Dragões neoliberais, sonhos
molhados eurasianos e delírios à Robocop
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar |
Goldman Sachs – na pessoa do
economista Jim O’Neill – inventou o conceito de um novo bloco nascente no
planeta: os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul). Os mais cínicos
imediatamente traduziram a sigla BRIC como “Bloody Ridiculous Investment
Concept” [aprox. “Conceito de Investimento MUITO Ridículo”].
Nada tinha de ridículo. O mesmo
Goldman estima que, em 2050, os países BRICS serão responsáveis por quase 40% do
Produto Interno Bruto (PIB) global, e lá estarão reunidas quatro das cinco
maiores economias mundiais. [1]
De fato, a sigla terá de ser
expandida para incluir Turquia, Indonésia, Coreia do Sul e, sim, sim, também o
Irã nuclear. Talvez BRIIICTSS?
Apesar de todos os problemas de
nação que vive sob sítio econômico [2], o Irã também vai abrindo caminho
no grupo N-11, outro conceito prospectivo já circulante. (N-11,
“Next-11”) [“Próximos”-11] são as 11 economias
que se estima que se tornarão emergentes em futuro próximo).
A pergunta de multitrilhões de
dólares continua no ar: a emergência dos BRICS é sinal de que realmente entramos
num novo mundo multipolar?
Paul Kennedy, esperto historiador
de Yale (famoso pela “superextensão imperial das Grandes Potências” [3]) está convencido de que ou
estamos bem próximos de atravessar ou já atravessamos uma “catarata
histórica” [4] que nos levou até bem além do
mundo unipolar pós-Guerra Fria da “única superpotência”. Há, diz Kennedy, quatro
razões para isso: a lenta erosão do dólar norte-americano (antes, 85% das
reservas globais; hoje, menos de 60%); a “paralisia do projeto europeu”; a
ascensão da Ásia (o fim de 500 anos de hegemonia ocidental); e a decrepitude da
ONU.
O Grupo dos Oito (G-8) já é cada
dia mais irrelevante. O G-20, no qual se incluem os BRICS, podem ainda vir a
revelar-se importantíssimos. Mas há muito a fazer para cruzar a tal “catarata
histórica”, além de simplesmente deixar-se sugar inapelavelmente para dentro de
grupos: é preciso reformar o Conselho de Segurança da ONU e, sobretudo, é
preciso reformar o sistema de Bretton Woods, com especial atenção a duas de suas
instituições cruciais: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Por outro lado, é possível que o
jeito do mundo seja mesmo o vai-que-vai queira-ou-não-queira. Afinal, como
superpotências emergentes, os BRICS têm uma tonelada de problemas. Sim, só nos
últimos sete anos, o Brasil acrescentou 40 milhões de pessoas [5] ao mercado de consumo de classe
média; até 2016, terão sido investidos outros $900 bilhões – mais de 1/3 do PIB
– em energia e infraestrutura; e o Brasil não está tão exposto quantos outros
países BRICS ao imponderável comércio mundial, dado que as exportações não
passam de 11% do PIB, menos, até, que nos EUA.
Apesar de tudo isso, há
problemas-chave que não mudam: falta de melhor administração, para nem falar no
pântano da corrupção. Os jovens neoendinheirados brasileiros não dão qualquer
sinal de serem menos corruptos que as velhas e arrogantes elites compradoras que
governavam o país.
Na Índia, a opção parece estar
entre caos administrável e caos não administrável. A corrupção entre a elite
política do país faria Shiva corar de orgulho. Abuso do poder estatal, controle
nepotista sobre os contratos relacionados à infraestrutura, saque desabrido de
recursos minerais, escândalos em grandes negócios imobiliários envolvendo
patrimônio público – de tudo há muito, mesmo que a Índia não seja um Paquistão
hindu. Não, pelo menos, até agora.
Desde 1991, “reforma” na Índia só
significa uma coisa: comércio desenfreado e afastar o estado, da economia. Não
surpreende pois que nada se faça para reformar as instituições públicas que são,
elas mesmas, um escândalo. Administração pública eficiente? Nem pensar! Em
resumo, a Índia é um motor econômico caótico e, em certo sentido, ainda não é
sequer potência emergente; muito menos é superpotência.
A Rússia, também, ainda tenta
encontrar a poção mágica, inclusive uma política de estado capaz de explorar a
abundante riqueza dos recursos naturais, o território/espaço extraordinários e o
impressionante talento social que lá se acumulou. A Rússia tem de modernizar-se
rapidamente; exceto em Moscou e São
Petersburgo , no resto do país prevalece um relativo atraso
social. Os líderes russos ainda não se sentem confortáveis com a China na
vizinhança (conscientes de que em qualquer aliança sino-russa, a Rússia será
sempre o primo visivelmente mais pobre); e tampouco confiam em Washington. Estão
ansiosos com a despopulação dos territórios orientais e preocupados com a
alienação religiosa de suas populações muçulmanas.
E eis que entra em cena novamente
o Putinator-presidente [6], com sua fórmula mágica para a
modernização: uma parceria estratégica Alemanha-Rússia que beneficiará a elite
do poder/oligarquia dos negócios, mas não, necessariamente, a maioria dos
russos.
Dead in the Woods [Morto no bosque]
O sistema Bretton Woods, criado
depois da IIa. Guerra
Mundial, já está oficialmente morto, é totalmente ilegítimo, mas... O que os
BRICS planejam fazer em relação a ele?
Na reunião em New Delhi no final de março, trabalharam
para criar um banco de desenvolvimento dos BRICS [7] que possa investir em
infraestrutura e garantir-lhes crédito para enfrentar as crises financeiras que
surjam no percurso. Os BRICS sabem perfeitamente bem que Washington e a União
Europeia (UE) de modo algum aliviará o controle que exercem através do FMI e do
Banco Mundial. Apesar de tudo, o comércio entre esses países alcançará
impressionantes $500 bilhões em 2015, quase todo em suas próprias
moedas.
Mas a coesão entre os BRICS, ou,
no mínimo, a coesão que exista, centra-se principalmente na frustração, que
todos partilham, com a especulação financeira à moda dos Mestres do Universo,
que por um triz não jogou pelo penhasco a economia global, em 2008.
Sim, os BRICS também mostram
notável convergência de políticas e opiniões no que tenha a ver com o Irã, com
um Oriente Médio desabrochado em primavera árabe e com o norte da África.
No momento, o problema-chave que
os BRICS enfrentam é o seguinte: não têm qualquer alternativa ideológica ou
institucional ao neoliberalismo nem ao reinado da finança global.
Como Vijay Prashad observou, o
Norte Global fez tudo para impedir [8] qualquer discussão séria sobre
como reformar o cassino financeiro global. Não por acaso, o presidente do G-77,
grupo de nações em desenvolvimento (de fato, já é G-132), embaixador tailandês
Pisnau Chanvitan, alertou contra “comportamento que parece indicar um desejo de
ver nascer um novo neocolonialismo”. [9]
Mas as coisas acontecem, mesmo
assim, é à moda-diabo. A China, por exemplo, continua a promover informalmente o
yuan como moeda globalizante, se não global. Já comercia em yuan com a Rússia e
a Austrália, para nem falar de América Latina e Oriente Médio. Cada vez mais, os
BRICS apostam no Yuan como
alternativa monetária a um dólar norte-americano desvalorizado.
O Japão está usando ambas as
moedas, Iene e Yuan, no comércio bilateral com os
vizinhos asiáticos gigantes. O fato é que já está em formação uma zona asiática
não reconhecida de livre comércio, com China, Japão e Coreia do Sul já a
bordo.
O que virá, ainda que inclua
futuro brilhante para os BRICS, será sem dúvida muito confuso. [10] Praticamente, quase tudo é
possível: de outra Grande Recessão nos EUA à estagnação na Europa ou, até, o
colapso da Eurozona; incluindo BRICS mais lentos, tempestades no mercado
monetário, colapso das instituições financeiras e quebradeira global.
E por falar em confusão, não se
pode esquecer o que disse Dick Cheney, quando ainda era presidente da
Halliburton, no Instituto do Petróleo em Londres, em 1999: “O Oriente Médio, com
dois terços do petróleo do mundo e custo mais baixo, ainda é, em todos os casos,
onde está o prêmio”. [11] Não surpreende que, ao chegar ao
poder como vice-presidente em 2001, sua primeira providência tenha sido ordenar
a “libertação” do petróleo iraquiano. Claro. Todos sabem como o negócio acabou.
Hoje (governo diferente, mas
idêntica linha de trabalho), é embargo-de-petróleo-cum-guerra-econômica
contra o Irã. A liderança em Pequim vê o psicodrama “Washington contra o Irã”
como golpe, puro e simples, para mudança de regime, sem nenhuma relação com
armas atômicas. Aí também, mais uma vez, o vencedor do imbróglio do Irã é a
China. Com o sistema bancário iraniano em crise, e o embargo norte-americano
infernizando a vida econômica naquele país, Pequim pode, literalmente, ditar os
temos, na compra de petróleo iraniano.
Os chineses estão ampliando a
frota iraniana de navios-petroleiros, negócio de mais de $1 bilhão de dólares, e
outro gigante-BRIC, a Índia, já está comprando, até, mais petróleo do Irã, que a
China. Mas Washington não aplicará sanções aos países BRICS porque, nesses
tempos, economicamente falando, os EUA precisam mais dos BRICS, que os BRICS,
dos EUA.
O mundo visto por olhos chineses
O que nos traz de volta ao dragão
na sala: a China.
Qual é a obsessão radical dos
chineses? Estabilidade, estabilidade, estabilidade.
A autoapresentação usual do
sistema por lá, em termos de “socialismo com características chinesas” é,
evidentemente, mais mítica que as Górgonas. De fato, a coisa está mais para
neoliberalismo linha-dura com características chinesas, comandado por homens
determinados a salvar o capitalismo global. [12]
Atualmente, a China está presa no
meio de um movimento estrutural, tectônico, de transição, de um modelo de
exportação/investimentos, para um modelo puxado por serviços/consumidores. Em
termos do explosivo crescimento econômico, as últimas décadas foram quase
inimagináveis para muitos chineses (e o resto do mundo), mas, segundo o Financial Times, puseram o 1% mais rico
do país no controle de 40-60% de toda a riqueza doméstica. Como encontrar meio
para superar tamanho, tão aterrador, dano colateral? Como conseguir que um
sistema que tem embutidos tantos e tais problemas funcione para 1,3 bilhão de
pessoas?
É onde entra em cena a
“estabilidade-mania”. Em 2007, o primeiro-ministro Wen Jiabao alertava que a
economia chinesa poderia tornar-se “não estável, não equilibrada, não coordenada
e não sustentável”. Os famosos “Quatro Nãos”. [13]
Hoje, a liderança coletiva,
incluído o próximo primeiro-ministro Li Leqiang, está dando um tenso passo
adiante, expurgando a “instabilidade” do léxico do Partido. Para todas as
finalidades práticas, a próxima fase no desenvolvimento chinês já está em
andamento.
Será espetáculo digno de
observar-se nos anos próximos.
Como os “príncipes coroados”
nominalmente “comunistas” – os filhos e filhas dos principais líderes
revolucionários do partido, todos imensamente ricos, graças, em parte, a
arranjos amigáveis com corporações ocidentais, além de propinas, alianças com
gângsteres, todas aquelas “concessões” a quem der mais e às ligações com a
oligarquia capitalista crônica ocidental – levarão a China além das “Quatro
Modernizações”? [14] Sobretudo, com toda aquela
fabulosa riqueza a saquear.
O governo Obama, manifestando a
própria ansiedade, respondeu à visível emergência da China como potência a ser
reconhecida, com um “pivô estratégico” [15] – das desastradas guerras no
Oriente Médio Expandido, à Ásia. O Pentágono gosta de chamar isso de
“reequilibração” [16] (por mais que as coisas andem
super desequilibradas e até pior que isso, para os EUA, no Oriente Médio).
Antes do 11/9, o governo Bush
focara-se na China como seu futuro inimigo global número 1. Então, o 11/9
redirecionou as coisas para o que o Pentágono chamou de “o arco de
instabilidade”, o coração petrolífico do planeta, que vai do Oriente Médio à
Ásia Central. Dado que Washington estava distraída, Pequim calculou que gozaria
da vantagem de uma janela de praticamente duas décadas, quando a pressão estaria
aliviada. Nesses anos, poderia concentrar-se numa versão hiperveloz de
desenvolvimento interno, enquanto os EUA desperdiçariam montanhas de dinheiro
naquela tresloucada “Guerra Global ao Terror”.
12 anos depois, a tal janela está
sendo fechada com uma batida, quando, da Índia, Austrália, Filipinas à Coreia do
Sul e Japão, os EUA declaram-se de volta ao business da hegemonia na Ásia. Qualquer
dúvida de que essa seria a nova trilha dos EUA foi dissipada pela secretária de
Estado Hillary Clinton, em manifesto publicado em novembro de 2011 na revista Foreign Policy, sob o título nada sutil
de “America’s Pacific
Century”. [17] (E falava desse século, não do
século passado!).
O mantra dos EUA não muda:
“segurança dos EUA” e, por definição, aconteça o que acontecer no planeta. Seja
no Golfo Persa rico em petróleo, onde Washington “ajuda” os aliados Israel e
Arábia Saudita, porque se sentem ameaçados pelo Irã, seja na Ásia onde ajuda
semelhante é oferecida a corpo sempre crescente de países que dizem sentir-se
ameaçados pela China, tudo é feito, sempre, em nome da segurança dos EUA. Num
caso e noutro, em absolutamente todos os casos, essa ideia sobrepuja qualquer
outra.
Como resultado, se há uma Muralha
de Suspeitas de 33 anos a separar EUA e Irã, há hoje, crescendo, uma Grande
Muralha de Suspeitas entre EUA e China. Recentemente, Wang Jisi, Deão da Escola
de Estudos Internacionais da Universidade de Pequim e um dos principais
analistas chineses de estratégia, expôs a visão da liderança em Pequim sobre o
tal “Pacific Century”, em artigo
importante, em que figura como coautor. [18]
A China, dizem os dois autores,
espera agora ser tratada como potência de primeira classe. Afinal de contas,
“navegou em segurança (...) pela crise financeira global de
1997-98” ,
provocada, aos olhos de Pequim, por “deficiências profundas na economia e na
política dos EUA. A China ultrapassou o Japão como segunda economia mundial e
parece ser também a No.2 na política mundial. (...) Os líderes chineses não
creditam esses sucessos aos EUA ou à ordem mundial liderada pelos EUA”.
Os EUA, Wang acrescenta, “são
vistos na China em geral como potência declinante no longo prazo (...). É hoje
questão de quantos anos, já não de quantas décadas, até que a China ultrapasse
os EUA como a maior economia do mundo (...) e parte de uma nova estrutura
emergente” (leia-se: os BRICS).
Em resumo, como Wang e seu coautor
pintam o quadro, os chineses influentes veem o modelo de desenvolvimento de seu
país como “uma alternativa à democracia e como experiência da qual outros países
em desenvolvimento podem aprender, ao passo que tantos países em desenvolvimento
que introduziram valores e sistemas políticos ocidentais conhecem hoje a
desordem e o caos”.
Quer dizer: os chineses estão
vendo um mundo no qual os EUA no ocaso ainda anseiam pela hegemonia global e
ainda têm energia para bloquear potências emergentes – a China e os outros BRICS
– e impedir que alcancem seu destino de século 21.
O sonho eurasiano molhado do Dr.
Zbig
Ora, e como a elite política
norte-americana vê esse mesmo mundo? Pode-se dizer que ninguém está mais bem
qualificado para discutir esse tema que o ex-conselheiro de segurança nacional,
facilitador do oleoduto BTC e, por algum tempo, conselheiro fantasma de Obama,
Dr. Zbigniew (“Zbig”) Brzezinski. E ele não hesita em atacar a questão em seu
livro mais recente, “Strategic Vision:
America and the Crisis of Global Power”. [19]
Se os chineses mantêm o olhar
estratégico sobre as outras nações BRICS, o Dr. Zbig permanece fixado no Velho
Mundo, configurado para parecer novo. Agora, argumenta que, para que os EUA
preservem alguma forma de hegemonia global, devem apostar num “Oriente
expandido”. Significaria reforçar os europeus (sobretudo em termos de energia)
ao mesmo tempo em que abraça a Turquia, que ele imagina como molde para novas
democracias árabes; e engaja a Rússia, politicamente e economicamente, de modo
“estrategicamente prudente e sóbrio”.
A Turquia, por falar dela, nada
tem de modelar, porque, apesar da Primavera Árabe, não se vê, no futuro
perscrutável, nenhuma nova democracia árabe. Mesmo assim, Zbig crê que a Turquia
possa ajudar a Europa e, portanto, os EUA, por vias muito mais práticas, a
resolver determinados problemas de energia global, facilitando “acesso desimpedido, através do Mar Cáspio, até o gás e o petróleo da Ásia Central”.
Sob as atuais circunstâncias,
porém, isso, também, continua a ser pura fantasia. De fato, a Turquia só poderá
ser país de trânsito no grande jogo da energia no tabuleiro eurasiano que há
muito tempo chamo de Oleo-gasodutostão [orig. Pipelineistan [20]], se os europeus conseguirem agir
em conjunto. Terão de convencer a energeticamente rica e autocrática “república”
do Turcomenistão [21] a ignorar sua poderosa vizinha, a
Rússia, para vender à Europa o gás natural de que a Europa carece. E há também
outra questão de energia cuja solução parece bem pouco provável atualmente:
Washington e Bruxelas terão de superar as sanções e embargos [22] contraproducentes contra o Irã (e os
jogos de guerra que vêm no mesmo pacote) e começar a negociar com seriedade com
os iranianos.
Pois mesmo assim o Dr. Zbig propõe
a ideia de uma Europa em segunda-marcha, como chave para o futuro poder dos EUA
sobre o planeta. Visualizem o quadro como versão animada de um cenário no qual a
atual Eurozona está em semicolapso. Zbig preserva o papel de liderança da
burocracia inepta dos gatos gordos de Bruxelas que hoje governam a União
Europeia, e apoia uma outra “Europa” (principalmente os países do “Club Med” do
sul) fora do euro, com movimentação nominalmente livre de bens e pessoas entre
as duas. Ele aposta – e nisso reflete um traço chave do pensamento de Washington
– em que uma
Europa em segunda-marcha, um Big Mac eurasiano, ainda colado pelo
quadril aos EUA, mesmo assim possa ser ator globalmente decisivo para o resto do
século 21.
E então, é claro, o Dr. Zbig exibe
todas as suas cores de guerreiro da Guerra Fria, louvando uma “estabilidade”
norte-americana futura “no Extremo Oriente” inspirada no “papel que a
Grã-Bretanha desempenhou no século 19 como equilibradora e estabilizadora da
Europa”. Estamos falando, em outras palavras, sobre o diplomata armado número um
desse século. Ele concede, graciosamente, que “uma parceria global ampla
EUA-China” seja ainda possível, mas só no caso de Washington conservar
significativa presença geopolítica no que chama de “Extremo Oriente” – “a China
aprove ou não”.
A China não aprovará
Em certo sentido, tudo isso é
conversa já conhecida, como também grande parte da atual política de Washington.
Nesse caso, é, mesmo, versão remix de
seu magnum opus de 1997, The Grand Chessboard [23] [O grande tabuleiro de xadrez], no
qual mais uma vez certifica que “o vasto continente Transeurasiano é a arena
central dos negócios mundiais”. Só que agora a realidade ensinou-lhe que a
Eurásia não pode ser conquistada e que a melhor chance dos EUA e tentar trazer
Turquia e Rússia para seu lado.
O Robocop é quem
manda
De fato, Brzezinski soa benigno,
se se compara o que diz ele e o que Hillary Clinton tem dito em pronunciamentos
recentes, inclusive o que disse [24] à Conferência cujo nome já dá nó
na língua World Affairs Council 2012 NATO
Conference [Conferência do Conselho de Negócios Mundiais da OTAN 2012]. Ali,
como faz regularmente o governo Obama, ela destacou “o duradouro relacionamento
da OTAN com o Afeganistão” e elogiou as negociações entre EUA e Kabul, com
vistas a “uma parceria estratégica de longo prazo entre nossas duas nações.”
Tradução: apesar de não
conseguirem dar conta nem de uma guerrilha de pashtuns minoritários, e apesar de
tentarem há anos, nem o Pentágono nem a OTAN têm qualquer intenção de
reequilibrar qualquer de suas possessões no Oriente Médio Expandido. Já
negociando [25] com o governo do presidente Hamid
Karzai em Kabul por direitos de permanência até 2024, os EUA estão decididos a
manter três grandes bases estratégicas afegãs [26]: Bagram, Shindand (próxima da
fronteira com o Irã) e Kandahar (próxima da fronteira com o Paquistão). Só
espíritos terminalmente ingênuos considerariam o Pentágono capaz de abandonar
voluntariamente esses postos preciosos para monitorar a Ásia Central e os
concorrentes estratégicos Rússia e China.
A OTAN, Clinton acrescentou em tom
sinistro, “expandirá suas capacidades de defesa para o século
21” ,
incluindo o sistema de mísseis de defesa que a aliança aprovou na reunião de
Lisboa em 2010.
Será fascinante ver o que pode
significar a possível eleição do socialista François Hollande à presidência da
França. Interessado em uma parceria estratégica mais profunda com os BRICS,
Hollande comprometeu-se com o fim do dólar norte-americano como moeda mundial de
reserva. A questão é: a vitória de Hollande será como meter um macaco na loja de
porcelana dos trabalhos da OTAN, depois dos anos de governo do Grande Libertador
da Líbia, esse neonapoleônico criador de cenas Nicolas Sarkozy (para quem a
França nada é além de mostarda no “steak
tartar” de Washington).
Não importa o que pensem o Dr.
Zbig ou Hillary, muitos países europeus, fartos das aventuras de buraco negro
dos dois no Afeganistão e na Líbia, e com o modo como a OTAN agora só serve aos
interesses globais dos EUA, apoiam Hollande nesse ponto. Mesmo assim, será
batalha morro acima, dificílima. A derrubada de Muammar Gaddafi e a destruição
do regime líbio foi o ponto alto da agenda recente da OTAN no MENA (Middle East-Northern África [Oriente
Médio-Norte da África]). E a OTAN continua a ser o plano B de Washington para o
futuro, se a rede de sempre de think
tanks, fundos, fundações, dotações, ONGs e mesmo a ONU não conseguir
provocar o que bem se pode descrever como “mudança YouTube de regime”.
Em resumo: depois de ir à guerra
em três continentes (na Iugoslávia, no Afeganistão e na Líbia), convertendo o
Mediterrâneo em virtual lago da OTAN, e patrulhar sem descanso o Mar da Arábia,
a OTAN estará, segundo Hillary, “apostando na liderança e na força dos EUA,
exatamente como fizemos no século 20, também para o século 21 e adiante”. Assim
sendo, 21 anos depois do fim da União Soviética – razão de ser original da OTAN
– parece que o mundo acaba assim: não num bang, mas com a OTAN, operando em modo
de gemido, fazendo as vezes de Robocop global perpétuo.
Voltamos outra vez ao Dr. Zbig e à
ideia dos EUA como “promotor e garantidor de unidade” no ocidente, tanto quanto
como “equilibrador e conciliador” no Oriente (razão pela qual precisa de bases
militares, do Golfo Persa [27] ao Japão [28], incluindo as bases no
Afeganistão [29]). E ninguém esqueça que o
Pentágono jamais desistiu da ideia de alcançar Dominação de Pleno Espectro.
Ante toda essa potência militar,
porém, vale a pena ter em mente que esse é caracterizadamente um Novo Mundo
(também na América do Norte). Contra armas e barcos armados, contra mísseis e drones, há o poder econômico. As guerras
de moedas estão ativadas. Rússia e China, países BRICS, têm cordilheiras de
dinheiro. A América do Sul está rapidamente se organizando em bloco. O
Putinator-presidente já ofereceu um oleoduto à Coreia do Sul. O
Irã planeja vender seus petróleo e gás em troca de uma cesta de moedas, nenhuma
das quais será o dólar. A China está pagando para expandir [30] sua Marinha mercante e os mísseis
terra-mar. Um dia, Tóquio talvez afinal entenda que, enquanto permanecer ocupada
por Wall Street e pelo Pentágono,
viverá sob recessão perpétua. E até a Austrália pode, eventualmente, não se
deixar empurrar para uma guerra comercial contraproducente, contra a China.
Assim, esse nosso mundo do século
21 está tomando o formato, em vasta medida, de um confronto entre EUA/OTAN e os
BRICS, com casca e tudo, dos dois lados. Perigo: que em algum ponto da linha a
coisa vire Confronto de Pleno Espectro. Porque – e que ninguém se engane –,
diferentes de Saddam Hussein ou Muammar Gaddafi, os BRICS sim, podem reagir ao
fogo.
Notas dos
tradutores
[2] Pepe
Escobar: “O mito do Irã ‘isolado”, 18/1/2012.
[3] A expressão “imperial
overstretch of the Great Powers” [aprox. “superextensão imperial das Grandes Potências”] apareceu
em 1987, no livro The Rise ang Fall of the Great Powers [KENNEDY, Paul. Ascensão
e Queda das Grandes Potências: Transformação Econômica e Conflito Militar de
1500 a
2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 675 p.], para descrever o contexto em que as
principais nações do mundo dão-se conta de que suas capacidades políticas,
econômicas e militares são inadequadas para proteger e atender seus respectivos
interesses e obrigações globais.
[6] “Call back
yesterday”
[9] “The G-77 awakes”
[14] Parte do programa de Deng
Xiaoping para a República Popular: a modernização da agricultura, da indústria,
da ciência e tecnologia e das forças militares (The Four
Modernizations).
[16] “Yearender:
Obama administration's Asia pivot strategy sows more seeds of suspicion than
cooperation”
[17] “America’s Pacific
Century”
[19] BRZEZINSKI, Zbigniew, (jan.) 2012, Strategic Vision: America and the Crisis of
Global Power, New York: Basic Books. Lê-se um excerto
da Introdução.
[23] BRZEZINSKI, Zbigniew, The
Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives, Basic
Books, 1997.
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