica estarrecida quando é o próprio presidente Obama – o presidente liberal por excelência, o Tony Blair americano – a agir como o maior apoiador dos cortes nas prestações sociais.

Da mesma maneira que a City londrina apoiou a chegada do Partido Trabalhista ao poder, quando o Partido Conservador não se encontrava em posição de tomar medidas tão radicais como as privatizações das ferrovias e do metro londrino, também os sociais-democratas islandeses procuraram ativamente mergulhar a economia numa dívida que a tornasse refém do Reino Unido e da Holanda e os socialistas gregos lideram a corrida às privatizações e os resgates à banca, assim também nos Estados Unidos o Partido Democrata procura pôr os seus eleitores – nomeadamente os trabalhadores urbanos, as minorias raciais e os pobres, isto é, os mais afetados pelo plano de austeridade do Presidente Obama – nas mãos da Wall Street.

Assim, Obama está levando a cabo aquilo que qualquer bom demagogo normalmente faz: entregar a sorte dos seus eleitores aos financiadores da sua campanha da Wall Street. Yves Smith chamou-lhe o momento “Nixon-vai-à-China ao contrário” da presidência Obama.

Os Republicanos ajudaram ao refrear qualquer candidatura crível do seu campo à presidência. A ideia é dar margem de manobra a Obama para se deslocar cada vez mais para a direita do espectro político. De tal forma que são os Democratas os que mais põem em causa o sistema de segurança social e não os Republicanos.

Tudo isto é mais facilmente levado a cabo se existir uma constante pressão de um sentimento de pânico que começou com a TARP em Setembro de 2008. O melodrama do resgate da Wall Street deve ser visto como um ensaio-geral para a não-crise do limite da dívida.

29/Julho/2011

NR: Este artigo é anterior à aprovação pelo Congresso das medidas propostas por Obama.

Ver também Guerra e dívida , do mesmo autor sobre o mesmo assunto.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: The Debt Ceiling Set For Progressive Repealing.
Tradução de MQ.
Esta tradução encontra-se em: Resistir.
Adaptação ao português do Brasil: redecastorphoto

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