quinta-feira, 22 de maio de 2014

Todos os banqueiros do presidente

21/5/2014, Lars Schall entrevista Nomi Prins, GoldSwitzerland
Transcrição  traduzida pelo pessoal da Vila Vudu

E então? Precisamos do Federal Reserve? O público não precisa do Fed. As atividades que o Fed fornece e que têm algo a ver com o público, como gerir taxas de juros e tal, podem ser fornecidas pelo Departamento do Tesouro, embora o Departamento do Tesouro também esteja subsidiando e apoie sempre, politicamente, pessoalmente, socialmente e financeiramente as grandes instituições bancárias. Sim, é útil ter uma entidade para manter os juros, mas isso não é precisamente o que o Fed faz, como seu principal “serviço”. O principal serviço do Fed é subsidiar um sistema bancário falido; com o Fed fantasiado de sistema regulatório dos bancos e protegendo a disponibilidade de crédito do país – sobre o qual, de fato, o Fed não tem poder algum. Essa é uma das mentiras sob cuja proteção o Fed foi criado, há cem anos.

Finance is a Power Game - The Matterhorn Interview


Lars Schall: Nesse programa, sob o patrocínio do Matterhorn Asset Management, converso com a ex-banqueira de Wall Street, Nomi Prins, sobre seu mais recente livro All the Presidents’ Bankers . [Todos os banqueiros do presidente]

Prins chama a atenção para o modo como um pequeno grupo [nesse sentido, uma “elite”] transformou a economia e o governo dos EUA ao longo do século 20, ditou as políticas externa e interna e modelou a história mundial. A discussão começa com o pânico de 1907 e a criação do Federal Reserve, acompanha as duas guerras mundiais, a separação entre o dólar e o ouro em 1971, e chega à questão de se o poder financeiro norte-americano está hoje em declínio.

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LARS SCHALL: Boa-tarde, Nomi. Vamos conversar sobre seu novo livro. Qual sua motivação para escrevê-lo e qual a principal ideia por trás dele?

NOMI PRINS: Minha motivação surgiu, de fato, de um romance que escrevi antes desse livro, Black Tuesday  [1], trabalho de ficção histórica sobre o crash de 1929. Na pesquisa necessária para aquele livro, que foi muito menor que a que tive de fazer agora, para All the Presidents’ Bankers, descobri sobre essa reunião que aconteceu no Morgan Bank, n. 23 de Wall Street, a apenas alguns poucos passos da Bolsa de Valores de New York, dia 24/10/1929. Foi quando o mercado de ações começou a descida, depois do que foi outra vez inflado e soprado para cima, e outra vez caiu, e foi outra vez inflado para subir, e mais algumas vezes, até que, afinal, perdeu 90% do que valia, ou perto disso, em apenas uns poucos anos.

Mas naquele dia, havia seis banqueiros, os grandes seis banqueiros daquele momento, que se reuniram na casa Morgan, a pedido de um homem chamado Tom que era o laranja-agente que aparecia como diretor do Morgan. Jack Morgan, o verdadeiro presidente, estava em viagem à Europa. Lamont convocou os cinco principais banqueiros da cidade e, depois de 20 minutos de reunião, cada um dos presentes pôs na mesa 25 milhões de dólares para salvar os mercados de ações. Todos sabiam que aquela reunião era secreta; como sabiam que o mercado estava escapando ao controle deles. Um dos presentes foi Al Wiggin, presidente do Chase; estava queimando ações do Chase, ao mesmo tempo em que conversava sobre recomprá-las para salvar os mercados. Charles Mitchell era outro, naquela sala, diretor do National City Bank, hoje parte do Citigroup. Tinha esse negócio que queria fazer – a maior fusão do tempo, que só se consumaria se ele conseguisse manter alto o valor das ações que seriam usadas para pagar pela fusão. Esse, portanto, tinha outras razões para salvar os mercados, além de ajudar o cidadão comum a salvar-se da quebradeira.

Achei fascinante a reunião, o drama da cena e o modo como esses ‘seis grandes’ decidiram o que fazer; e o modo como foram apoiados pelo presidente Herbert Hoover. Depois da decisão, foram louvados pela imprensa-empresa, no New York Times e tal, porque teriam salvado novamente os mercados; foram muito cumprimentados, muitos agradecimentos. Tudo isso chamou minha atenção. Daí, depois, em All the Presidents’ Bankers, acompanhei a movimentação desses seis ‘grandes: hoje novamente são seis grandes bancos, como foram antes do crash de 1929. Seis bancos nos EUA controlavam praticamente todos os mercados financeiros, e não só de uma perspectiva de riqueza e poder: há também uma linha de política financeira que se pode traçar em torno de banqueiros e presidentes, naqueles anos, como hoje.

Comecei por examinar a coisa a partir da perspectiva dos presidentes – com que banqueiros mantinham relações, em quais confiavam para ‘consertar’ o país, com os quais de deixam ver socialmente, com quais banqueiros velejam, com quais aparecem em reuniões sociais, com quais estudaram e frequentaram “eventos” das universidades da Ivy League, e coisas desse tipo. Assim aconteceu que fui modelando a ideia e a pesquisa para esse outro livro. Tive de mexer nos arquivos presidenciais por todo o país, desde Teddy Roosevelt, que era presidente durante o pânico de 1907, onde começo o livro, até Barack Obama – que ainda não tem arquivo, porque ainda está na Casa Branca –, e em quantos documentos consegui pôr as mãos, entre um e outro.

LARS SCHALL: Você falou de 1907, e o banqueiro dominante naquele momento era John Pierpont Morgan. Era, basicamente, o representante da City de Londres e da banqueirada britânica em Wall Street?

NOMI PRINS: Era um dos que tinha laços mais próximos, tanto do ponto de vista pessoal, mas, também porque o Morgan Bank tinha laços com a City de Londres e com Paris. Naquele momento, era proprietário de empresas de vários capitais associados nessas cidades. Quando ao contexto para o pânico de 1907, foi pânico bancário gigante nos EUA, as pessoas, principalmente em New York, corriam aos bancos para sacar seus depósitos, porque havia problema de confiança, e grave crise bancária que estava fermentando. Teddy Roosevelt temia que se convertesse em vasta crise econômica para todo o país. Convocou J. P. Morgan para consertar a coisa: isso aconteceu em 1907, 22 anos antes do crash em 1929, onde o banco dele novamente estava no centro. Morgan com certeza representava interesses internacionais em relação aos financistas norte-americanos: era o mais poderoso, o mais internacional dos banqueiros norte-americanos, mas era também o mais profundamente preocupado com o crescimento do status dos EUA. Passado aquele ponto, haveria muito o que o banco Morgan crescer, depois da Iª Guerra Mundial e da IIª Guerra Mundial.

Mesmo antes do pânico de 1907, ainda nos anos 1890s, já era a família Morgan – e esse é um dos outros grandes temas de que trato em meu livro: que não apenas indivíduos controlavam as alianças político-financeiras e as políticas domésticas e globais dos EUA; mas há um pequeno punhado de famílias que detiveram o poder ao longo de décadas, por mais de um século, e cujos legados, patrimônios e herdeiros ainda mantêm influência e poder. A família Morgan foi com certeza uma das principais famílias que se enquadra exatamente nesse contexto. Nos anos 1890s, um dos Morgans, J.S. Morgan ajudara a salvar financeiramente a City de Londres, quando nem o Banco da Inglaterra conseguiria fazê-lo. Assim, essa ideia de banqueiro privado que salva outros banqueiros privados, seja internacionalmente, seja domesticamente, nasceu um pouco antes de eu começar a escrever, mas não há dúvidas de que prosseguiu adiante, já no século 20.

LARS SCHALL: Se lhe perguntasse a quem o pânico de 1907 beneficiou [orig. cui bono], o que você diria?

NOMI PRINS: Quem mais se beneficiou do pânico de 1907 foi J. P. Morgan, é claro, que dirigia o Morgan Bank naquele momento e era confidente e conselheiro econômico chave do presidente Teddy Roosevelt, que lhe deu poder e capacidade para decidir apoiado pela Casa Branca e pelo Departamento do Tesouro sobre quais os bancos que sobreviveriam e quando morreriam durante o pânico bancário de 1907; e Morgan fez exatamente isso. Ele escolheu apoiar os bancos que de algum modo estavam associados a ele, fossem dirigidos por amigos, associados, relações pessoais suas, ou nos quais o próprio Morgan tivesse interesses financeiros. Depois do pânico de 1907, já eram realmente as família Morgan, Stillman, que controlavam o National City Bank; os Bakers, que controlavam o First National City Bank (e esses dois bancos acabaram por se tornar o que hoje se conhece como Citigroup, um dos seis grandes bancos, e, claro, Morgan existe até hoje sob a forma de J.P. Morgan Chase, mais um dos ‘seis grandes’ bancos.) O grande beneficiário foi, mesmo, Morgan; a coisa ajudou-o a ganhar confiança para movimentar o timão do barco do establishment, do que viria a ser o Federal Reserve, que se tornou O BANCO dos grandes bancos.

LARS SCHALL: Como o pânico de 1907 foi usado pelos interesses de Morgan e Rockefeller, para criar o Federal Reserve?

NOMI PRINS: Pergunta muito interessante. O que aconteceu foi que – mesmo antes do pânico – esses financistas, a nova liga do poder nos EUA, queria encontrar um meio para promover o que chamo de “a era do capitalismo financeiro”; eu é que chamo assim, não eles! A ideia é que você hoje pode fabricar dinheiro de dinheiro, diferente de o dinheiro ser necessariamente conectado a interesses industriais, aço ou petróleo – embora os Rockefellers tenham feito quantidade considerável de dinheiro e continuem a fazer, com empresas como a Standard Oil Company e outras assemelhadas. Mas eles, especialmente William Rockefeller, estavam procurando um jeito de fazer dinheiro e de tornar-se parte de um dos “fundos de dinheiro” [orig. “money trusts”] do início dos anos 1900s.

Depois do pânico de 1907, J. P. Morgan e, em menor extensão, também Rockefeller – os Rockefellers não estiveram envolvidos na reunião real que aconteceu em Jekyll Island, embora William Rockefeller fosse sócio do Clube Jekyll Island naquele momento. Ali, em reunião realizada em 1910, seis homens reuniram-se para conceber e aprovar a “invenção” do Federal Reserve. Entre eles, havia um senador do governo dos EUA, Nelson Aldrich, senador por Rhode Island, e muito conectado com a comunidade dos banqueiros. Conhecia Morgan; conhecia os Rockefellers, e assim por diante. E ele e um de seus secretários assistentes do Tesouro reuniram-se com quatro banqueiros, Frank Vanderlip, Henry Davison, Paul Warburg e Benjamin Strong, todos eles ligados a Morgan. Só conseguiram reunir-se na Ilha Jekill, como demonstro no livro, porque J. P. Morgan, que era sócio do clube local, convidou-os. Naquele momento, era clube muito exclusivo: só membros entravam. Nenhum dos que se reuniram aquele dia era sócio, e J. P. Morgan, que, sim, era sócio, não esteve presente.

Na verdade, e é aí que os agentes dos Rockefeller entram em cena na periferia de tudo isso, Nelson Aldrich sequer tinha planos, ou interesse em ir até a Ilha Jekyll; ele queria que aqueles encontros acontecessem em sua mansão em Rhode Island, para que acontecessem longe dos olhos de todos, mas, também, em terra de propriedade dele, ao norte de New York e não, com certeza, ao norte da Geórgia, onde fica a Ilha Jekyll. Mas foi ferido num acidente de carro em Manhattan, em New York City, onde estava em visita para conversar com Morgan e outros sobre o tal “banco dos bancos”. Estava convalescente; não sabia se conseguiria viajar; e foi quando J. P. Morgan sugeriu que a reunião acontecesse na Ilha Jekill e convidou-o. Foram necessários vários arranjos na Ilha Jekyll para receber aquela gente, porque era novembro e a temporada não começara. A Ilha Jekyll ganhava vida de dezembro a janeiro, quanto todas as famílias ricas chegavam para as casas de veraneio para os feriados de fim de ano; era quando os homens ricos conversavam, e as mulheres e crianças ricas, de certo modo, “tomavam ar” e corriam fora de casa.

Mas a tal reunião aconteceu porque J. P. Morgan e o senador Nelson Aldrich, cujo filho Winthrop Aldrich seria presidente do Banco Chase durante vinte anos, e cujo sobrinho-neto, David Rockefeller, também seria presidente do Chase por vinte; e cujo outro sobrinho-neto, Nelson Rockefeller, seria por quatro vezes prefeito de New York City. Essa linhagem familiar que começou aí, a partir do Federal Reserve é, evidentemente, mais nova.

O que mais interessava aos banqueiros era assegurar que, em situação de pânico, haveria um Federal Reserve que daria cobertura aos bancos, não que a crise não se alastrasse; e que os próprios banqueiros não tivessem de pôr o próprio dinheiro para dar jeito na coisa, fosse para se salvarem eles mesmos, ou para salvar o sistema deles. Esse era o ímpeto para criar o Fed – ter uma entidade consolidada que também criasse moeda e que pudesse apoiar os bancos e banqueiros em tempos de pânico.

Do ponto de vista do governo dos EUA, do presidente William Taft, que sucedeu Teddy Roosevelt e Woodrow Wilson, que foi presidente depois dele – ambos acreditavam que um Federal Reserve seria absolutamente necessário, basicamente –e essa questão, que a história oficial discute pouco, mas que discuto a fundo em meu livro – para promover o poder dos EUA no novo século.

Essa ideia de ter um banco central competitivo, alinhado com os bancos privados, foi algo extremamente importante para esses presidentes, dos dois grandes partidos dos EUA: ambos os lados tinham conexões pessoais muito fortes com os Morgan, os Aldrich e os Rockefellers, além de algumas outras famílias que naquele momento operavam os ‘fundos de dinheiro’.

LARS SCHALL: Pode-se dizer que o Fed foi criado por uma conspiração?

NOMI PRINS: Não é conspiração. Apenas que toda Wall Street estava criando o Fed: é um fato histórico. Foram pessoas reais e bem conhecidas, gente que mantinha escritórios legais em Wall Street, que realmente se reuniram e trabalharam com Nelson Aldrich, que, então, presidia a Comissão de Finanças do Senado dos EUA, onde permaneceu por dois anos, reunindo informação e viajando à Europa, onde esteve várias vezes para avaliar o quanto, do modo como operavam os bancos na Inglaterra e na França, poderia ser aproveitado para desenhar a estrutura do Federal Reserve. James Stillman, um dos líderes dos ‘fundos de dinheiro’ e amigo de Morgan e dos Rockefellers, que dirigia o National City Bank, um dos maiores bancos do país naquele momento (hoje, é parte do Citigroup) viajou durante meses com Nelson Aldrich pela Europa, ao longo de dois anos, antes da reunião da Ilha Jekyll. Não. Ninguém pode dizer que tenha havido algum tipo de conspiração: tudo, na criação do Fed está muito bem documentado.

O fato de que houvesse quatro banqueiros e dois “representantes” de Washington na Ilha Jekyll, quando o Fed foi “inventado”, tampouco sugere conspiração: é fato e movimento histórico conhecidos. Também é fato que – porque, como mencionei, Nelson Aldrich foi atingido pelo próprio carro e não estava em sua melhor forma depois da reunião na Ilha Jekyll; por isso, Aldrich, que deveria ter apresentado em Washington o relatório final da reunião, foi substituído por dois banqueiros: Frank Vanderlip (o nº 2 do National City Bank, que trabalhava para James Stillman) e Henry Davison (sócio-sênior no Banco Morgan). Não. De modo algum se pode falar de conspiração. Não aconteceu como conspiração.

LARS SCHALL: Sim, mas... lá entre eles, essa gente que se reuniu na Ilha Jekill conspirou uns com os outros, e só eles, para criar o Fed. Ou não?

NOMI PRINS: De fato, nada havia sobre o que conspirar; na prática, foi muito mais fácil que uma conspiração. Aqueles homens apenas trabalharam coordenadamente para criar o Federal Reserve, porque queriam que houvesse um banco “como o Fed”: Washington queria; os chefes de Wall Street queriam. Todos estavam aliados querendo a mesma coisa: ninguém precisou se preocupar com conspirações. Eles, simplesmente, trabalharam juntos na mesma direção.

LARS SCHALL: Mas os eleitores e o público em geral não participaram da discussão, nem souberam de coisa alguma. E eles lá tomaram todos os cuidados para que a coisa não ‘vazasse’, e o público em geral não soubesse de coisa alguma.

NOMI PRINS: Ah, sim, nesse sentido, sim, sem dúvida. Mas acho que a expressão “conspiração” já está muito gasta. E mantém o significado sempre obscuro de coisas que teriam sido feitas assim ou assadas, que se diz que sim, mas não, ou diz-se que não, mas sim. De fato, por mais que os eventos da Ilha Jekill tenham sido mantidos longe dos olhos da opinião pública, a questão foi apenas proteger interesses de bancos e banqueiros; nada há, nisso, de ilegal... Não há lei que obrigue seis banqueiros a discutir exclusivamente no Congresso mecanismos de autoproteção... Dado que aqueles banqueiros tinham os meios necessários para reunir-se como se reuniram (e reuniram-se com um senador, em reunião perfeitamente legal). A opinião pública não estava politicamente envolvida de modo algum no modo como o Fed seria concebido, ok, mas a opinião pública não é necessariamente ouvida em todas as decisões de Washington ou de Wall Street; de fato, nunca é realmente ouvida no que tenha a ver com essas relações de poder.

O que escrevi no livro é que houve muita conversa, durante o governo Taft, de 1910 até 1913, quando o Federal Reserve foi criado e a lei assinada em dezembro de 1913. Ao longo dos últimos anos do governo Woodrow Wilson, muito se falou sobre a invenção do Fed em Washington, como acontece até hoje, quando começam a aparecer notícias de que senadores e banqueiros e presidentes reuniram-se, que houve conversas na calada da noite, para decidir como implantar estruturas e o que assinar, quando e como. E, sobretudo, como as notícias serão levadas ao público. Assim sendo, se você pensar nisso tudo como “conspiração”, a única conclusão razoável é que governos são, necessariamente, conspiratórios. Mas a realidade é que esse tipo de homem e mulher trabalha desse modo porque podem. A ideia era como “chegar lá”, como fazer para que a “coisa” fosse bem-sucedida, qual o melhor formato. E depois que o presidente Woodrow Wilson já assinara a Lei do Federal Reserve, o próprio presidente encarregou-se de vender a “coisa” à opinião pública como se o tal Banco de Reserva fosse garantir crédito aos cidadãos comuns, a pequenos agricultores, a pequenos bancos de pequenas cidades, o que ajudaria todos os norte-americanos, garantindo crédito a todo o sistema, quando houvesse situações financeiras negativas.

Mas a única verdade é que, desde o início, o Fed foi pensado para proteger as maiores – não por acaso são também as mais poderosas, politicamente, socialmente e pessoalmente – instituições interconectadas nos EUA. E continua a operar precisamente do mesmo modo, até hoje.

Por isso o Fed preservou todas as fusões e aquisições que aconteceram ao longo do século, desde a criação; por isso garantiu liquidez sempre, como benefício a favor dos maiores bancos; e por isso, hoje, aqueles seis bancos são maiores – não são exatamente os mesmos seis bancos de então, mas não “desenvolvimentos” e “derivados” deles, ainda maiores que eles – e são maiores do que jamais foram antes, e têm mais subsídios dados a eles pelo Federal Reserve do que jamais tiveram antes, em tempo algum; e o Federal Reserve tem cofre maior do que jamais teve antes. É a culminação, hoje, de mais de um século de “operação”. Parte daquele “cofre” foi aberto e começa-se a conseguir ver os resultados.

LARS SCHALL: Os EUA precisam do Fed?

NOMI PRINS: Os bancos dos EUA precisam do Fed porque, sem seus subsídios, já teriam falido várias vezes ao longo dos anos, e com certeza ao longo de anos recentes. Mas, mais uma vez, é realmente importante saber que esse é um dos motes principais do livro: desde o início do Fed, os bancos e banqueiros, e o governo dos EUA, precisaram do Fed. Vale dizer: o Fed é tanto um banco para os bancos, como é instrumento político de poder financeiro para o governo. O governo acredita que precisa do Fed para subsidiar e salvar grandes instituições bancárias que estão integradas de muitas e muito variadas maneiras também com o próprio governo. Esses bancos têm contato direto com o eleitor, com o público, com o cidadão comum, é onde guardamos nossa poupança, lhes damos nossos depósitos, os contribuintes pagamos pelos fracassos e “resgates” desses bancos quando fracassam, porque não podem fracassar “oficialmente”. Mas, ao mesmo tempo, as filosofias dos membros da elite política e financeira dos EUA alinham-se, todas, a serviço do Fed.

E então? Precisamos do Federal Reserve? O público não precisa do Fed. As atividades que o Fed fornece e que têm algo a ver com o público, como gerir taxas de juros e tal, podem ser fornecidas pelo Departamento do Tesouro, embora o Departamento do Tesouro também esteja subsidiando e apoie sempre, politicamente, pessoalmente, socialmente e financeiramente as grandes instituições bancárias. Sim, é útil ter uma entidade para manter os juros, mas isso não é precisamente o que o Fed faz, como seu principal “serviço”. O principal serviço do Fed é subsidiar um sistema bancário falido; com o Fed fantasiado de sistema regulatório dos bancos e protegendo a disponibilidade de crédito do país – sobre o qual, de fato, o Fed não tem poder algum. Essa é uma das mentiras sob cuja proteção o Fed foi criado, há cem anos.

LARS SCHALL: Mas e o Fed não se converteu em banco internacional de resgate de bancos?

NOMI PRINS: É, pode-se dizer que sim, por causa da globalização da finança, de vários modos, ao longo do século passado. Os bancos norte-americanos não são os únicos bancos que correm riscos, nas crises financeiras. Essas crises são cada dia mais globais e assim continuará a ser, no futuro. Assim, quando o Fed decide proteger os grandes bancos norte-americanos, tem de proteger também seus contrapartes que, dada a natureza globalizada de toda a finança, inclui bancos europeus, bancos asiáticos, inclui basicamente todas as contrapartes de todos os seis grandes bancos. E não é só. Há também as próprias políticas do Fed, além dos subsídios. Há a própria ideia do subsídio e a filosofia que lhe dá apoio: tudo isso também foi globalizado.

O Fed já empurrou suas políticas, como vimos nos últimos anos, também para a Europa. Assim, hoje, você tem a política de taxa de juro zero por toda a Europa, além dos subsídios e resgates, e fortalecimento artificial de todas as instituições maiores, à custa de todas as instituições menores, e o fortalecimento de grande países, à custa de países menores. Essa é política institucionalizada que o Fed está promovendo; portanto, é também a política do Departamento do Tesouro e do governo dos EUA. É promoção colaborativa que, também ela, já se tornou global.

LARS SCHALL: Dado que já lá vão 100 anos desde o início da Iª Guerra Mundial, o que se pode dizer sobre o big banking em Wall Street e o massacre que a Europa padeceu?

NOMI PRINS: Mais uma vez, o Banco Morgan e a família Morgan são protagonistas. Quando Woodrow Wilson considerava a possibilidade de não envolver os EUA na guerra, ele organizou uma reunião na Casa Branca, e foi reunião muito interessante, porque Wilson fizera campanha com plataforma que pregava um distanciamento dos interesses do big banking, que, naquela época, chamava-se Money Trust. Mas Wilson era muito amigo dos Morgan; a família o apoiara antes de ser presidente e também depois de eleito.

Aquela reunião, que aconteceu em julho de 1914 na Casa Branca foi muito criticada na imprensa-empresa, porque parecia estranho que Morgan aparecesse em visita à Casa Branca, depois de Wilson ter feito campanha pública contra os interesses dos bancos. A questão é que, como adiante se soube, Morgan estava em conversações com Wilson sobre financiar uma guerra. De fato, quando a guerra começou, e os EUA imediatamente apareceram financiando franceses e britânicos, foi por causa do empurrão que o país recebeu do Banco Morgan. E durante toda a guerra o mesmo Banco Morgan financiou ou dirigiu o financiamento de 75% de todo o dinheiro e de todos os investimentos privados que foram para o esforço norte-americano de guerra e para os aliados dos EUA. Houve colaboração muito forte naquele momento entre o Banco Morgan, organizando os outros bancos, e Woodrow Wilson entrando na guerra. Tudo estava diretamente relacionado, porque sem dinheiro os países não tendem a meter-se em guerras.

LARS SCHALL: O Tratado de Versailles foi benéfico para o big banking de Wall Street?

NOMI PRINS: No Tratado de Versailles, lá estava um sócio de Morgan, muito ativo também com Woodrow Wilson quando o tratado estava sendo negociado e assinado; o homem foi Tom Lamont, que continuou depois, ao longo de décadas, associado do Banco Morgan. Em 1919, foi instrumental na negociação das indenizações que seriam parte do Tratado de Versailles. Uma das razões para isso foi que era importante para os bancos, para os grandes bancos em particular, ter alguma espécie de estabilidade na Europa, de modo que pudessem ter presença nos investimentos para reconstruir a infraestrutura na Europa. E financiariam a infraestrutura e a reconstrução de todas as partes envolvidas na Grande Guerra.

Beneficiaram-se portanto, porque conseguiram ampliar o alcance e os próprios negócios para a Europa, de um modo que jamais, antes da guerra, haviam conseguido fazer; o tratado, portanto, ele próprio, no final da guerra, ajudou muito. Mas é claro que o tratado não fez “todo o serviço”, só ele, porque tivemos logo depois uma segunda guerra, depois do grande crash de 1929 e a grande depressão, ao longo dos quais os banqueiros continuaram a pressionar o governo dos EUA para que ajudassem a financiar alguns dos países que já estavam financiando, para manter aquele mesmo financiamento privado. Houve vários acordos depois do Tratado de Versailles nos quais os banqueiros estavam envolvidos também, porque o Tratado de Versailles não estava, de fato, funcionando muito bem; são tratados pelos quais os banqueiros conseguiram empurrar o governo dos EUA a financiar algumas reestruturações na Europa, pelas quais os grandes bancos conseguiram “atropelar” vários negócios [orig. they could piggy-bank upon] e novamente aumentar na direção da Europa o alcance do financiamento pelos grandes bancos.

LARS SCHALL: O Federal Reserve foi fator crucial na “montagem” do Grande Crash de 1929?

NOMI PRINS: Não foi fator tão crucial como o Fed, hoje, a empurrar dinheiro barato para dentro de Wall Street. Mas foi um dos fatores. De fato, um dos presidentes de um dos “Seis Grandes”, Charles Mitchell, foi também diretor classe A de Federal Reserve de New York, e diretor do National City Bank. Quando os mercados começaram a ratear no início de 1929, ele forçou todo o Fed a baixar as taxas de juros, para permitir que liquidez e dinheiro barato fluíssem na direção do sistema, porque já sabia, de examinar os próprios livros de seu banco e os negócios em curso, que as coisas estavam ficando muito gravemente problemáticas.

Assim, em certo sentido, os movimentos do Fed podem ter exacerbado a intensidade da quebradeira, mas a grande causa, na realidade, foram as manobras dos grandes bancos. Estavam envolvendo-se em todos os tipos de especulações depois da Iª Guerra Mundial, porque os três presidentes dos EUA depois da Iª Guerra Mundial – Warren Harding, Calvin Coolidge e Herbert Hoover – tinham política de não tomar conhecimento e fazer que não viam os tipos de especulação em que os banqueiros engajavam-se; e, sim, eles se engajaram em muita especulação. O secretário do Tesouro naquele momento, Andrew Mellon, era, ele próprio, escroque conhecido: milionário e industrialista, dirigia também um banco. Acabou expulso do governo Hoover, caído em desgraça, acusado de vários crimes de evasão de divisas e de usar a favor dos próprios negócios as políticas de juro que ele mesmo concebia, naquela já perfeita bolha de especulação. Quer dizer: sim, todos estavam envolvidos.

LARS SCHALL: As políticas do Fed trouxeram alguma vantagem aos EUA durante a Grande Depressão?

NOMI PRINS: Mais uma vez, a resposta é não. A principal política que ajudou durante a grande depressão foi a Lei Glass-Steagall e a confiança que instilou na população dos EUA, a favor do sistema bancário, porque aquela lei separou as atividades de pura especulação e o dinheiro dos depositantes; e também reduziu o risco de os cidadãos, os contribuintes, os que pagam impostos, ser forçados a responder pelos desmandos e erros da indústria bancária.

Hoje, o Fed fala de o Fed já estar envolvido na ajuda “antidepressão” (embora Ben Bernanke entenda que deveria ter ajudado mais depressa), mas a verdade é que as coisas nunca foram como são hoje; o Fed não estava maduro. Naquele momento, foi preciso criar várias leis; outras mudanças foram feitas diretamente pela cúpula, outras foram feitas de baixo para cima, e um banqueiro, em especial, o presidente do Chase no governo de FDR, Winthrop Aldrich (era amigo de FDR e trabalhou com ele para promover e conseguir aprovar a lei Glass-Steagall, porque entendia que seria importante para a nação e para a indispensável confiança da população, nos bancos, que todo o sistema bancário fosse mais seguro e mais estável).

LARS SCHALL: Por que, então, se viu uma mudança na estrutura de poder, de Morgan para Rockefeller, que aconteceu durante e depois da IIª Guerra Mundial

NOMI PRINS: Como já disse antes, o Banco Morgan foi financiador destacado, comandando 75% do financiamento privado na Iª Guerra Mundial e muito próximo de Woodrow Wilson e do Secretário do Tesouro à época. Esteve muito envolvido nas decisões que Washington tomou sobre financiar o esforço dos bônus de guerra em todos os EUA para levantar fundos adicionais e tal. Mas à altura da IIª Guerra Mundial – o Chase (que já era mais banco de Rockefeller), por causa de Winthrop Aldrich, presidente do Chase e amigo de FDR, pressionou na direção de deixar de lado o Banco Morgan como financiador da guerra.

Daí que o esforço dos “Bônus para a Liberdade” [orig. Liberty Bond] ou o esforço dos Bônus de Guerra para a IIª Guerra Mundial nos EUA foi, de fato, comandado por Aldrich, e pelo National City Bank, o outro grande banco, presidido por James Perkins e, depois de sua morte, por uma dupla de outros executivos, inclusive um homem de nome Randolph Burgess, que fora diretor do Fed de New York antes de passar a ser vice-presidente sênior do National City Bank e amigo íntimo do Secretário de Tesouro de FDR, Morgenthau.

Esses fortes relacionamentos com o governo de FDR, de Truman e de Eisenhower fizeram a balança pender para o lado dos bancos Chase e National City. Esses bancos, além do mais, tinham modelo diferente do Morgan Bank: esses bancos usam dinheiro de pessoas individuais no empuxo para a guerra e pediam às pessoas que abrissem contas em suas lojas e, simultaneamente, que comprassem bônus de guerra. Assim, ao longo de toda a guerra, foram ganhando clientela, o que muito os ajudou depois, porque lhe assegurava mais capital para o futuro, ao mesmo tempo em que se mantinham firmemente associados-envolvidos com Washington, o esforço dos bônus de guerra e os esforços de financiamentos privados para o esforço de guerra. Assim, o equilíbrio mudou: de um relacionamento “de banco”, para a filosofia de induzir indivíduos a participar mais ativamente [da guerra].

LARS SCHALL: Como o poder financeiro modelou a ordem mundial, depois da IIª Guerra Mundial?

NOMI PRINS: Depois da IIª Guerra Mundial, quando Truman era presidente e o Banco Mundial acabava de ser inventado pelo Acordo de Bretton Woods, como o FMI, etc., houve um homem, de nome John McCloy, que foi secretário-assistente de Guerra no governo de FDR, que também era advogado e trabalhava muito próximo da família Rockefeller, com Nelson Rockefeller e, depois, com David Rockefeller. Depois da IIª Guerra Mundial, foi convidado a ser o segundo presidente do Banco Mundial. Ao aceitar, apresentou uma única condição: que Wall Street seria o mecanismo que distribuiria os bônus nos quais se baseariam muitas das iniciativas do Banco Mundial. Exigiu portanto algo que a lei não considerava, porque, de conversas que tivera com o secretário do Tesouro de Truman – John McCloy já sabia que Wall Street seria o “fator” que realmente decidiria quais os países que o Banco Mundial apoiaria.

Seriam sempre países capitalistas e, em tempos de Guerra Fria, países capitalistas obtêm negócios melhores. O governo Eisenhower financiaria países já praticamente alinhados com os ideais de John McCloy o qual, adiante, seria presidente do Chase, e de outros banqueiros ativos naquele momento. Implica dizer que muito do que aconteceu militarmente, além do que aconteceu financeiramente em termos da expansão dos EUA depois da IIª Guerra Mundial e durante toda a Guerra Fria, foi esse alinhamento de financiadores com apoio dos militares norte-americanos e apoio ideológico do governo dos EUA, que desejava que os banqueiros estendessem seus tentáculos também para os países aos quais os militares e o governo começavam a tentar chegar. Houve esse tipo de alinhamento mútuo quando os EUA decidiram ampliar o próprio status de superpotência, politicamente e financeiramente, depois da guerra.

O Banco Mundial e o FMI foram componentes, ou ferramentas, nessa ampliação.

LARS SCHALL: Uma parte do sistema de Bretton Wood foi que o dólar norte-americano era praticamente “como ouro”. Por que tantos banqueiros norte-americanos tão destacados passaram a advogar o fim do padrão ouro no final dos anos 1960s, inícios dos 1970s? É possível que o padrão ouro opere como “régua” efetiva para medir o crescimento excessivo do setor financeiro e práticas bancárias abusivas?

NOMI PRINS: Oh, sim, o ouro é “régua” muito, muito mais efetiva para aferir e denunciar crescimento financeiro excessivo e abusos. O ouro foi, efetivamente, fator de regulação; continha a expansão dos banqueiros, porque eram obrigados a ter alguma reserva posta de lado e, além delas, também as reservas reais de outros participantes globais. Por causa disso, os banqueiros norte-americanos tinham menos controle sobre o movimento do ouro que entrava e saía de suas empresas. Depois que convenceram o governo dos EUA a pôr fim ao padrão ouro e à exigência de que o ouro operasse como lastro de transações, especulações ou expansões, então... ficaram liberados para todo um novo nível de expansão.

Por isso é que, hoje, preferem taxa de juros zero, dinheiro barato, desde que tenham menos barreiras a impedir a atividade deles. É parte do mesmo padrão e da mesma lógica de pôr fim ao padrão ouro: preferem o caminho menos controlado para a especulação. Houve tremenda expansão global dos bancos norte-americanos, que já havia começado depois das guerras, mas que acelerou muito depois que o padrão ouro foi eliminado, porque era mais fácil de fazer. Simplesmente, menos barreiras para atrapalhar os banqueiros. Defenderam o fim do padrão ouro muito publicamente, falaram abertamente da remoção do padrão ouro, até que, quando Nixon finalmente anunciou a coisa, em 1971, foi como se a ideia tivesse sido dele. Foi ideia que Walter Wriston, presidente do National City Bank, e David Rockefeller, que era presidente do Chase defenderam muito empenhadamente em várias cartas e outros tipos de conversas e contatos pessoais que discuto em detalhe, no livro.

LARS SCHALL: Você acha que o ouro terá futuro no sistema monetário?

NOMI PRINS: Acho que, com certeza, há muita gente que deseja isso, em países fora dos EUA, por causa do modo como o sistema financeiro evoluiu globalmente; os bancos norte-americanos, especificamente, têm poder demais, politicamente e financeiramente. Politicamente, por causa da aliança deles com o governo dos EUA; e financeiramente, porque podem alavancar muito capital barato sem qualquer lastro ouro.

Mas essa é também a razão pela qual acho que vai ter de haver uma grande mudança no poder, no poder político e financeiro. Ter o ouro, sim, assegurar essa espécie de futuro – porque esses banqueiros vão lutar com unhas e dentes. Essas instituições, esses relacionamentos que eles têm com o mundo político em Washington, com o Federal Reserve, revela a quantidade tremenda de poder que foi mobilizado para afastar o ouro e removê-lo, como régua, das transações de especulação e das expansões em todo o mundo.

Significa que, sim acho que vai haver batalha duríssima até que o ouro retorne como exigência presente que dê alguma base para controlar a especulação. Vai ser processo longo e demorado, de longo, longo prazo, se chegar a ser algum dia possível, dada a furiosa oposição já concentrada contra ele e a poderosa aliança político-financeira já constituída contra o ouro, nos EUA.

LARS SCHALL: Um fator que sustentou o dólar norte-americano depois do início dos anos 1970s foi a evidência de que o petróleo só era vendido em dólares norte-americanos. Como foi que o petrodólar mudou, nos anos 1970s, o relacionamento entre Wall Street e Washington?

NOMI PRINS: É excelente pergunta, porque a história que tracei, desde o início dos 1900s até os anos 70s é a história de relacionamentos muito próximos, laços familiares e associações entre banqueiros em Wall Street e políticos em Washington, sempre irmanados numa mesma concepção política. Mas quando os banqueiros descobriram que se poderiam envolver na reciclagem de petrodólares, o dinheiro que saía em dólares dos lucros do petróleo no Oriente Médio, eles começaram a fragmentar-se: deixaram de tentar fingir que estavam alinhados com as políticas “democráticas” dos EUA, pensadas para “ajudar” os cidadãos norte-americanos, a população nacional norte-americana em casa, ou globalmente, pelo mundo.

Repentinamente, encontraram essa fonte externa de tremenda lucratividade e de capital, que então reciclaram como empréstimos para países latino-americanos onde quiseram expandir-se; mas agora tinham aquele capital adicional para emprestar. Puseram-se então a “desalinhar-se” em relação ao governo, exceto quando lhes interessava diretamente, embora continuassem a manter laços estreitos com membros da elite do governo dos EUA e continuem, até hoje, a trabalhar a favor desses mesmos interesses. Além do mais, a transparência, com demanda e prestação oficiais de contas, da era pré anos 1970s, foi sumindo, sumindo, enquanto o roubo, o saque e a corrupção avançaram muito entre os mais poderosos bancos e banqueiros de Wall Street.

LARS SCHALL: É verdade. Boa ilustração pode ser a seguinte: em seu livro você escreve sobre a revolução de 1979 no Irã e como foi causada em parte por ação “autista”, de extremo egoísmo, empreendida por David Rockefeller. Pode nos falar sobre isso?

NOMI PRINS: É. Passei muito tempo em todas as bibliotecas dos presidentes, mas nos arquivos de Jimmy Carter, em Atlanta, Geórgia, implantaram um sistema chamado RAC system, que inclui muitos arquivos, sobretudo de questões de segurança nacional, recentemente abertos à consulta pública. De ler esses arquivos, logo ficou bem evidente para mim que havia muita tensão em Washington em torno do relacionamento entre David Rockefeller e o Xá do Irã antes da crise iraniana, durante a crise dos reféns, mas também depois disso, quando o Banco Chase decidiu tomar unilateralmente uma decisão muito arriscada, a pedido de David Rockefeller; tratava-se de não aceitar um pagamento de juros do Banco Central do Irã. O Banco Chase decidiu agir assim sem consultar os emprestadores daquele específico negócio, inclusive emprestadores europeus, além de emprestadores norte-americanos; e na sequência, depois de não aceitarem o pagamento, declararam insolvente o banco iraniano.

Foi a primeira vez que o Banco Central do Irã foi declarado “em calote”; isso realmente fez aumentar as tensões sobre o que se passava na crise dos reféns e nas relações gerais entre EUA e Irã. Mesmo ao final da crise dos reféns, o acordo para libertar os reféns só aconteceu em troca de os EUA devolverem boa parte do dinheiro sequestrado pelo Banco Chase e outros bancos, e o suspense se manteve até o último momento, quando afinal os reféns foram libertados, o que aconteceu já no governo de Ronald Reagan, não no de Carter. Houve muita atividade entre os bancos sobre trocas de números de lado a lado, um lado absolutamente sem confiar em coisa alguma que o outro dissesse ou fizesse.

É história muito intrincada, mas mostra, basicamente, que o relacionamento de David Rockefeller com o Xá foi parte de por que aconteceu a crise dos reféns; e o fato de que tenha se arrastado por tanto tempo, sobretudo no final, quando só restavam, a serem resolvidas, as negociações em torno do dinheiro. Esses problemas foram causados pelo Banco Chase e outros; e, sim, atrasaram a coisa toda.

LARS SCHALL: Sigamos adiante. Você acha que o poder financeiro dos EUA está em declínio no mundo?

NOMI PRINS: Não acho – e nisso penso diferente do que muitos dos meus contemporâneos andam dizendo – por causa dessa aliança de poder que existe, por causa da solidez das conexões históricas entre a Casa Branca e os atores e instituições e legados mais poderosos em Wall Street. Há tanta coisa em jogo para os dois lados, e tantos e tais subsídios épicos aplicados para manter o sistema financeiro exatamente como é, porque assim se reforça o poder do governo em Washington; e vice-versa.

Por isso, o governo admite que esses grandes banqueiros e instituições sempre se safem, façam o que fizerem, e os subsidia ao ponto extremo que sabemos que faz. Esses bancos estão sendo artificialmente inflados, por causa de subsídios, não por causa de alguma lucratividade inerente que houvesse neles. É posição extremamente perigosa, essa em que estão; e se é perigosa para eles, é também perigosa para todos nós. O Fed guarda 4,2 trilhões de dólares de securities em seus livros, graças a um nível épico de compra de papéis, além de insistir em política de juros-zero já há seis anos, desde o início da crise de 2008.

O que se vê aí é apenas mais uma indicação de o quando poder é mobilizado, quantas decisões estúpidas, mas efetivas, reais, que geram consequências, são tomadas em Washington exclusivamente para manter essa aliança de poder. Não creio que haja alguma outra nação no mundo em que haja conexão histórica tão forte entre a vida política e o sistema bancário. E é por isso que os EUA continuam a fazer o que fazem e a tomar decisões para garantir total impunidade aos banqueiros, nesse jogo de poder. Acho que enquanto continuar a haver muita subsidiarização e transparência zero no sistema bancário, o poder financeiro dos EUA contra o mundo será mantido. É modo péssimo de ter ou manter poder, mas acho que é o que se vê hoje e continuaremos a ver.

LARS SCHALL: Uma pergunta espontânea que me ocorreu agora: você acha que as agências de inteligência dos EUA estejam também envolvidas nisso? Que também ajudam a manter o sistema financeiro dos EUA?

NOMI PRINS: Não é item que eu tenha pesquisado e, sim, é uma lata inteira de outros vermes. Mas os sistemas de inteligência nos EUA são parte da cola – do ponto de vista tecnológico – que mantém grudados o governo e as finanças. Políticas de segurança nacional em geral sempre estiveram alinhadas com as políticas de expansão de bancos, ao longo de décadas. Como já disse antes, falando da análise dos anos 70s, foram arquivos que não investiguei. O que encontrei, por exemplo, sobre a crise dos reféns do Irã e a ação de banqueiros foi um exemplo de como essas vias se entrecruzam; não tenho dúvidas de que, no futuro, veremos muitos documentos que mostrarão o forte alinhamento entre iniciativas mais recentes de segurança nacional e a elite político-financeira.

LARS SCHALL: O que, na sua opinião, seria o fim da atual crise financeira, e como as pessoas poderiam preparar-se para ele?

NOMI PRINS: Mais uma ótima pergunta. O fim do jogo é o que estamos vendo agora. Os principais atores financeiros, tome o início da crise em 2008, foram ridiculamente subsidiados por governos, sobretudo nos EUA, como já falamos, mas também na Europa – o Banco Central Europeu tomou algumas decisões para manter vivos os maiores bancos na Europa e ajudá-los.

O que vejo é que isso continuará, e o resultado será cada vez mais concentração e consolidação nas mãos dos maiores bancos e dos maiores presidentes de bancos que jamais se viram. Nos EUA, por exemplo, os seis grandes bancos hoje têm mais patrimônio, mais depósitos, controlam mais derivativos que em qualquer outro momento da história dos EUA. Se um grupo tão pequeno de indivíduos e instituições controlam tanto capital e, implicitamente, todas essas conexões com a elite política, o jogo continua; a concentração de muito poder e capitais gigantescos continua.

Para onde vai tudo isso? Digo que até aqui andou ininterruptamente na direção errada, se a meta fosse situação de estabilização para a vida das pessoas. Temos, claro, de nos proteger. Como nos protegemos? Podemos reduzir ao mínimo o dinheiro que mantemos nos grandes bancos. 

Ainda que tenhamos hipotecas a pagar a esses bancos, mesmo assim podemos tentar minimizar outras quantidades de capital em que nos envolvemos, porque é um meio para nos pôr, pelo menos parcialmente, o mais fora possível desse sistema vicioso. Entendo que é importante. Acho que é. Temos de perceber que a euforia dessa suposta recuperação dos EUA, da qual tanto ouvimos falar desde 2009 é, de fato, recuperação inventada sobre o lombo de taxas de juro zero e compra épica de papéis dos EUA e mais todas as outras ‘medidas’ que estão em andamento por baixo dos panos, entre líderes políticos e grandes banqueiros, que mantêm a aparência de negociações saudáveis mas até essa aparência é falsa e nada tem de saudável.

LARS SCHALL: Uma última pergunta: por que você desistiu de sua carreira na indústria bancária dos EUA?

NOMI PRINS: Estava farta. Já se passaram 12 anos. Para mim, foi decisão de vida que vinha amadurecendo já desde 2001. Foi uma combinação de escândalos Enron, WorldCom, 9/11, você sabe. Trabalhei em bancos durante bom tempo e vi muita coisa mudar ao longo daquele tempo. Tudo isso só fez desiludir-me cada dia mais, até descrer completamente daquele tipo de gente que eu via “progredir” dentro dos bancos. Era horrível: segredos por todos os lados, ganância, cobiça, ânsia de dinheiro e poder, mais e pior que qualquer ambição. E, simultaneamente, transparência zero, zero atenção, zero consideração aos clientes, usuários, investidores, seguros criados aos sacos, de todos os tipos, nada para assegurar qualquer garantia a quem quer que fosse, além do próprio banco. Quando comecei a trabalhar em Wall Street, o mais importante para nós era que o cliente tivesse ideia clara do risco específico de qualquer negócio. Sabe como é: se você compra isso, se você vende aquilo, se faz assim, ou de outro modo, o que pode acontecer é isso, isso e isso, em cenário adverso. Mas esse tipo de atitude começou a interessar cada vez menos aos bancos e aos banqueiros. O mercado de derivativos, é claro, estava inflado, no momento em que decidi mudar de profissão e abandonei a indústria bancária.

Mas bem que avisei sobre o que aconteceria. Em meu primeiro livro, Other People’s Money [O dinheiro dos outros], que saiu em 2004, logo depois do recurso para que reimplantássemos a Lei Glass-Steagall; escrevi que se não conseguimos o retorno da Lei Glass-Steagall, se continuássemos na vida dos derivativos de crédito e CDOs e usando empréstimos para cobrir seguros – a crise era garantida; e a crise veio.

Hoje acredito que há mais crise no horizonte. O que faço hoje é tentar alertar as pessoas sobre o que está acontecendo; para isso, uso a experiência que adquiri naqueles anos em que estava no banco. Mantenho até hoje intactos o espírito crítico e a profunda desilusão que sentia quando saí do banco. Acho que presto hoje melhor serviço público e social. E vivo muito melhor hoje, do que antes, quando era banqueira. Vivo muito mais sossegada com minha própria consciência.




Nota dos tradutores
[1] Terça-feira Negra, dia 29/10/1929 (em ing.). Sobre o livro da entrevistada, veja em Black Tueday.
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[*] Nomi Prins é jornalista e sócia-sênior da DEMOS. Trabalhou anteriormente como Diretora-Gerente da Goldman Sachs. Escreveu os livros “It Takes a Pillage: An Epic Tale of Power, Deceit, and Untold Trillions”; também “Other People’s Money: The Corporate Mugging of America”; e o já mencionado “Black Tuesday” além de vários artigos e ter concedido numerosas entre vistas.

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