domingo, 14 de agosto de 2011

O comum em revolta

Judith Revel

12 /8/2011, Judith Revel e Toni Negri, Uninomade
(dica do Bruno Cava)
Traduzido, do inglês,  pelo Coletivo da Vila Vudu

Não era preciso muita imaginação, depois que a análise da atual crise econômica foi trazida de volta às suas causas e efeitos sociais, prever revoltas populares semelhantes a jacqueries [1]. Commonwealth [2], em 2009, já previra. O que não se esperava, ao contrário, é que na Itália a previsão fosse rejeitada no movimento. Seria previsão, como nos disseram, velha. Em vez disso, disseram, “é hora de reconstruir frentes amplas contra a crise e estabelecer, dentro dos movimentos, formas de organização-comunicação-reconhecimento para tratar da representação política”. 

Ora, mesmo assim estamos aí, face a face com movimentos que se expressam, eles mesmos, em formas insurrecionais mais ou menos clássicas e estão por toda parte, detonando a velha gramática geopolítica por cujos termos ainda há quem teime em continuar pensando. O que temos, pois, é o seguinte:

Toni Negri
1) Um novo proletariado, feito de trabalhadores precários e de desempregados, que se une à classe média em crise. São sujeitos diversos que se unem na luta, por vias não usuais, exigindo, como nos países do sul mediterrâneo, formas de governo novas, mais democráticas. As ditaduras políticas dos Ben Alis e a ditadura político-econômica das farsas democráticas em que vivemos podem não ser equivalentes – apesar de, durante décadas, as segundas terem acuradamente construído, apoiado e protegido as primeiras –, mas agora a urgência de democracia radical aparece por todos os lados, e marca um comum de lutas que emerge de diferentes pontos, misturando-se e se entretecendo, umas lutas alimentando as exigências das outras

2) As mesmíssimas forças sociais, os que sofrem com as crises em sociedades com relacionamentos de classes hoje já definitivamente controlados por regimes financeiros dentro de economias manufatureiras e/ou cognitivas, movem-se em diferentes territórios (primeiro, movimentos de trabalhadores, estudantes e do precariato em termos mais gerais; agora já complexos movimentos sociais do tipo dos “acampados”) com igual determinação.

3) O ressurgimento de movimentos de pura recusa é atravessado por uma composição societal tão complexa como sempre, estratificada verticalmente (i.e. as classes médias deslizando para o proletariado excluído) e horizontalmente (i.e. em relação a diferentes setores das metrópoles, divididas entre a gentrificação e – como noticia Saskia Sassen – zonas “brasileirizadas”[3], onde as disputas entre gangues já começa a deixar marcas de balas de metralhadoras AK-47 em paredes de áreas nas quais a única – dramática, entrópica – modalidade de luta organizada é o crime organizado).

As atuais revoltas na Inglaterra incluem-se nesse terceiro tipo e são bastante semelhantes às que, há algum tempo, afetaram os banlieues (subúrbios) de Paris: uma mistura de raiva e desespero, fragmentos de auto organização e cristalizações de outros tipos (associações de vizinhos, redes de solidariedade, torcidas de clubes de futebol etc.) expressando agora a insuportabilidade de vidas em ruínas. As ruínas, com certeza desestabilizadoras, que essas revoltas deixam atrás de si não são, afinal, muito diferentes das ruínas de que são feitas as vidas diárias de tantos homens e mulheres: são retalhos e restos de vida, de um modo ou de outro.

Como se pode abrir uma discussão desses complexos fenômenos, do ponto de vista que pensa o comum? O que adiante se lê é apenas registro de uma intenção de abrir um espaço para discutir.

Em primeiro lugar e antes de tudo, parece-nos que temos de deslocar algumas interpretações que a imprensa de massa das classes governantes jogou em campo.

Aquela imprensa diz, para começar, que os movimentos que estamos discutindo têm de ser considerados, de um ponto de vista político, em sua “radical” diversidade. Ora, é óbvio que esses movimentos são politicamente diversos. Mas insistir em que sejam “radicalmente” diversos é, simplesmente, tolice. 

Esses movimentos absolutamente não são ditos “radicais” por se oporem a Ben Ali ou outros ditadores, seja qual for, ou porque denunciem a traição política de Zapatero ou Papandreou, ou porque odeiem Cameron ou não aceitem as imposições do Banco Central Europeu. Os movimentos são ditos “radicais”, na imprensa, isso sim, porque todos eles recusam-se a pagar pelas consequências da economia e da crise (Nada poderia haver, de mais errado, que considerar a crise uma catástrofe que acometeu um sistema econômico fundamentalmente sadio; nada mais terrível que a nostalgia da economia capitalista de antes da crise!), o que é o mesmo que dizer que os movimentos são ditos “radicais” porque se opõem ao vasto movimento de riquezas que ocorre hoje em benefício dos poderosos, organizados como estão sob as formas políticas dos regimes ocidentais (democráticos ou ditatoriais, conservadores ou reformistas, pouco muda...).

São revoltas nascidas, no Egito, na Espanha ou na Inglaterra, da recusa à sujeição, à exploração e ao saque que essa economia preparou para a vida de vastas populações em todo o mundo, e, simultaneamente, é recusa às formas políticas mediante as quais a crise dessa expropriação biopolítica vinha sendo gerenciada. 

Isso vale também para os regimes chamados “democráticos”. Essa forma de governo só parece preferível pela aparente “civilidade” com que mascara o ataque à dignidade e à humanidade das vidas que esmaga. Mas o ‘ponto de fuga’ da representação política também já está à beira do colapso.

Argumentar que haveria – pelos critérios da democracia ocidental – diferenças radicais entre a representatividade na Tunísia de Ben Ali e na Tottenham ou Brixton de Cameron é, simplesmente, não ver as evidências: a vida foi tão violada e depauperada nos dois casos, que a única via que restou foi a explosão num movimento de revolta. Para nem falar dos mecanismos de repressão, que estão arrastando a Inglaterra de volta aos tempos da acumulação primitiva, às prisões de Moll Flanders e às fábricas de Oliver Twist. 

Ao lado dos cartazes com fotos dos jovens rebelados colados nas paredes e postes e exibidos em telões nas cidades inglesas, é preciso colar também fotos em tamanho gigante das carrancas suínas (variante dos PIGS – Portugal, Itália, Grécia e Espanha, economias do sul da Europa devastadas pela crise?) dos banqueiros e chefões das corporações financeiras que converteram comunidades inteiras em “bandidos procurados” e, simultaneamente, viram seus lucros engordarem ainda mais com a crise.

Voltemos aos jornais. Os jornais também dizem que essas revoltas são diferentes, de um ponto de vista ético-político. Haveria revoltas legítimas, como nos países do Maghreb, porque ali a corrupção de ditaduras gerou as condições de miséria. Os protestos de estudantes italianos ou dos “indignados” espanhóis ainda seriam compreensíveis, porque “é ruim ser precário”. Mas as revoltas do proletariado inglês ou francês, essas, seriam “criminosas” porque supostamente definidas por saqueio de propriedade alheia, vandalismo e ódio racial.

Tudo isso é falso, porque essas revoltas – apesar de todas as diferenças que há entre elas, que não negamos – têm uma natureza comum. Não são revoltas “de jovens”, mas revoltas que entendem as condições políticas e sociais que, cada dia mais, vastas camadas da população consideram absolutamente insuportáveis. A degradação do salário social e do trabalho foi além do limite que economistas clássicos e Marx identificaram como o mínimo necessário para a reprodução dos trabalhadores, que chamavam “salário de necessidade”. Os jornalistas, agora, se puderem, que digam que aquelas lutas foram geradas por excessos e desmandos do desejo de consumir!

Já temos aqui uma primeira conclusão. Esses movimentos podem ser definidos como “recomposicionais”. Eles realmente penetram nas populações – sejam de trabalhadores “com carteira assinada” pelo menos até hoje, sejam trabalhadores precários, desempregados ou os que até hoje só encontraram empregos irregulares, improvisações e atividades “não contabilizáveis” – exaltando seus momentos de solidariedade nas suas lutas contra a destituição.

Classes médias em declínio e o proletariado, migrantes e não migrantes, trabalhadores manuais e cognitivos, aposentados, donas de casa e jovens estão unidos na miséria e na luta contra ela. Afinal encontraram condições para uma luta em que se apresentam unidos.

Em segundo lugar, é imediatamente visível (e é o que mais aterroriza os que veem características de consumismo nesses movimentos) que não são movimentos nem caóticos nem niilistas, que não queimam e saqueiam “porque-sim”, que não querem simplesmente reforçar a potência destrutiva de algum tipo de “futuro zero”. 40 anos depois do movimento punk (que, por sua vez, apesar dos estereótipos, foi apaixonadamente produtivo), as revoltas de hoje não declaram o fim, registrado e internalizado, de todos os futuros: as revoltas de hoje querem construir o futuro. 

Eles sabem que a crise que hoje os afeta não se deve ao fato de o proletariado não produzir – seja em condições de emprego e patrão, seja na condição geral de cooperação social por processos transversais de captura de valores – ou de não produzir em quantidade suficiente; eles sabem que o que está acontecendo acontece porque o fruto de sua produtividade lhes está sendo roubado; o que é o mesmo que dizer que sabem que são forçados a pagar por uma crise que não é deles; que já pagaram pela assistência médica, aposentadorias e sistemas de ordem pública... Enquanto a burguesia acumulava para a guerra e para a expropriação, aumentando seus lucros. Mas, sobretudo, eles sabem que não há caminho para sair dessa crise, até que eles mesmos, os revoltosos e rebeldes, assumam o comando dos mecanismos de poder e das relações sociais que regulam aqueles mecanismos. 

Mas, dirá alguém, esses movimentos não são políticos. Mesmo que – os críticos acrescentam – expressem posições politicamente corretas (como aconteceu em movimentos no norte da África ou nos “indignados” espanhóis), esses movimentos são preconceituosos ou rebeldes contra a ordem democrática.

Claro, diremos nós: é difícil, senão impossível, encontrar, na ordem política atual, passagens e vias pelas quais possa passar algum projeto que ataque as políticas atuais e supere a crise. Direita e esquerda são, quase sempre, idênticas. Para a direita, o imposto sobre a riqueza deve atingir ganhos de 40-50 mil euros; para a esquerda, de 60-70 mil euros: será essa a diferença? Defender a propriedade privada, ampliar as privatizações e a liberalização são itens das agendas dos dois lados. Os sistemas eleitorais estão hoje reduzidos a pura e simples seleção de delegados dos estratos privilegiados e tal e tal e tal e tal. 

As revoltas hoje atacam tudo isso: são ou não são revoltas políticas? 

São movimentos, sim, políticos, porque se posicionam em terreno constituinte, não em terreno de ‘reivindicar’. Atacam a propriedade privada porque a reconhecem como a forma do que os oprime; e insistem em constituir e autogerir a solidariedade, o bem-estar social, a educação – numa palavra, o comum, porque esse é, hoje, o horizonte para novas e velhas potências.

Evidentemente não somos estúpidos o suficiente para supor que essas revoltas produzam automaticamente novas formas de governo. O que, contudo, essas revoltas ensinam é que “o uno está cindido em dois”, que a aparente solidez compacta do capitalismo já não passa de velha fantasmagoria, que de modo algum será reunificada, que o capital é sempre esquizofrênico e que a política dos movimentos só pode localizar-se nessa fratura.

Esperamos que os camaradas que acreditavam que as insurreições fossem ferramenta fora de moda da política autonomista consigam refletir sobre o que está acontecendo. Não será por nos consumir à espera de prazos parlamentares e regimentais, mas por inventar instituições constituintes para o comum em revolta, que poderemos compreender juntos o que está por vir.



Notas dos tradutores
[1] Jacqueries ou revolta dos Jacques, foram insurreições camponesas que houve no norte da França, entre 28 de Maio e 9 de Janeiro de 1358, durante a Guerra dos Cem Anos. A designação deriva de Jacques Bonhomme, expressão idiomática francesa, de conotação paternalista, que designava genericamente um camponês e que posteriormente foi usada pejorativamente, equivalendo a "joão-ninguém". A revolta iniciou-se de forma espontânea, reflectindo a sensação de desespero em que viviam as camadas mais pobres da sociedade, depois da Peste Negra, numa altura em que a França se encontrava num vazio de poder e à mercê das companhias livres, bandos de mercenários renegados que vagueavam pelo país”.
[2] Hardt, Michael and Antonio Negri. 2009. Commonwealth. Cambridge, MA: Harvard University Press.
[3] SASSEN, Saskia (1998). Globalization and its Discontents. New York: The New Press.

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