quinta-feira, 19 de abril de 2012

Reconectado com as classes populares – “Jean-Luc Mélenchon: a radicalização pela esquerda”


17/4/2012, Philippe Marlière, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu




Philippe Marlière é professor de Política Francesa e Europeia no University College, em Londres (UK).
Recebe e-mails em: p.marliere@ucl.ac.uk  




Soberbamente ignorado pela mídia-empresa enquanto foi possível ignorá-lo, Jean-Luc Mélenchon é o principal acontecimento da campanha eleitoral na França. De fato, no esforço para dar conta do crescimento dramático de Mélenchon nas pesquisas de intenção de voto – que já chega agora aos 17% – os jornalistas mal conseguem disfarçar o desprezo que lhes inspira o candidato da Frente de Esquerda.

Levantamento dos principais artigos publicados na mídia-empresa britânica oferece caso interessante de preconceito político, além de notável incapacidade para observar e avaliar o mundo à volta. Mélenchon é descrito como “zagueirão anglo-saxão com voz irritante” (The Independent), “populista” da “esquerda extremista” (todos os jornais) e “narcisista provocador e chato” (BBC). Os comentários mais patéticos comparam Mélenchon a George Galloway, ou o apresentam como “agitador de extrema esquerda”, o “garanhão” ou, então, o “pitbull do anticapitalismo”.  [1]

Interessante observar que mesmo a avaliação mais favorável das políticas de Mélenchon ainda fica muito longe de qualquer interpretação satisfatória. Mélenchon é visto como “esquerdista simpático, mas ultrapassado”. Essa avaliação não consegue sequer entender a essência de suas ambições políticas. O crescimento de Mélenchon nas pesquisas nada tem a ver com “política e nostalgia ao estilo dos anos 1970s”. É efeito, isso sim, do modo resoluto como enfrenta, diretamente, a atual crise do capitalismo.

Diz ao seu público, nos comícios, que as políticas de austeridade implementadas em toda a Europa não são só injustas; que são também contraproducentes (ideia com a qual até o Financial Times concorda). [Inventou e usa muito, nos discursos, o adjetivo “austeritário”, aplicado aos políticos que defendem políticas de “austeridade” em toda a Europa; “austeritário” é magnífica neologia. Além de outros traços, o novo adjetivo dá interpretação criativa-esculhambativa à tal “austeridade”, que nada tem de austera em sentido produtivo, e é só, mesmo, política autoritária de arrocho (NTs)]. 

Os talentos de polemista e debatedor brilhante servem muito bem à sua luta, mas Mélenchon é culto e muito talentoso: um político elegante e digno, cuja imagem jamais se confunde com a vulgaridade dos reality shows das campanhas eleitorais e da vida política contemporânea. Além do mais, Mélenchon é socialista e republicano, sem nada de “esquerdista extremista” ou político de partido marginal. Foi membro ativo do Partido Socialista durante 30 anos, onde sempre argumentou, sem qualquer sucesso, que o Partido deveria aproximar-se e pôr-se a serviço dos trabalhadores comuns; e foi ministro do governo de Lionel Jospin.

Artifícios de oratória são inúteis, a menos que o orador tenha algo de importante a dizer. E Mélenchon tem: o neoliberalismo fracassou; persistir naquela via, nas mesmas políticas neoliberais já fracassadas, é suicídio. Os deputados franceses no Parlamento Europeu (ing. MEPs) também tinham programa crível. Em discursos cuidadosamente articulados, ou em entrevistas a jornalistas (sempre muito menos bem informados que ele, sobre praticamente qualquer tema), Mélenchou dedica-se sempre a fazer ver o quanto se distancia radicalmente dos políticos “midiáticos”. Explica que a crise econômica é sistêmica, que se deve a nossas escolhas políticas erradas e a prioridades mal definidas.

Nossas sociedades jamais foram tão produtivas e ricas quanto hoje, mas a maioria da população está cada dia mais pobre, apesar de trabalhar cada vez mais e mais. Não se trata de produzir riqueza (como os neoliberais e social-democratas à moda Blair nos fizeram crer que fosse); trata-se de redistribuir (“partilhar”) riqueza.

“Analistas” de televisão e “comentaristas” de jornal, na França, todos furiosos, descrevem o programa da Frente de Esquerda ou como “pesadelo econômico” ou como “deliciosa fantasia” – sem ver que a mesma terminologia serve melhor para descrever a quebradeira de bancos e as políticas de “austeridade” em toda a Europa.

Para número cada vez maior de apoiadores de Mélenchon, tudo que o candidato diz é saudável senso comum: impostos de 100% sobre ganhos acima de £300,000; aposentadoria integral para todos a partir dos 60 anos; redução da jornada de trabalho; aumento de 20% no salário mínimo; e o Banco Central Europeu com dever de emprestar aos governos europeus a juros de 1%, como empresta a outros bancos. Algumas poucas medidas realistas, para apoiar as populações empobrecidas. Revolução? Não. Simples reformismo radical; simples esforço para por fim às mais insuportáveis modalidades de dominação econômica, com super-aperto contra os mais pobres. Se os mais qualificados (e velhos e viciosos e ricos) quiserem partir, fugindo dos impostos, que partam. Serão substituídos por gente mais jovem e mais competente, que trabalhará por salários menos absurdamente altos.

“O humano em primeiro lugar!”, mais que título de manifesto, é um imperativo democrático: uma 6ª República, em lugar da atual monarquia republicana, com nacionalização das empresas de energia (porque as fontes de energia são bens públicos) e, menos comentado, mas importantíssimo, também o planejamento ecológico da economia – principal eixo do projeto político de Mélenchon.

Mélenchon deu novo sabor à democracia francesa. Em debate memorável pela televisão, derrotou enfaticamente a extrema direita, pela primeira vez na televisão francesa, em 30 anos. Atento aos detalhes políticos, Mélenchon demonstrou que o programa de Marine Le Pen é regressivo contra as mulheres. E, como se não bastasse, reduziu a cacos o mito de que a Frente Nacional seria partido atento aos interesses dos trabalhadores. Le Pen gaguejava, sem encontrar o que dizer, completamente perdida.

A campanha de Mélenchon mobiliza e politiza os jovens. Apela diretamente aos trabalhadores que, ao contrário do que dizem alguns, rejeitam Le Pen; e aos que desistiram de votar. Pela primeira vez em décadas, Mélenchon está ajudando a esquerda a reconectar-se com as classes populares. Para Mélenchon, as políticas de livre mercado não funcionam e infligem sacrifícios desnecessários aos mais pobres. Nenhum outro político europeu está hoje mais bem posicionado que ele, para demonstrá-lo. 



Nota dos tradutores
[1] Matéria do G1 de O Globo, sobre Mélenchon, pode ser lida em: “Terceiro em pesquisas eleitorais na França diz se inspirar em Lula. Os únicos “fatos” que O Globo registra sobre Mélenchon são: Mélenchon “conhece Lula desde o tempo em que ninguém recebia Lula em Paris”; e Mélenchon “não concorda com a política petista de buscar superávit nas contas públicas”. A revista (NÃO)Veja e o Estadão dizem besteiras ainda maiores, mas nem vale a pena perder tempo com a procura. Notícia, para o Estadão, sobre Mélenchon é: “O candidato trotskista à presidência francesa, Jean-Luc Mélenchon, ganhou apoio de uma jovem que gravou um vídeo cantando música pop em defesa do candidato” em: “Mélenchon ganha vídeo de apoio na França”.  Desnecessário anotar que o adjetivo “trotskista”, para a facinorosa UDN paulista que reina no Estadão, é o pior palavrão imaginável.

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